Capítulo 43
SENTINDO-SE COMO SE AINDA estivesse
sonhando, Katie voltou à sua casa com passos hesitantes. Ela se sentou na
cadeira de balanço e olhou longamente para a casa de Jo, considerando a
possibilidade de que teria enlouquecido completamente.
Ela sabia que a criação de amigos imaginários era
comum entre crianças, mas ela não era uma criança. Sim, ela estava sob um forte
estresse quando chegou a Southport. Sozinha e sem amigos, fugindo, sempre
olhando por cima do ombro, aterrorizada pela possibilidade de que Kevin a
encontrasse. Quem não sentiria a pressão dessa ansiedade? Mas será que aquilo
fora o bastante para ter provocado a criação de um alter ego? Talvez
alguns psiquiatras dissessem que sim, mas ela não tinha tanta certeza.
O problema era que Katie não queria acreditar naquilo.
Não podia acreditar, porque lhe pareceu tão... real. Ela se lembrava
daquelas conversas, ainda se recordava das expressões de Jo, ainda ouvia o som
de sua risada. As memórias que tinha de Jo eram tão reais como suas memórias de
Alex. Claro, provavelmente ele também não era real. Provavelmente sua mente o
havia criado também. Assim como Kristen e Josh. Ela provavelmente estava
amarrada a
alguma cama em um
manicômio, perdida em um mundo inteiro que sua mente havia criado. Balançou a
cabeça, frustrada, confusa e mesmo assim...
Havia outra coisa que a perturbava. Algo que não
conseguia realmente identificar. Estava se esquecendo de alguma coisa. Algo
que era importante.
Por mais que tentasse, não era capaz de discernir
aquilo. Os eventos dos últimos dias a deixaram exausta e abalada. Ela olhou
para o céu. O crepúsculo estava começando a se espalhar e a temperatura
estava caindo. Perto das árvores, uma névoa começava a se formar.
Desviando os olhos da casa de Jo — era assim que ela
sempre viria a se referir àquele lugar, independente do estado de espírito que
aquilo implicasse — Katie examinou a carta. Não havia nenhuma palavra ou nome
escrito do lado de fora do envelope.
Havia algo de assustador naquela carta lacrada, embora
ela não soubesse o que era. Talvez fosse a expressão de Alex quando ele lhe
entregara o envelope. De alguma forma, ela sabia que aquilo não era apenas
sério, mas também importante para ele. E Katie se perguntou por que ele não
havia lhe dito nada a respeito.
Ela não sabia, mas em breve escureceria e estava certa
de que seu tempo estava acabando. Girando o envelope nos dedos, abriu o lacre.
Na luz esmaecida, deslizou seu dedo por cima do papel amarelo antes de
desdobrar as páginas. Finalmente, começou a ler.
À mulher que meu marido ama.
Se você acha que é
estranho ler estas palavras, por favor, acredite em mim quando digo que a
sensação que eu tenho ao escrevê-las é tão estranha quanto a que você sente ao
lê-las. Por outro lado, nenhum aspecto desta carta me parece normal. Há tantas
coisas que quero dizer, tantas coisas que eu quero lhe contar e, quando decidi escrever esta carta, tudo parecia estar claro na minha mente. Agora,
entretanto, percebo que estou confusa e não sei por onde devo começar.
Acho que posso começar dizendo isto: eu passei a
acreditar que, na vida de cada um, há um momento inegável de mudança; um
conjunto de circunstâncias que, repentinamente, faz com que tudo se transforme.
Para mim, este momento ocorreu quando conheci Alex. Embora eu não saiba quando
ou onde você está lendo esta carta, eu sei que isso significa que ele a ama.
Também significa que ele quer compartilhar sua vida com você e, se não houver
nada mais, pelo menos nós teremos isto em comum.
Meu nome, como você provavelmente sabe, é Carly.
Entretanto, durante a maior parte da minha vida, meus amigos me chamavam de
Jo...
Katie parou de ler e olhou para a carta em suas mãos,
incapaz de absorver aquelas palavras. Respirando fundo, ela releu aquela frase:
durante a maior parte da minha vida, meus amigos me chamavam de Jo...
Ela segurou as páginas com força, finalmente
desvelando a memória que vinha lutando para recobrar. Repentinamente, ela se
viu novamente no quarto de Alex na noite do incêndio. Sentiu a dor nos braços e
nas costas quando jogou a cadeira de balanço pela janela, sentiu a onda de
pânico quando envolveu Josh e Kristen com o edredom, logo antes de ouvir o som
das rachaduras atrás de si.
Com uma clareza absoluta,
lembrou-se de girar sobre os calcanhares e ver o retrato que estava pendurado
na parede, o retrato da esposa de Alex. Na noite do incêndio, ela estava
confusa, com os nervos à flor da pele em meio ao inferno de fumaça e medo.
Mas ela havia visto aquele rosto. Sim, havia até mesmo
dado um passo em direção ao retrato para olhar melhor.
