Capítulo 10
As boas pessoas que editam este livro estão
preocupadas, e me disseram por quê. Estão preocupadas com a possibilidade de
que leitores como vocês leiam a minha história dos órfãos Baudelaire e tentem
imitar algumas das coisas que eles fazem. Assim, tendo chegado a esta altura da
história, e a fim de tranquilizar os editores — isto é, de fazer com que parem
de arrancar os cabelos de preocupação —, permitam-me, por favor, dar-lhes um
conselho, mesmo sem saber nada sobre vocês. O conselho é o seguinte: se alguma
vez vocês precisarem chegar com urgência à Gruta do ‘’P’’, não devem em nenhuma
circunstância roubar um barco e tentar atravessar o Lago Lacrimoso durante um
furacão, porque é muito perigoso e as chances de vocês sobreviverem são
praticamente nulas. Não façam isso, sobretudo se vocês, como os órfãos
Baudelaire, tiverem apenas uma vaga idéia de como funciona um barco a vela.
O (A) amigo(a) do conde
Olaf, de pé no cais e brandindo um dos punhos cerrado no ar, foi diminuindo,
diminuindo mais e mais, à medida que o vento empurrava o barco a vela para
longe do Cais de Dâmocles. Com o Furacão Hermano se abatendo sobre eles,
Violet, Klaus e Sunny procederam a um exame do barco a vela que tinham acabado
de roubar. Era bem pequeno, com bancos de madeira e coletes salva-vidas laranja
fosforescente para cinco pessoas. No topo do mastro, que é o nome dado ao – alto poste de madeira erguido no meio dos
barcos – , havia uma vela branca muito encardida que era controlada por uma
série de cordas, e no chão ficava um par de remos de madeira para o caso de não
haver vento. Na parte de trás, havia uma espécie de alavanca de madeira que
servia para realizar manobras, e debaixo de um dos bancos ficava um balde de
alumínio para tirar água se houvesse vazamento. Havia também uma vara comprida
com uma rede de pesca na ponta, uma vara curta terminada por um anzol afiado, e
uma enferrujada luneta, que é usada como uma espécie de telescópio por quem
navega. Os três irmãos fizeram força para vestir os coletes salva-vidas, enquanto
as ondas tormentosas do Lago Lacrimoso os afastavam cada vez mais do cais.
– Li uma vez um
livro sobre como manejar um barco a vela – disse Klaus aos berros, para se
sobrepor à barulheira do furacão. – Temos
que usar a vela para pegar o vento. Então ele nos empurrará para onde quisermos
ir.
– E a alavanca
se chama cana do leme – berrou Violet. – Lembro disso porque estudei algumas plantas
de engenharia naval. É essa alavanca que comanda o leme, que fica embaixo da
água governando a embarcação. Sunny, sente-se aí atrás e fique manobrando a
cana do leme. Klaus, pegue o atlas para podermos saber a direção em que estamos
indo. Eu vou tentar manejar a vela. Acho que se puxar por esta corda, o
controle da vela está garantido.
Klaus virou as folhas do atlas até a página 104.
– Temos que ir nesta direção – disse,
apontando para a direita. – O sol está
se pondo lá, logo deve ser o oeste.
Sunny correu para a parte de trás do barco e pôs suas
mãozinhas na cana do leme bem no momento em que uma onda bateu no casco e jogou
espuma sobre ela.
– Cargu teim – avisou, querendo dizer: ''Vou mover a
cana do leme nesta direção, para governar o barco de acordo com a recomendação
de Klaus'', ou algo do gênero.
Chovia forte, o vento uivava, e uma pequena onda se
esparramou sobre um dos flancos, mas, para surpresa dos órfãos, o barco seguia
na direção exata em que eles queriam ir. Se vocês topassem com os três
Baudelaire nesse instante, pensariam que a vida deles era pura alegria e
felicidade, porque, mesmo estando exaustos e encharcados, e correndo um perigo
muito grande, começaram a rir por estar tudo dando certo. Era um tal alívio
constatar que finalmente alguma coisa tinha dado certo, que eles riram como se
estivessem no circo, e não no meio de um lago, no meio de um furacão, no meio
da maior encrenca.
