Capítulo Vinte

Na manha seguinte encontrei Savannah em pé no alpendre,e ela acenou quando entrei no rancho. Ela se aproximou enquanto eu estacionava. Eu meio que esperava ver Tim na porta atrás dela, mas ele não apareceu.
― Oi ― disse ela, tocando meu braço. Obrigada por ter vindo.
― Imagina ― eu disse, encolhendo os ombros relutante.
Vislumbrei um lampejo de compreensão em seus olhos quando ela perguntou: ― Você dormiu bem?―
― Não muito.
Ela deu um sorriso irônico. Você está pronto?
― Como sempre.
― Tudo bem ― ela disse. Deixe-me apenas pegar as chaves. A menos que você queira dirigir.
Não entendi de primeira o que isso queria dizer. Vamos sair?― Indiquei a casa. Pensei que iríamos ver Tim.
― Nós vamos ― ela disse. ― Ele não está aqui.
― Onde ele está?
Foi como se ela não tivesse ouvido.
― Você quer dirigir?
― Sim, acho que sim ― disse, sem esconder a minha confusão, mas sabendo que ela de alguma forma esclareceria as coisas quando estivesse pronta. Abri a porta para ela e contornei o carro até o banco do motorista para sentar-me ao volante. Savannah passou a mão sobre o painel, como se estivesse tentando provar para si mesma que era real.
― Eu me lembro deste carro. Tinha uma expressão de nostalgia. Era do seu pai, certo? Uau, não acredito que ainda esteja andando.
― Ele não dirigia tanto assim ― disse. ― Só ia trabalhar e fazer compras.
― Ainda assim.
Ela colocou o cinto de segurança, e me perguntava se ela passava a noite sozinha.
― Para que lado? ― perguntei.
― Na estrada, vire à esquerda ― disse ela. ― Direto para a cidade.
Nenhum de nós falou. Ela passou o tempo todo olhando pela janela do passageiro com os braços cruzados. Eu podia ter ficado ofendido, mas nada em sua expressão denunciava que aquela preocupação tinha a ver comigo, e deixei-a sozinha com seus pensamentos.
Nos arredores da cidade ― ela balançou a cabeça, como se repentinamente tomasse consciência do silêncio em que estávamos. Sinto muito,― disse. Acho que minha companhia deixa muito a desejar.
― Tudo bem ― disse, tentando mascarar a minha crescente curiosidade. 
Ela apontou em direção ao pára-brisa. Na próxima esquina, vire à direita.
― Aonde estamos indo?
Ela não respondeu de imediato. Em vez disso, olhou pela janela do passageiro.
― O hospital ― disse finalmente.

***

Segui-a através de corredores aparentemente intermináveis, até finalmente chegar à recepção dos visitantes. Atrás do balcão, um voluntário idoso estendeu uma prancheta. Savannah pegou a caneta e assinou seu nome automaticamente.
― Você está firme, Savannah?
― Tentando ― Savannah murmurou.
― Vai ficar tudo bem. A cidade inteira está rezando por ele...
― Obrigada ― disse Savannah. Ela devolveu a prancheta e olhou para mim. Ele está no terceiro andar ― explicou. Os elevadores ficam ali no corredor.
Eu a segui com um nervoso no estômago. Chegamos ao elevador no momento em que algumas pessoas desciam. Quando as portas se fecharam, parecia que estávamos em um túmulo.
As portas do elevador se abriram no terceiro andar, e Savannah seguiu pelo corredor comigo a reboque. Ela parou diante de um quarto que estava com a porta aberta e virou-se para mim. 
― Acho que devo entrar primeiro ― disse ela. Você pode esperar aqui?
― Claro.
Ela demonstrou gratidão e virou-se em seguida. Deu um longo suspiro antes de entrar na sala. 
― Oi querido ― a ouvi dizer com a voz animada. Você está bem?
Não ouvi mais do que isso nos dois minutos seguintes. Fiquei no corredor, absorvendo o mesmo ambiente estéril e impessoal que conhecera enquanto acompanhava meu pai. O ar cheirava a desinfetante genérico, e vi um auxiliar de enfermagem empurrar um carrinho com comida para dentro de um quarto. Na metade do corredor, notei um grupo de enfermeiras atrás de um balcão. Atrás da porta da frente, alguém vomitava.
― Tudo bem ― disse Savannah, colocando a cabeça para fora. Por baixo da aparência corajosa ― eu ainda notava sua tristeza. Pode entrar. Disse para ele esperar uma surpresa.