“Ela se parece muito com Jo”, lembrou-se de pensar na
ocasião, mesmo que sua mente não tivesse condições de processar a informação.
Mas agora, sentada na varanda sob um céu que escurecia aos poucos, ela teve a
certeza de que estava errada. Errada a respeito de tudo. Levantou os olhos para
olhar em direção à casa de Jo novamente.
Katie repentinamente percebeu que a esposa de Alex se
parecia com Jo porque realmente era Jo. Espontaneamente, ela se recordou
de outro momento, na primeira manhã em que Jo viera até sua casa.
Meus amigos me chamam de Jo,
disse ela, ao se apresentar. Oh, meu Deus.
Katie empalideceu.
... Jo...
Percebeu, de repente, que não havia imaginado Jo. Não
fora sua imaginação que a criara.
Jo esteve aqui; e Katie sentiu sua garganta se
apertar. Não porque não acreditava nela, mas porque ela finalmente compreendera que sua amiga Jo — sua única amiga verdadeira, sua sábia conselheira, a pessoa que
a apoiava e a quem confiava seus segredos — nunca mais voltaria.
Elas nunca voltariam a tomar café, nunca mais
dividiriam outra garrafa de vinho, nunca mais conversariam na varanda. Ela
nunca voltaria a ouvir o som do riso de Jo ou observaria a maneira que ela
tinha de arquear a sobrancelha. Ela nunca mais ouviria Jo se queixar de ter que
fazer trabalhos braçais... então começou a chorar, lamentando a perda da
maravilhosa amiga que nunca tivera a oportunidade de conhecer em vida.
***
KATIE NÃO SABIA AO CERTO quanto
tempo se passara antes que ela fosse capaz de voltar a ler. Estava escurecendo
e, com um suspiro, ela se levantou e abriu a porta da frente. Dentro da casa,
sentou-se à mesa da cozinha. Ela se lembrava de que, certa vez, Jo havia se
sentado na cadeira em frente à sua e, por algum motivo que não conseguia
explicar, sentiu que começava a relaxar.
“Tudo bem”, pensou ela consigo mesma. “Estou pronta
para ouvir o que você tem a dizer.”
... Durante a maior parte da minha vida, meus amigos
me chamavam de Jo. Por favor, fique à vontade para me chamar por qualquer um dos
nomes. E, para que você se sinta melhor, saiba que eu já a considero uma amiga.
Espero que, ao final desta carta, você sinta o mesmo em relação a mim.
Morrer é uma coisa estranha e não vou aborrecê-la com
os detalhes. Posso ainda ter algumas semanas, ou talvez meses de vida. Embora
eu saiba que isso é um clichê, a verdade é que muitas das coisas nas quais eu
acreditei serem importantes não o são mais. Eu não leio mais o jornal, não me
importo com o mercado de ações
nem me preocupo se vai
chover durante minhas férias. Em vez disso, eu me apanho refletindo sobre os
momentos essenciais da minha vida. Eu penso em Alex e no quanto ele estava
bonito no dia em que nos casamos. Eu me lembro do orgulho e da exaustão que
senti quando segurei Josh e Kristen em meus braços. Eles eram bebês lindos.
Eu costumava deitá-los sobre meu colo e olhar para eles enquanto dormiam. Eu
podia ficar horas assim, simplesmente olhando para eles, tentando descobrir
se eles haviam herdado meu nariz ou o de Alex, os olhos dele ou os meus. Às
vezes, enquanto estavam sonhando, as mãozinhas deles se fechavam ao redor do
meu dedo, e eu me lembro de pensar que nunca sentira uma forma de alegria tão
pura.
Foi apenas quando tive filhos que eu realmente
compreendi o significado do amor. Não me entenda mal. Eu amo Alex com todo o
meu coração, mas é diferente do amor que eu sinto por Josh e Kristen. Não sei
como explicar e não sei se preciso. Tudo o que sei é que, apesar da minha
doença, me sinto abençoada, porque fui capaz de vivenciar ambos. Vivi uma vida
plena e feliz e senti o tipo de amor que muitas pessoas nunca conhecerão.
Mas a minha situação me assusta. Eu tento demonstrar
coragem quando Alex está por perto e as crianças ainda são muito novas para
entender o que realmente está acontecendo. Nos momentos tranquilos em que
estou sozinha, as lágrimas me vêm rapidamente e eu,
às vezes, me pergunto se elas vão parar algum dia. Embora eu saiba que não
deveria, me apanho pensando no fato de que nunca vou acompanhar meus filhos até
a escola, ou que nunca vou ter outra chance de observar a alegria deles na
manhã de natal. Nunca terei a oportunidade de ajudar Kristen a escolher um
vestido para o baile de formatura, nunca vou assistir aos jogos de beisebol de
que Josh vai participar. Há muitas coisas que nunca verei ou farei com eles e, às
vezes, eu me desespero, pensando que nunca serei nada além de uma memória
distante quando chegar a época em que eles decidirem se casar.
Como vou poder dizer que os amo, se não estarei mais
aqui?