Com a tempestade esgotando sua força à custa de jogar
ondas sobre o barco e riscar raios no céu sobre a cabeça deles, os Baudelaire
fizeram a travessia do vasto e escuro lago em seu pequeno barco a vela. Violet
puxava as cordas ora para cá ora para lá a fim de pegar o vento, que mudava
incessantemente de direção, o que é normal os ventos fazerem. Klaus ficou de
olho no atlas o tempo todo, atento para que não se desviassem do rumo e fossem
dar na Correnteza Cruel ou nas Rochas Rancorosas. E Sunny manteve o barco em
equilíbrio manobrando a cana do leme sempre que recebia um sinal de Violet. E
justo quando o entardecer virou noite, e ficou escuro demais para ler o atlas,
os Baudelaire viram um pisca-pisca cuja luz era de um tom claro de púrpura. Os
órfãos sempre haviam considerado a chamada cor de lavanda uma cor doentia, e
pela primeira vez na vida se sentiram contentes por vê-la. Era um indício de
que o barco se aproximava do Farol Lavanda, e dali a pouco chegariam à Gruta do ''P''. A tempestade finalmente cedeu —
palavra que aqui quer dizer ''se tornou
branda'' —, e as nuvens se separaram,
revelando uma lua quase cheia. As crianças, sentindo calafrios sob as roupas
encharcadas, contemplavam as ondas do lago em calmaria e acompanhavam os
redemoinhos que se desenhavam na camada mais profunda de suas águas.
– O Lago
Lacrimoso é na verdade muito lindo – disse Klaus, pensativo. – Nunca tinha reparado.
– Cind – concordou Sunny, ajustando de leve a cana do leme.
– Imagino que
nunca reparamos nisso por causa de tia Josephine – disse Violet. – Nós nos acostumamos a ver o lago pelos olhos
dela. – Pegou a luneta e encaixou nela o
seu olho: foi o bastante para que enxergasse terra firme. – Acho que estou conseguindo ver o farol lá
adiante. Há um buraco negro no rochedo que fica logo à sua direita. Deve ser a
entrada da Gruta do 'P'.
De fato, à medida que o barco foi chegando cada vez
mais perto, as crianças puderam distinguir o Farol Lavanda e a entrada da gruta
vizinha, mas quando tentaram olhar para as profundezas da gruta, não perceberam
sinal algum da presença de tia Josephine, nem de qualquer outra coisa, diga-se
de passagem. Pedras começaram a arranhar o fundo do barco, o que significava
que eles estavam em águas muito rasas; Violet, então, pulou do barco para
empurrá-lo até a beira escarpada do rochedo. Klaus e Sunny também saltaram, e
retiraram seus coletes salva-vidas. E os três se postaram na entrada da Gruta
do – P – , imóveis e ansiosos. Diante da
gruta havia uma placa que dizia que ela estava à venda, e os órfãos não foram
capazes de imaginar quem quereria comprar um lugar tão fantasmagórico — e a palavra fantasmagórico
está valendo aqui por todas as palavras com o sentido de ''assustador ''e ''horripilante'' que vocês possam juntar. A entrada da
gruta tinha em sua orla como que uma coroa de pedras pontudas e recortadas tal
qual os dentes na boca de um tubarão. Transposta a entrada, os garotos deram
com estranhas formações de rocha branca, configuradas de um jeito que lembrava
leite talhado. O chão da gruta era esbranquiçado e soltava pó como se fosse de
giz. Mas não foram essas coisas que imobilizaram as crianças. Foi o som que
vinha lá de dentro. Era um lamento agudo, trêmulo, um som que expressava
desterro e desesperança, tão estranho e lúgubre como a própria Gruta do ''P''.
– Que barulho é
esse? – perguntou Violet nervosamente.
– Deve ser só o
vento – respondeu Klaus. – Li em algum
lugar que quando o vento penetra em espaços pequenos, como grutas, pode
produzir sons misteriosos. Não é caso para ter medo.
Os órfãos não se mexeram. O som não cessou.
– De qualquer
maneira, isso me dá medo – disse Violet.
– A mim também – disse Klaus.