Eu a segui, me preparando para o pior. Tim estava sentado na cama com um cateter ligado a seu braço. Parecia exausto, e sua pele estava translúcida de tão pálida. Ele havia emagrecido ainda mais do que meu pai, e quando o vi, meu único pensamento era que ele estava morrendo. Só a bondade em seus olhos não fora afetadas. Do outro lado da sala havia um jovem no final da adolescência, talvez com vinte anos, balançando a cabeça de um lado para o outro, e soube imediatamente que era Alan. O quarto estava repleto de flores: dezenas de buquês e cartões espalhados por todas as mesas.Savannah sentou na cama ao lado do marido e pegou sua mão.
― Oi, Tim ― eu disse.
Ele parecia cansado demais para sorrir, mas conseguiu mesmo assim.
― Oi, John. É bom ver você de novo.
― Você também ― disse. ― Como você está?
Assim que falei, percebi como soava ridículo. Tim devia estar acostumado, pois não hesitou.
― Estou bem ― disse. ― Estou me sentindo melhor agora.
Concordei. Alan continuou a balançar a cabeça. Fiquei olhando para ele e me sentindo um intruso em eventos que gostaria de poder ter evitado.
― Este é meu irmão, Alan ― ele disse.
― Oi, Alan.
Como Alan não respondeu, Tim sussurrou: 
― Ei, Alan. Tudo bem. Ele não é médico. É um amigo. Vá dizer olá.
Levou alguns segundos, mas Alan finalmente se levantou da cadeira. Ele caminhou com dificuldade pelo quarto e, apesar de não me olhar nos olhos, estendeu a mão. 
― Oi, eu sou o Alan ― disse com a voz surpreendentemente monocórdia.
― Prazer em conhecê-lo ― respondi, apertando sua mão. Era flácida. Ele chacoalhou uma vez, depois soltou e voltou ao seu lugar.
― Há uma cadeira se você quiser sentar ― disse Tim.
Atravessei o quarto e me sentei. Antes que pudesse falar, Tim respondeu à pergunta em minha cabeça.
― Melanoma ― disse ele. ― Caso você esteja se perguntando.
― Mas você vai ficar bem, certo?
Alan balançou a cabeça ainda mais rápido e começou a bater suas coxas. Savannah se virou. Eu já sabia a resposta e desejei não ter feito a pergunta.
― Isso é o que os médicos acham ― Tim respondeu. ― Estou em boas mãos. ― Sabia que a resposta era mais para Alan que para mim, e Alan começou a se acalmar.
Tim fechou os olhos e os abriu novamente, tentando reunir forças. 
― Estou contente de ver que você voltou inteiro ― disse ele. Rezei por você o tempo todo que você esteve no Iraque.
― Obrigado ― disse eu.
― O que você tem feito?Ainda no exército, suponho.
Ele indicou meu corte de cabelo, e eu passei a mão no cabelo. Sim. Parece que estou virando um dos soldados que se alistam pela vida toda.
― Bom ― disse ele. 
― O Exército precisa de pessoas como você.
Não disse nada. A cena me pareceu surreal, era como ver a si mesmo em um sonho. Tim virou para Savannah. Querida, você leva o Alan para pegar um refrigerante? Ele não bebeu nada desde cedo. E, se você puder, talvez consiga convencê-lo a comer.
― Claro ― disse ela. Savannah beijou-o na testa e levantou-se da cama. Ela parou na porta. Vamos, Alan. Vamos pegar algo para beber, ok?
Para mim, parecia que Alan processava as palavras lentamente. Finalmente, ele se levantou e seguiu Savannah, ela colocou a mão nas costas dele a caminho do corredor. Quando os dois saíram, Tim me encarou novamente. 
 ― Isso tudo é realmente muito difícil para Alan. Ele não está aceitando bem.
 ― E como poderia?
 ― Mas não se engane com o gato de ele balançar a cabeça. Não tem nada a ver com autismo ou inteligência. É mais como um tique que ele tem quando está nervoso. A mesma coisa quando ele começou a bater nas coxas. Ele sabe o que está acontecendo, mas é afetado de um jeito que normalmente deixa os outros desconfortáveis.
Unia as mãos.  ― Não me deixa desconfortável ― disse eu.  ― Meu pai também tinha as dele. Ele é seu irmão, e é óbvio que está preocupado. Faz sentido.
Tim sorriu.  ― É gentileza sua dizer isso. Um monte de gente fica assustada.
 ― Eu não ― disse, balançando a cabeça.  ― Sei que posso com ele.
Extraordinariamente ― ele riu, mas isso exigiu um grande esforço.
 ― Tenho certeza que pode ― disse.  ― Alan é delicado. Provavelmente muito delicado. Ele nem mesmo mata moscas.
