Capítulo 13

O Sr. Poe ficou abismado. Violet ficou aliviada. Klaus ficou desoprimido, palavra elegante que quer dizer o mesmo que ''aliviado'' e que ele aprendeu num artigo de revista. Sunny ficou triunfante. A pessoa que não parecia nem homem nem mulher ficou desapontada. E o conde Olaf — que alívio poder chamá-lo por seu próprio nome — a princípio pareceu amedrontado, mas, num piscar de seu olho brilhante, operou a transformação que deu ao rosto dele um ar abismado como o do Sr. Poe.
 – Minha perna! – gritou o conde Olaf, com uma falsa alegria na voz.  – Cresceu-me uma nova perna! É incrível! Maravilhoso! É um milagre da medicina!
 – Ora, francamente – , disse o Sr. Poe, cruzando os braços.  – Essa não pega. Até uma criança pode ver que sua perna de pau era falsa.
 – Uma criança viu de fato – sussurrou Violet para Klaus.  – Na verdade, três crianças viram. 
 – Tudo bem, digamos que minha perna de pau fosse mesmo falsa – admitiu o conde Olaf, recuando um passo.  – Mas eu nunca tinha visto essa tatuagem em toda a minha vida.
 – Ora, francamente – repetiu o Sr. Poe.  – Essa também não pega. O senhor tentou esconder a tatuagem com a perna de pau, mas agora podemos ver que o senhor é realmente o conde Olaf.  
 – Tudo bem, digamos que a tatuagem seja mesmo minha – admitiu o conde Olaf, recuando outro passo.  – Mas não sou esse tal de conde Olaf. Sou o capitão Sham. Veja, tenho um cartão que confirma isso.
 – Ora, francamente – disse mais uma vez o Sr. Poe.  – Essa não pega. Qualquer um pode ir a uma tipografia e encomendar cartões com os dizeres que bem entender.
 – Tudo bem, digamos que eu não seja mesmo o capitão Sham – admitiu o conde Olaf,  – mas as crianças, seja como for, me pertencem. Foi o que Josephine declarou.
 – Ora, francamente – disse o Sr. Poe pela quarta e última vez.  – Essa não pega. A tia Josephine deixou as crianças para o capitão Sham, não para o conde Olaf. E o senhor é o conde Olaf, não o capitão Sham. De modo que as coisas voltaram ao princípio e cabe a mim decidir quem ficará com a guarda dos Baudelaire. Mandarei estas três crianças para algum outro lugar e, quanto ao senhor, eu o mandarei para a cadeia. É a última vez que comete as suas vilanias, Olaf. Você tentou roubar a fortuna dos Baudelaire casando-se com Violet. Você tentou roubar a fortuna dos Baudelaire assassinando o tio Monty.
 – E este, agora – rosnou o conde Olaf,  – foi o maior de todos os meus planos. –  Levou a mão até a venda e a arrancou — uma venda falsa, naturalmente, como a sua perna de pau; em seguida, fixou nos Baudelaire seu par de olhos brilhantes.  – Não gosto de me vangloriar... na verdade, por que continuaria mentindo para vocês, seus bobos? Gosto, sim, de me vangloriar, e forçar aquela velha idiota a escrever aquele bilhete foi algo realmente digno de vanglória. Que boboca que Josephine era! 
– Ela não era nenhuma boboca! – gritou Klaus.  – Era doce e delicada! 
– Doce? – repetiu o conde Olaf, com um sorriso horrível.  – Bem, neste momento as sanguessugas do lago devem estar achando-a muito doce mesmo. Quem sabe, o mais doce café da manhã que elas já tomaram.
O Sr. Poe franziu a testa e tossiu no lenço branco. 
 – Basta dessa sua conversa revoltante, Olaf – disse com severidade.  – Agora o pegamos, e você não terá como escapar. O Departamento de Polícia do Lago Lacrimoso vai ficar feliz por capturar um criminoso conhecido que é procurado por fraude, homicídio e ameaças a crianças. 
 – E incêndio criminoso – cantarolou o conde Olaf.
 – Eu disse basta! – rosnou o Sr. Poe. O conde Olaf, os órfãos Baudelaire e até mesmo a maciça criatura de sexo indefinido pareceram surpresos por ouvir o Sr. Poe falar com tamanha severidade.  – Você atormentou essas crianças pela última vez, e faço questão absoluta de que seja entregue às autoridades competentes. Não adiantará disfarçar-se. Não adiantará vir com mentiras. O fato é que não há nada que você possa fazer para mudar sua situação. –  
 – É mesmo? – disse o conde Olaf, e seus lábios abjetos se encurvaram num sorriso.  – Pois eu sei de uma coisa que posso fazer.