– Geni – disse Sunny, e começou a engatinhar para dentro da gruta. Provavelmente o que
quis dizer foi: ''Não atravessamos o
Lago Lacrimoso num barco a vela roubado, em pleno Furacão Hermano, para
ficarmos parados, nervosos, na entrada de uma gruta'', ou algo do gênero, e
seus irmãos tiveram que concordar com ela e segui-la até lá dentro. O lamento
estava mais alto, ecoando pelas paredes e formações rochosas, e deu para os
Baudelaire perceberem que não era o vento. Era tia Josephine, sentada num canto
da gruta e soluçando com a cabeça entre as mãos. Chorava tão desesperadamente
que nem sequer havia notado a chegada dos Baudelaire.
– Tia Josephine
– disse Klaus, hesitante, – aqui
estamos.
Tia Josephine ergueu os olhos, e as crianças viram que
seu rosto estava molhado de lágrimas e coberto da poeira de giz da gruta.
– Vocês descobriram – disse ela, enxugando
as lágrimas e se levantando. – Eu sabia
que vocês iriam descobrir – disse, e abraçou os Baudelaire um por um. Olhou
para Violet, depois para Klaus e depois para Sunny, e os órfãos olharam para
ela com lágrimas nos olhos, lágrimas de alegria por reencontrar sua tutora. Era
como se eles não tivessem acreditado inteiramente que a morte de tia Josephine
havia sido forjada até que viram com seus próprios olhos que ela estava viva.
– Eu sabia que
vocês eram crianças inteligentes – disse tia Josephine. – Eu sabia que iriam decifrar minha mensagem.
– Na verdade,
foi Klaus que conseguiu decifrá-la – disse Violet.
– Mas Violet
conseguiu manejar o barco a vela – disse Klaus. – Sem Violet nunca teríamos chegado aqui.
– E foi Sunny
que roubou as chaves – disse Violet, –
e controlou a cana do leme.
– Bem, estou
feliz por vocês todos terem conseguido chegar até aqui – disse tia Josephine.
– Deixem-me só retomar o fôlego, e vou
ajudá-los a trazer suas coisas aqui para dentro.
As crianças se entreolharam.
– Que coisas? – perguntou Violet.
– Ué, sua
bagagem, é claro – respondeu tia Josephine. – E espero que tenham trazido alguma comida,
porque os mantimentos que eu trouxe estão quase terminando.
– Não trouxemos
comida – disse Klaus.
– Não trouxeram
comida? – disse tia Josephine. – Mas
como, Deus do céu, vocês vão morar comigo nesta gruta se não trouxeram comida?
– Nós não
viemos aqui para morar com você – disse Violet.
As mãos de tia Josephine
voaram para o alto da cabeça, e ela nervosamente ajeitou seu coque.
– Então, por que estão aqui? – perguntou.
– Stim! – gritou Sunny, querendo dizer: ''Porque
estávamos preocupados com você!''.
– 'Stim' não é
uma frase, Sunny – disse tia Josephine, implacável. – Talvez um de seus irmãos mais velhos possa
me explicar em linguagem correta por que vocês estão aqui.
– Porque por um
triz não caímos nas garras do capitão Sham! –gritou Violet. – Todos pensaram que você tivesse morrido, e
você escreveu no seu bilhete-testamento que nós deveríamos ficar sob a guarda
do capitão Sham.
– Mas ele me
forçou a fazer isso – disse tia Josephine, choramingando. – Naquela noite, quando ligou para mim, ele
disse que era mesmo o conde Olaf. Disse que eu devia escrever um testamento
declarando que vocês ficariam sob sua guarda. Disse que se eu não escrevesse o
que estava mandando, ele iria me afogar no lago. Tive tanto medo, que concordei
imediatamente.
– Por que não
chamou a polícia? – perguntou Violet. – Por que não ligou para o Sr. Poe? Por que
não chamou alguém que pudesse ajudar?