Concordei, reconhecendo que toda aquela conversa era apenas o jeito dele de me deixar mais confortável. Não estava funcionando.
 ― Quando descobriu?
 ― Um ano atrás. Senti coceira em uma verruga na parte de trás da perna. Quando cocei ― ela sangrou. Eu não me preocupei, é claro, até voltar a sangrar quando cocei de novo. Seis meses atrás, fui ao médico. Foi em uma sexta-feira. Fiz a cirurgia e comecei o tratamento com interferon* na segunda feira. Agora estou aqui." 

"Você ficou esse tempo todo no hospital?"
"Não. Entro e saio. Normalmente, o interferon é administrado no ambulatório, mas eu e ele não nos damos muito bem. Tenho intolerância, então agora eles fazem aqui, para o caso de eu ficar muito enjoado ou me desidratar. Como aconteceu ontem."
*Proteína produzida por animais usada no tratamento de câncer e de outras doenças.
"Sinto muito" ― disse.
"Eu também."
Olhei ao redor e meus olhos pousaram sobre um porta-retratos barato na cabeceira de Tim no qual ele e Savannah aparecem em pé abraçando Alan. "Como Savannah está reagindo?", perguntei.
"Como era de se esperar." Tim alisou uma dobra na sua ficha do hospital com a mão livre. "Ela tem sido ótima. Não só comigo, mas também com o rancho. Ela tem de cuidar de tudo ultimamente, mas nunca reclama. E sempre que está comigo, tenta ser forte. Ela vive me dizendo que tudo vai dar certo." Ele esboçou um sorriso amarelo. "Metade do tempo, ainda acredito nela."
Quando não respondi ― ele se esforçou para sentar mais reto na cama. Ele estremeceu, mas a dor passou, e ele voltou a si. " Savannah contou que você jantou no rancho na noite passada."
"Sim" ― disse.
"Aposto que ela ficou contente de ver você. Sei que ela sempre se sentiu mal por ter acabado do jeito que acabou, e eu também. Devo um pedido de desculpas a você." 

"Não", levantei as mãos. "Está tudo bem."
Ele sorriu irônico. "Você só diz isso porque estou doente, e ambos sabemos disso. Se eu estivesse saudável, provavelmente você iria quebrar meu nariz de novo."
"Talvez", admiti. Ele riu de novo, e desta vez ouvi o som da doença em sua risada.
"Eu mereci" ― ele disse, alheio aos meus pensamentos. "Sei que você pode não acreditar, mas me sinto mal com o que aconteceu. Sei que vocês dois realmente gostavam um do outro."
Debrucei-me, apoiando em meus cotovelos. "O que passou, passou" ― disse.
Eu não acreditei, e ele não acreditou em mim quando eu disse isso. Mas foi o suficiente para nós dois deixarmos isso de lado. "O que te trouxe aqui? Depois de todo esse tempo?"
"Meu pai faleceu" ― eu disse. "Na semana passada."
Apesar da doença seu rosto refletiu uma simpatia genuína. "Sinto muito, John. Sei o quanto ele significava para você. Foi repentino?"
"No final, sempre é. Mas ele estava doente havia algum tempo."
"Isso não significa que seja mais fácil."
Fiquei me perguntando se ele se referia só a mim ou a Savannah e Alan também.
"Savannah me disse que você perdeu seus pais."
"Acidente de carro" ― disse ele, forçando as palavras. "Foi... inacreditável. Tínhamos 

acabado de jantar com eles duas noites antes, e no memento seguinte ― eu estava tomando as providências para os enterros. Antes não parece real. Sempre que estou em casa, acho que vou ver minha mãe na cozinha meu pai cuidando do jardim." Ele hesitou, e eu sabia que ele estava revivendo tais imagens. Por fim ― ele balançou a cabeça. "Isso aconteceu com você? Quando estava em casa?"
"O tempo todo."
Ele inclinou a cabeça para trás. "Parece que foram dois anos bem difíceis para nós dois. O suficiente para nos fazer duvidar da fé."
"Até mesmo você?"
Ele deu um sorriso indiferente. "Eu disse duvidar. Não disse que minha fé acabou."
"Não, não creio que acabaria."
Ouvi a voz de uma enfermeira se aproximando. Achei que ela fosse entrar, mas ela continuou seu caminho para outro quarto.
"Estou feliz que você veio para ver Savannah" ― ele disse. "Sei que soa banal, considerando tudo o que vocês dois passaram, mas ela precisa de um amigo agora."
Minha garganta estava apertada. "Sim", foi tudo que conseguiu pensar e dizer.