 – O quê, exatamente? – perguntou o Sr. Poe.
O conde Olaf olhou para cada um dos órfãos Baudelaire, sorrindo para eles como se fossem chocolatinhos que estivesse disposto a guardar para depois. Em seguida, sorriu para a maciça criatura de sexo indefinido e afinal, lentamente, sorriu para o Sr. Poe.  – Posso fugir – , disse, e fugiu. Com a maciça criatura seguindo com dificuldade atrás dele, disparou na direção do pesado portão de ferro.
 – Volte aqui! – gritou o Sr. Poe.  – Volte aqui, em nome da lei! Volte aqui, em nome da justiça e da moral! Volte aqui, em nome da Administração de Multas!
 – Não basta ficarmos gritando – gritou Violet.  – Vamos logo! Temos que ir atrás deles!
 – Não vou permitir que crianças saiam em perseguição a um homem como esse – disse o Sr. Poe. E tornou a gritar:  – Parem, estou mandando! Nem mais um passo!
 – Não podemos deixar que escapem! – gritou Klaus.  – Vamos, Violet! Vamos, Sunny!
 – Não, não, isso não é trabalho para crianças! – disse o Sr. Poe.  – Espere aqui com suas irmãs, Klaus. Vou pegá-los. Eles não escaparão do Sr. Poe. Ei, vocês aí! Parem! 
 – Mas não podemos ficar esperando aqui! – gritou Violet.  – Temos que sair num barco e procurar tia Josephine! Talvez ela ainda esteja viva!
 – Vocês, órfãos Baudelaire, estão sob minha guarda – disse o Sr. Poe com firmeza.  – Não permitirei que crianças pequenas saiam velejando desacompanhadas.
 – Mas se não tivéssemos velejado desacompanhados – observou Klaus,  – a esta hora estaríamos nas garras do conde Olaf!
 – Isso não vem ao caso – disse o Sr. Poe, e começou a andar apressadamente na direção do conde Olaf e da criatura.  – O caso é...
Mas as crianças não conseguiram ouvir qual era o caso, com o fortíssimo plam! que fez o alto portão de ferro ao bater. A criatura bateu o portão bem no momento em que o Sr. Poe estava prestes a alcançá-lo.
 – Pare imediatamente! – ordenou o Sr. Poe, gritando para o outro lado do portão.  – Volte aqui, seu monstro desagradável! –  Tentou abrir o portão, mas verificou que estava trancado.  – Está trancado! – , gritou para as crianças.  – Onde fica a chave? Precisamos encontrar a chave!
Os Baudelaire correram para o portão, mas pararam ao ouvir o som de algo tilintando.
   – A chave está comigo – disse a voz do conde Olaf, do outro lado do portão.  – Mas não se preocupem. Breve nos veremos, órfãos. Muito breve.
 – Abram este portão imediatamente! – gritou o Sr. Poe, mas é claro que ninguém abriu o portão. Ele o sacudiu e sacudiu, mas o portão de ferro com sua coroa de proteções pontiagudas jamais se abriu. O Sr. Poe foi correndo para uma cabine telefônica e ligou para a polícia, mas as crianças sabiam que quando o socorro policial chegasse, o conde Olaf já teria desaparecido. Sentindo-se inteiramente exaustos e mais do que inteiramente infelizes, os órfãos Baudelaire se deixaram cair no chão, sentando-se melancolicamente no mesmo lugar em que os encontramos no começo desta história.