Alex. Ele é o meu sonho e meu companheiro, meu amante
e meu amigo. Ele é um pai dedicado. Porém, mais do que isso, ele é meu marido
ideal. Não posso descrever o conforto que sinto quando ele me toma em seus
braços, ou o quanto anseio por poder me deitar ao seu lado, à noite. Há um
senso inabalável de humanidade nele, uma fé na bondade da vida e eu sinto meu
coração se partir quando imagino que ele ficará sozinho. É por isso que eu
pedi a ele que entregasse essa carta a você; penso que isso é uma maneira de fazê-lo
manter a promessa que me fez quando disse que iria voltar a encontrar alguém
especial — alguém que o ame e alguém que ele possa amar. Ele precisa disso.
Sou abençoada por passar cinco anos casada com ele.
Agora, minha vida está quase terminada e você vai assumir meu lugar. Você se
tornará a esposa que vai envelhecer ao lado de Alex e você se tornará a única
mãe que meus filhos irão conhecer. Você não pode imaginar o quanto é terrível
estar deitada em uma cama, ol- har para minha família, saber dessas coisas e
perceber que não posso fazer nada para mudar essa situação.
É aqui que você entra. Eu quero que você faça uma
coisa por mim.
Se você ama Alex agora, então o ame para sempre.
Faça-o rir novamente e valorize os momentos que passarem juntos. Saiam para
caminhar juntos, saiam para pedalar suas bicicletas, aconcheguem-se juntos no
sofá e assistam a filmes sob um cobertor.
Prepare o café da manhã
para ele, mas não o mime. Deixe que ele lhe prepare o café da manhã também,
para que ele demonstre que você é especial para ele. Beije-o e faça amor com
ele, e considere-se uma pessoa de sorte por tê-lo encontrado. Ele é o tipo de
homem que vai provar que você está certa.
Eu também quero que você ame meus filhos da mesma
forma que eu os amo. Ajude-os a fazer sua lição de casa. Beije seus joelhos e
cotovelos machucados quando eles caírem. Passe a mão pelos cabelos deles e
garanta-lhes que conseguirão fazer qualquer coisa e que basta se esforçarem
para tal. Coloque-os na cama à noite e ajude-os com suas orações. Faça o lanche
que eles levarão para a escola e apoie-os com suas amizades. Adore-os, ria com
eles, ajude- os a crescer e a se transformarem em adultos gentis e independentes. O amor que você lhes der será retribuído e multiplicado por dez com o
tempo. Eles aprenderão a fazer isso com Alex.
Por favor, eu lhe imploro. Faça essas coisas por mim.
Afinal, agora eles são sua família, não mais a minha.
Não sinto ciúme ou raiva por você me substituir; como
já mencionei, considero-a uma amiga. Você trouxe a felicidade ao meu marido e
aos meus filhos e eu gostaria de poder estar por perto para agradecê-la
pessoalmente. Em vez disso, a única coisa que posso fazer é assegurar que você
terá minha gratidão eterna.
Se Alex escolheu você, então eu quero acreditar que eu
também a escolhi.
Da sua amiga, Carly Jo
Quando Katie terminou de
ler a carta, ela enxugou as lágrimas e deslizou o dedo pelas páginas antes de
voltar a guardá-las no envelope. Ela se sentou em silêncio, pensando nas
palavras que Jo havia escrito, já sabendo que faria exatamente o que ela pedia.
“Não por causa da carta”, pensou ela, mas porque sabia
que, de alguma maneira inexplicável, fora Jo quem a estimulara gentilmente a
dar uma chance a Alex.
Ela sorriu. — Obrigada por confiar em mim — sussurrou
ela, e soube que Jo sempre estivera certa, o tempo todo. Ela havia se apaixonado por Alex e pelas crianças e já sabia que não era capaz de imaginar seu
futuro sem a presença deles. “Hora de ir para casa”, pensou ela. Hora de ir ver
sua família.
Fora da cabana, a lua era um disco branco e brilhante
que a guiava enquanto ela se dirigia para o jipe. Antes de entrar, entretanto, ela deu uma última olhada sobre o ombro em direção à casa de Jo.
As luzes estavam acesas e as janelas da cabana
brilhavam com uma luminosidade amarela. Na cozinha pintada, ela viu Jo em pé ao
lado da janela. Embora estivesse longe demais para perceber qualquer coisa além
daquilo, Katie teve a impressão de que ela lhe sorria. Jo levantou a mão em um
aceno amistoso e Katie se lembrou mais uma vez de que o amor é capaz de
alcançar o impossível.
Entretanto, quando Katie piscou, a cabana estava
novamente às escuras. Não havia nenhuma luz acesa e Jo desaparecera, mas achou
que podia ouvir as palavras da carta sendo levadas pela brisa suave que
soprava.
Se Alex escolheu você,
então eu quero acreditar que eu também a escolhi.
Katie sorriu e se virou, sabendo que aquilo não era
uma ilusão ou algo criado pela sua imaginação. Ela sabia o que havia visto.
Ela
sabia no que acreditava.
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