Ele ficou quieto, e entendi que não diria mais nada sobre o assunto. Com o tempo, Tim pegou no sono e fiquei ali sentado olhando para ele, minha cabeça curiosamente vazia
***
"Desculpe não ter contado ontem", Savannah falou uma hora depois. Quando ela e 

Alan voltaram ao quarto e encontraram Tim dormindo ― ela fez sinal para eu a seguir até a lanchonete. "Fiquei surpresa de ver você, e sabia que deveria ter contado, mas todas as vezes que eu tentei, simplesmente não consegui."
Havia duas xícaras de chá na mesa, já que nenhum de nós tinha apetite. Savannah ergueu a xícara e colocou-a de volta.
"É que ontem foi um daqueles dias, sabe? Passei horas no hospital, sob os olhares piedosos das enfermeiras e... bem, parece que eles me matam aos pouquinhos. Sei que isso é ridículo, já que Tim vai superar, mas é tão difícil vê-lo doente. Eu odeio. Sei que preciso estar presente para apoiá-lo e quero estar presente, mas a questão é que é sempre pior do que eu esperava. Ele ficou tão mal depois do tratamento ontem que pensei que ele estava morrendo. Ele não parava de vomitar, e quando não saía mais nada ― ele vomitava seco. A cada cinco ou dez minutos ― ele começava a gemer e se mexer na cama tentando evitar, mas não podia fazer nada. Eu o abracei e confortei, mas não sei nem como começar a descrever o quanto isso me deixa desamparada." Ela tirou o sachê de chá de dentro da água. "É assim toda vez" ― disse.
Fiquei mexendo na asa da minha xícara. "Gostaria de saber o que dizer."
"Não há nada que você possa dizer ― eu sei. Por isso estou contando a você. Porque sei que você consegue lidar com isso. Realmente não tenho mais ninguém. Nenhum dos meus amigos pode entender o que estou passando. Minha mãe e meu pai têm sido ótimos, mas... Sei que farão qualquer coisa que eu pedir, estão sempre se oferecendo para ajudar, e mamãe traz comida para nós. Mas toda vez que aparece ― ela está uma pilha de nervos, estão sempre à beira do choro. É como se ela morresse de medo de dizer ou fazer algo errado. Por isso, quando tenta ajudar ― eu que tenho de apoiá-la em vez do contrário. Odeio falar isso dela, porque ela está dando o máximo, é minha mãe e eu a amo, mas queria que ela fosse mais forte, sabe?"
Lembrando a mãe dela, assenti. "E o seu pai?" 

"O mesmo, mas de um jeito diferente. Ele evita o assunto. Não quer falar nada a respeito. Quando estamos juntos, conversa sobre o rancho, o meu trabalho, mas nada de Tim. É como se tivesse tentando compensar a preocupação incessante da minha mãe, mas nunca pergunta o que está acontecendo ou como eu estou suportando. Ela balançou a cabeça.  ―  E por fim há Alan. Tim é tão bom com ele, e gosto de pensar que está ficando melhor, mas ainda... há momentos em que ele começa a se machucar ou quebrar as coisas, e eu acabo chorando porque não sei o que fazer. Não me interprete mal ― eu tento, mas não sou Tim, e ambos sabemos disso.
Nos olhamos nos olhos por um momento antes de eu desviar os meus. Tomei um gole de chá, tentando imaginar como era a vida dela agora.
"Tim contou o que está acontecendo? O melanoma?"
"Um pouco" ― disse. "Não o suficiente para saber a história toda. Ele disse que achou uma verruga que estava sangrando. Ele não deu importância por um tempo, até que foi procurar um médico."
Ela assentiu. "É uma dessas coisas loucas, não? Quero dizer, se Tim tomasse muito sol, talvez eu entendesse. Mas foi na parte de trás da perna. Você o conhece, consegue imaginá-lo de bermuda? Ele quase nunca usa shorts, mesmo na praia, e sempre enchia todo mundo para passar protetor solar. Ele não bebe, não fuma, é cuidadoso com o que come. Mas, por algum motivo, teve um melanoma. Eles cortaram a área em volta da verruga e, por causa do tamanho, retiraram dezoito gânglios linfáticos. Dos dezoito, um deu positivo para melanoma. Ele começou o interferon, que é o tratamento padrão e dura um ano inteiro, e tentamos ficar otimistas. Mas depois as coisas começaram a dar errado. Primeiro com o interferon, depois ele teve celulite na incisão junto à virilha algumas semanas após a cirurgia."
Quando franzi a testa ― ela se deteve. 