No primeiro capítulo, vocês devem estar lembrados, os Baudelaire estavam sentados sobre suas malas, esperançosos de que a vida deles estivesse prestes a se tornar um pouco melhor, e eu bem que gostaria de poder dizer a vocês, agora que chegamos ao fim da história, que foi de fato o que aconteceu. Gostaria de poder escrever que o conde Olaf foi capturado em sua tentativa de fuga, ou que tia Josephine nadou até o Cais de Dâmocles, tendo escapado milagrosamente das sanguessugas. Mas não foi o que aconteceu. Quando as crianças sentaram no chão molhado, o conde Olaf já se achava no meio da travessia do lago, e logo estaria a bordo de um trem, disfarçado de rabino para enganar a polícia, e lamento dizer a vocês que ele já começava a bolar um novo plano para roubar a fortuna dos Baudelaire. Quanto a tia Josephine, nunca poderemos saber exatamente o que estava acontecendo com ela quando as crianças sentaram no cais, impotentes para ajudá-la, mas posso dizer a vocês que finalmente — na época em que os órfãos Baudelaire foram forçados a entrar para um internato — dois pescadores encontraram ambos os coletes salva-vidas de tia Josephine, em frangalhos, flutuando soltos nas águas tenebrosas do Lago Lacrimoso.
Na maioria das histórias, como vocês sabem, o vilão seria derrotado, haveria um final feliz, e todo mundo iria para casa sabendo a moral da história. Mas, no caso dos Baudelaire, tudo saiu errado. O conde Olaf, o vilão, não teve êxito no seu plano perverso, mas com toda a certeza tampouco foi derrotado. Vocês não poderiam dizer, é evidente, que houve um final feliz. E os Baudelaire não puderam ir para casa sabendo a moral da história, pela simples razão de que não puderam ir para casa. Não só a casa de tia Josephine tinha despencado e caído no lago, como o verdadeiro lar dos Baudelaire — a casa onde moraram com seus pais — se tornara apenas um monte de cinzas num terreno baldio, e não havia possibilidade de voltarem para lá, por mais que quisessem.
Entretanto, mesmo que eles pudessem voltar para casa, seria difícil para mim dizer a vocês qual é a moral da história. Em algumas histórias é fácil. A moral de  ''Os três ursinhos'', por exemplo, é: ''Jamais forcem a entrada da casa de outra pessoa''. A moral de ''Branca de Neve'' é: ''Jamais comam maçãs''. A moral da Primeira Guerra Mundial é: ''Jamais assassinem o arquiduque Ferdinando''. Mas Violet, Klaus e Sunny, sentados no cais e olhando o sol se erguer sobre o Lago Lacrimoso, refletiram um bom tempo em qual seria exatamente a moral do período que passaram com tia Josephine.
A expressão ''Acendeu-se uma luz dentro deles'', que eu vou usar daqui a pouquinho, não tem nada a ver com a luz solar que se espalhava nesse momento sobre o Cais de Dâmocles. ''Acendeu-se uma luz dentro deles'' é uma maneira de dizer que eles ''descobriram alguma coisa''. E quando os órfãos Baudelaire estavam sentados e observavam o cais se encher de gente à medida que se iniciava o movimento no comércio, descobriram algo que era muito importante para eles. Acendeu-se uma luz dentro deles, mostrando-lhes que, ao contrário de tia Josephine, que vivera sozinha e triste naquela casa, as três crianças tinham umas às outras, e poderiam consolar-se e apoiar-se no decorrer de suas vidas infelizes. E embora isso não bastasse para fazê-las se sentir inteiramente seguras, ou inteiramente felizes, fez com que se sentissem gratas.
 – Obrigada, Klaus – agradeceu Violet,  – por ter decifrado aquele bilhete. E obrigada, Sunny, por ter roubado as chaves para pegarmos o barco. Se não fossem vocês dois, a esta hora estaríamos nas garras do conde Olaf.
 – Obrigado, Violet – agradeceu Klaus,  – por ter pensado nas balas de hortelã-pimenta como um meio de ganharmos tempo. E obrigado, Sunny, por ter mordido a perna de pau no momento certo. Se não fossem vocês duas, a esta hora estaríamos perdidos.  
 – Pilumps – agradeceu Sunny, e seus irmãos logo entenderam que ela estava agradecendo a Violet por ter inventado a sinalização do pedido de socorro e a Klaus por ter lido o atlas que os levara à Gruta do ''P'' .
Ainda como uma forma de agradecimento, encostaram-se uns nos outros com a cabeça, e em seus rostos molhados e ansiosos surgiram pequenos sorrisos. Eles tinham uns aos outros. Não sei se a moral desta história é:  – Os Baudelaire tinham uns aos outros – , mas para os três irmãos era quanto bastava. No turbilhão de suas vidas infelizes, poder contar com os outros dois era, para cada um, o mesmo que ter um barco no meio de um furacão, e esse era um sentimento que inspirava muita felicidade aos órfãos Baudelaire. 

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