– Vocês sabem
por quê – disse tia Josephine, aborrecida. – Tenho medo de usar o telefone. Estava apenas
começando a me acostumar a atender o aparelho, mas ainda não sabia mexer nas
teclas numeradas. De qualquer maneira, não precisei chamar ninguém. Atirei um
pufe pela janela e saí sorrateiramente de casa. Deixei o bilhete para que vocês
descobrissem que na verdade eu não tinha morrido, mas encobri seu conteúdo
secreto para que o capitão Sham não ficasse sabendo que eu havia escapado dele.
– Por que não
nos trouxe com você? Por que nos deixou sozinhos à nossa própria sorte? Por que
não nos protegeu do capitão Sham? – perguntou Klaus.
– Não é
gramaticalmente correto – , disse tia Josephine, – dizer 'nos deixou sozinhos à nossa própria
sorte'. Deve-se dizer 'nos deixou sozinhos entregues à nossa própria sorte'.
Entendeu?
Os Baudelaire se entreolharam num misto de raiva e
tristeza. Eles tinham entendido. Tinham entendido que tia Josephine estava mais
interessada em erros gramaticais do que em salvar a vida das três crianças.
Tinham entendido que ela estava tão envolvida nos seus próprios medos que nem
sequer pensara no que poderia ter acontecido a eles. Tinham entendido que tia
Josephine havia falhado completamente como tutora ao deixar as crianças
sozinhas numa situação de tamanho perigo. Tinham entendido, e desejaram mais do
que nunca que seus pais — que jamais teriam fugido e jamais os teriam deixado
sozinhos — não houvessem morrido naquele incêndio
terrível que foi o ponto de partida de todas as desventuras na vida dos
Baudelaire.
– Bem, por hoje
basta de aulas de gramática – disse tia Josephine. – Fico feliz em vê-los, e só quero que se
sintam bem dividindo esta gruta comigo. Creio que o capitão Sham jamais nos
descobrirá aqui.
– Nós não vamos
ficar morando aqui – disse Violet, impaciente. – Vamos voltar para a cidade, e você vem
conosco.
– No dia de são
Nunca! – disse tia Josephine, usando uma expressão que significa ''de jeito nenhum''. – Morro de medo do capitão Sham para
encará-lo. Depois de tudo o que ele fez com vocês, imagino que também morram de
medo dele.
– Nós morremos
de medo dele, sim – disse Klaus, – mas
se provarmos que ele é na verdade o conde Olaf, irá para a cadeia. Você é a
prova. Se contar ao Sr. Poe o que aconteceu, o conde Olaf será trancafiado e
nós estaremos salvos.
– Contem vocês,
se quiserem – disse tia Josephine. – Daqui
eu não saio.
– Ele não vai
acreditar em nós, a menos que você venha conosco e prove que está viva – disse Violet.
– Não, não e
não – disse tia Josephine. – Tenho
medo demais.
Violet respirou fundo e encarou sua amedrontada
tutora.
– Todos nós temos medo – disse com firmeza. – Tivemos medo quando encontramos o capitão
Sham na mercearia. Tivemos medo quando achamos que você tinha pulado da janela.
Tivemos medo de provocar reações alérgicas em nós mesmos, tivemos medo de
roubar um barco e tivemos medo de atravessar esse lago no meio de um furacão.
Mas nem por isso desistimos.
Os olhos de tia Josephine se encheram de lágrimas.
– Não tenho culpa se vocês são mais corajosos
do que eu – disse. – Não vou
atravessar esse lago num barco a vela. Não vou fazer ligações telefônicas. Vou
ficar aqui o resto da vida, e nada do que vocês disserem me fará mudar de
ideia.
Klaus deu um passo para a frente e jogou a última
cartada — expressão que aqui significa ''lançou mão do último recurso, que considerava extremamente convincente''. – A Gruta do 'P' está à venda – disse.
– E daí? – perguntou tia Josephine.
– Daí que muito
em breve – disse Klaus, – certas
pessoas virão visitar a gruta. E entre essas pessoas – aqui ele fez uma pausa
dramática, – estarão corretores.
Tia Josephine ficou boquiaberta, e os órfãos viram a pálida criatura
engolir em seco de medo.
– Tudo bem – disse finalmente, olhando ansiosa para os quatro cantos da gruta, como se algum
corretor já estivesse escondido nas sombras. – Eu vou.
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