"Desculpe. Estou tão acostumada a falar com médicos estes dias. Celulite é uma infecção da pele, e a de Tim foi muito grave. Ele passou dez dias na unidade de terapia internsiva por causa disso. Pensei que iria perdê-lo, mas ele é um lutador, sabe?Ele sarou e continuou o tratamento.Porém, no mês passado encontramos lesões cancerígenas perto do local do melanoma original. Isso, claro, significava outra rodada de cirurgia, e pior ainda, significava que o interferon provavelmente não estava funcionando tão bem quanto devia. Então ele fez uma tomografia PET e uma ressonância magnética, e eles encontraram algumas células cancerígenas no pulmão."
Ela olhou para a xícara de chá. Eu estava sem palavras, e me sentia exausto. Ficamos em silêncio por um longo tempo.
"Sinto muito", finalmente sussurrei.
Minhas palavras a despertaram. "Não vou desistir" ― ela disse, sua voz começando oscilar. "Ele é um homem tão bom. Ele é doce, paciente, e eu o amo muito. Não é junto. Não faz dois anos que estamos casados."
Ela olhou para mim e respirou fundo algumas vezes, tentando recuperar a compostura.
"Ele precisa sair daqui. Deste hospital. A única coisa que eles fazem aqui é o interferon, e, como eu disse, não está funcionando como deveria. Ele precisa ir para algum lugar como o MD Anderson ou Mayo Clinic ou o Johns Hopkins. Há pesquisas de ponta em andamento nesses lugares. Se o inteferon não está funcionando, pode haver outra droga para adicionar- eles estão sempre fazendo combinações, mesmo experimentais. Estão fazendo bioquimioterapia e testes clínicos. MD Anderso deve começar a testar uma vacina novembro-não para prevenção, como a maioria das vacinas, mas para tratamento-, e os dados preliminares tem mostrado bons resultados. Eu quero que ele faça parte dessa pesquisa."
 ― Então vá ― eu insisti. 
Ela deu uma risada curta. 
 ― Não é assim tão fácil.
 ― Por quê? Parece bastante simples para mim. Assim que ele sair daqui, vocês entram no carro e vão.
 ― Nosso seguro não pagará por isso ― disse ela.  ― Pelo menos não agora. Ele está recebendo o tratamento padrão. E, acredite se quiser, a companhia de seguros tem sido bastante sensível até agora. Eles pagaram todas as internações, todos os interferon, e todos os extras sem problemas. Eles até designaram uma assistente social para mim, e ela é simpática à nossa situação. Mas não há nada que ela possa fazer, pois o médico acha que é melhor darmos o interferon por mais tempo. Nenhuma companhia de seguros do mundo vai pagar por tratamentos experimentais. E nenhuma seguradora aceita pagar tratamentos fora do padrão, especialmente em outros Estados e quando não há certeza de que vão funcionar.
 ― Processe-os se for preciso.
 ― John, nossa seguradora não pestanejou para pagar todos os custos de UTI e internações extras, e a verdade é que Tim está recebendo o tratamento adequado. A questão é, não posso provar que Tim ficará melhor em outro lugar, recebendo tratamentos alternativos. Acho que poderia ajudá-lo, tenho esperança de que iria ajudá-lo, mas ninguém tem certeza absoluta. Ela balançou a cabeça,  ― De qualquer forma, mesmo se eu levar isso à justiça e a companhia de seguros acabar pagando tudo, isso leva tempo... exatamente o que não temos.Ela suspirou.  ― Meu ponto em não se trata apenas de dinheiro, é um problema de tempo.
 ― De quanto você está falando?
 ― Muito. E se Tim acabar no hospital com infecção e for para a UTI de novo, não consigo nem imaginar. Mais do que eu jamais vou conseguir pagar, com certeza.
 ― O que você vai fazer? 
 ― Arrumar dinheiro, ela disse.  ― Não tenho escolha. E a comunidade tem ajudado. Tão logo souberam sobre Tim, fizeram reportagens na televisão local e no jornal, e as pessoas da cidade inteira prometeram começar a recolher dinheiro. Eles abriram uma conta bancária especial e tudo. Meus pais ajudaram. O lugar que nós trabalhamos ajudou. Os pais de algumas crianças com quem trabalhamos ajudaram. Ouvi dizer que ainda tem jarros com doações em muitos estabelecimentos.
Lembrei-me da visão do frasco ao final do balcão no salão de bilhar, no dia em que cheguei a Lenoir. Eu tinha contribuído com dois dólares, mas de repente aquilo me pareceu completamente inadequado.
 ― Falta muito?
 ― Não sei. Ela balançou a cabeça, como se não quisesse pensar a respeito.  ― Isso começou há pouco tempo, e desde que Tim está em tratamento ― eu fico aqui e no rancho. Mas estamos falando de um monte de dinheiro. Ela afastou a xícara de chá e abriu um sorriso triste.  ― Nem sei porque estou contando a você. Quer dizer, não posso garantir que nenhum desses lugares irá ajudá-lo. Só sei dizer que, se ele ficar, não vai sobreviver. Isso também pode acontecer nos outros lugares, mas pelo menos há uma chance... e agora, isso é tudo que tenho.
Ela parou, incapaz de continuar, olhar perdido sobre a mesa manchada.
 ― Você quer saber o que é louco? ― ela perguntou afinal.  ― Você é o único para quem contei tudo isso.Não sei como, sei que é a única pessoa que pode vir a entender o que estou passando, sem eu precisar escolher as palavras.Ela ergueu a xícara e abaixou-a novamente,  ― Sei que não é justo, considerando seu pai...
 ― Tudo bem, tranquilizei-a.
 ― Talvez ― ela disse.  ― Mas também é egoísta. Você está tentando lidar com as próprias emoções após perder seu pai, e aqui estou eu, sobrecarregando você com as minhas, sobre algo que pode ou não acontecer. Ela se virou para olhar pela janela da lanchonete, mas eu sabia que ela não estava vendo o gramado inclinado do lado de fora.
 ― Ei ― eu disse, pegando a mão dela.  ― Estou falando sério. Estou contente por você ter me contado, mesmo que seja só para desabar. Porque você acha que vim aqui? Porque eu precisava encontrar alguém que me ouvisse.
Com o tempo, Savannah encolheu os ombros.  ― Então somos assim, hein?Dois guerreiros feridos à procura de apoio.
 ― Isso parece muito certo.
Ela levantou os olhos e encarou os meus.  ―  Sorte nossa, ela sussurrou.
Apesar de tudo, senti meu coração saltar.
 ― Sim, ecoei.  ― Sorte nossa.

***

Passamos a maior parte da tarde no quarto de Tim. Ele estava dormindo quando chegamos, acordou por alguns minutos e depois dormiu novamente. Alan mantinha vigília ai pé da sua cama, ignorando minha presença e concentrado no irmão. Savannah alternou-se entre a cabeceira de Tim e cadeira ao meu lado. Quando ela se aproximava, falávamos da doença de Tim, de câncer de pele em geral, e das especificidades dos possíveis tratamentos alternativos. Ela passou semanas pesquisando na internet e conhecia em detalhes todas as pesquisas em curso. Sua voz nunca subiu acima do sussurro ― ela não queria que Alan ouvisse. Quando ela terminou ― eu sabia mais sobre melanoma do que imaginava ser possível.
Pouco depois da hora do jantar, Savannah finalmente se levantou. Tim tinha dormido a maior parte da tarde, e pelo beijo de despedida que ela lhe deu ― ela acreditava que ele continuaria dormindo à noite também. Ela beijou-o uma segunda vez, depois pegou sua mão e indicou a porta. Saímos em silencio.
 ― Direto para o carro ― disse ela quando estávamos no corredor.
 ― Você vai voltar?
 ― Amanhã. Se ele acordar, não quero dar motivo para ele achar que tem que ficar acordado. Ele precisa descansar.
 ― E o Alan?
 ― Ele vai de bicicleta ― disse ela.  ― Ele vem de bicicleta todas as manhas e volta de bicicleta à noite. Ele não vai comigo, mesmo se eu pedir. Mas ele vai ficar bem. Vem fazendo a mesma coisa há meses.
Poucos minutos depois, saímos do estacionamento do hospital e pegamos o trânsito da noite. O céu estava ficando cinza escuro, e nuvens pesadas se formavam no horizonte, pressagiando o mesmo tipo de tempestade que se vê no litoral. Savannah perdeu-se pensamentos e falou pouco. Em seu rosto, vi refletido o mesmo esgotamento que eu sentia. Não conseguia imaginar ter que voltar amanhã, depois de amanhã e no dia seguinte, sabendo o tempo todo que havia uma possibilidade de ele melhorar em outro lugar.
Quando chegamos à entrada, olhei para Savannah e notei uma lágrima escorrendo lentamente em seu rosto. Essa visão partiu meu coração, mas quando ela notou que eu a observava, pareceu surpresa de estar chorando. Decidi estacionar embaixo do salgueiro, ao lado do caminhão velho. Foi quando as primeiras gotas de chuva começaram a bater no pára-brisa.
À medida que diminuía a marcha, me perguntei de novo se seria adeus. Antes que eu pudesse pensar em algo para dizer, Savannah virou-se para mim.  ― Você está com fome? ― perguntou.  ― Há uma tonelada de comida na geladeira.
Algo naquele olhar me advertia que eu deveria declinar, mas acabei aceitando.  ― Adoraria comer algo ― disse.
 ― Estou contente ― ela respondeu, com voz suave.  ― Realmente não quero ficar sozinha hoje à noite.
Saímos do carro, a chuva aumentou. Corremos até a porta da frente, mas quando chegamos ao alpendre, minhas roupas estavam molhadas. Molly nos ouviu, e assim que Savannah abriu a porta, o cachorro me ultrapassou disparado pela cozinha na direção da sala de estar. Observando o cão, pensei na minha chegada no dia anterior e o quanto as coisas haviam mudado no período em que ficamos separados. Era demais para processar. E como havia feito nas patrulhas no Iraque, blindei-me para focar apenas no presente e permanecer alerta ao que poderia vir a seguir.  ― Tem um pouco de tudo ― ela gritou a caminho da cozinha.  ― É assim que minha mãe lida com isso. Cozinhando. Temos cozido, chili, empadão de frango, porco grelhado, lasanha... Ela tirou a cabeça de dentro da geladeira quando entrei na cozinha.  ― Alguma coisa te parece apetitosa?
 ― Qualquer coisa ― disse.  ― O que você quiser está ótimo.
Notei um flash de decepção em seu rosto e imediatamente percebi que ela estava cansada de ter de tomar decisões. Limpei a garganta.
 ― Lasanha parece bom.
 ― Tudo bem ― ela disse.  ― Vou esquentar um pouco agora. Você está super faminto ou só com fome?
Pensei a respeito. 
 ― Só com fome ― eu acho. 
 ― Salada? Posso colocar azeitonas pretas e tomate. Fica ótimo com molho rancheiro e croutons.
 ― Parece ótimo.
 ― Bom ― disse ela.  ― Não vai demorar.
Observei Savannah tirar um pé de alface e tomates da gaveta inferior da geladeira. Ela lavou-os na torneira,cortou os tomates e a alface e jogou-os na tigela de madeira. Então cobriu a salada com azeitonas e colocou-a sobre a mesa. Serviu generosas porções de lasanha em dois pratos e pôs o primeiro no microondas. Havia uma firmeza em seus movimentos, como se as tarefas simples a tranqüilizassem.
 ― Eu não sei sobre você, mas vou querer uma taça de vinho. Ela apontou para um rack pequeno na bancada, perto da pia.  ― Tenho um bom Pinot Noir.
 ― Vou experimentar uma taça ― disse.  ― Você quer que eu abra?
 ― Não ― eu abro. Meu abridor é meio temperamental.
Ela abriu o vinho e serviu dois copos. Logo ela se sentou à minha frente, nossos pratos servidos. A lasanha estava fumegante, e o aroma me fez lembrar como eu estava com fome. Experimentei e continuei a comer.
 ― Uau,comentei.  ― Está muito bom.
 ― Está, não é? ― ela concordou. Em vez de comer, porém ― ela tomou um gole de vinho.  ― Também é a favorita de Tim. Depois que casamos ― ele sempre pedia para minha mãe fazer uma travessa. Ela adora cozinhar, e fica feliz quando as pessoas gostam da comida dela.
Observei-a correr o dedo pela borda do copo. O vinho vermelho capturava a luz como  a faceta de um rubi.
 ― Se você quiser mais, tem bastante, acrescentou ela.  ― Acredite em mim, você estaria me fazendo um favor. Na maioria das vezes, a comida vai para o lixo. Sei que deveria dizer para ela fazer menos, mas ela não aceitaria bem.
 ― É difícil para ela ― disse.  ― Ela sabe que você está sofrendo.
 ― Eu sei. Ela tomou outro gole de vinho.
 ― Você vai comer, não vai?, apontei para o prato intocado.
 ― Não estou com fome ― disse ela.  ― É sempre assim quando Tim está no hospital... Esquento alguma coisa, estou com vontade de comer, mas assim que coloco no prato, meu estômago vira. Ela olhou para o prato, disposta a experimentar, em seguida, balançou a cabeça.
 ― Faça por mim, pedi.  ― Dê uma garfada. Você tem que comer.
 ― Vou ficar bem
Parei o garfo a caminho da boca.  ― Faça por mim, então. Não estou acostumado com pessoas me olhando comer. É esquisito.
 ― Ok. Ela levantou o garfo, pegou um pedacinho minúsculo de comida e colocou na boca.  ― Feliz agora?
 ― Sim, bufei.  ― Foi exatamente o que eu quis dizer. Estou muito mais confortável. Talvez possamos dividir um par de migalhas para a sobremesa. Até lá continue segurando o garfo e fingindo. 
Ela riu.  ― Estou feliz por você estar aqui. ― Disse.  ― Atualmente, você é o único que sequer pensaria em falar assim comigo.
 ― Assim como? Honestamente?
 ― Sim ― disse ela.  ― Acredite ou não, pó exatamente o que quis dizer. Ela largou o garfo e empurrou o prato de lado, ignorando meu pedido.  ― Você sempre foi bom.
 ― Eu lembro de pensar a mesma coisa sobre você.
Ela jogou o guardanapo sobre a mesa.  ― Tempo bom aquele, hein?
O jeito que ela me olhou fez o passado retornar como uma avalanche, e por um momento revivi cada emoção, cada esperança e cada um de nossos sonhos. Ela era de novo a moça que conheci na praia com a vida toda pela frente, uma vida da qual eu queria fazer parte.
Então ― ela passou a mão pelos cabelos, e a aliança em seu dedo refletiu a luz. Baixei os olhos, concentrando-me no meu prato.
 ― Algo assim.
Dei mais uma garfada, tentando sem sucesso apagar as imagens. Assim que engoli, ataquei a lasanha novamente.
 ― O que há de errado? ― ela perguntou.  ― Você está irritado?
 ― Não, menti.
 ― Você está agindo como se estivesse. 
Ela era a mulher de que eu me lembrava, porém casada. Tomei um gole de vinho – um gole, observei, equivalia a todos os golinhos que ela tomara. Eu me recostei na cadeira.  ― Por que estou aqui, Savannah?
 ― O que quer dizer? ― disse ela.
 ― Isto ― eu disse, indicando a cozinha ao redor.  ― Me convidar para jantar, mesmo sem vontade de comer. Relembrar os velhos tempos. O que está acontecendo?
 ― Não está acontecendo nada ― ela insistiu.
 ― Então o que é? Por que você me convidou para entrar?
Em vez de responder a pergunta ― ela levantou e encheu a taça de vinho.  ―  Acho que só preciso de alguém para conversar ― ela sussurrou.  ― Como eu disse, não posso falar com minha mãe ou meu pai, não posso falar nem com Tim desse jeito. Ela parecia quase derrotada.  ― Todo mundo precisa de alguém para conversar.
Ela estava certo, e eu sabia disso. Foi a razão pela qual vim para Lenoir.
 ― Eu entendo ― disse, fechando os olhos. Quando abri os olhos de novo, vi que Savannah estava me avaliando.  ― É só que não sei ao certo o que fazer com tudo isso. O passado. Nós. Você casada. Mesmo o que está acontecendo com Tim. Nada disso faz muito sentido.
Seu sorriso estava cheio de desgosto. 
 ― E você acha que faz sentido para mim?
Eu não disse nada e ela colocou a taça de lado. 
 ― Você quer saber a verdade? ― ela perguntou, sem esperar por uma resposta.  ― Só estou tentando chegar ao fim do dia com energia suficiente para enfrentar o dia seguinte. Ela fechou os olhos como se fosse doloroso admitir, em seguida abriu-os novamente.  ― Sei o que você ainda sente por mim, e gostaria de  te dizer que desejo secretamente saber tudo que aconteceu com você desde que enviei aquela carta horrível. Mas, sendo honesta? ― ela hesitou.  ― Não tenho certeza se quero realmente saber. Só sei que quando você apareceu ontem, me senti... melhor. Não ótima, não bem, mas também não me senti mal. É isso. Nos últimos seis meses ― eu só me senti mal. Acordo todo dia nervosa, tensa, irritada, frustrada e aterrorizada com a ideia de perder o homem com quem casei. É só isso que sinto até o sol se pôr ― ela prosseguiu.  ― Todos os dias, o dia inteiro, nos últimos seis meses. Essa é a minha vida agora, mas a parte mais difícil é que daqui em diante só vai piorar. Agora tenho a responsabilidade adicional de tentar encontrar algum jeito de ajudar meu marido. De tentar encontrar um tratamento que o ajude. De tentar salvar a vida dele.
Ela fez uma pausa e olhou atentamente para mim, tentando avaliar minha reação.
Sei que havia palavras para confortar Savannah, mas como de costume, não sabia o que dizer. Só sabia que ela ainda era a mulher por quem me apaixonei, a mulher que eu amava, mas que jamais poderia ter.
 ― Sinto muito ― disse ela por fim soando cansada.  ― Não quero colocar você em uma situação difícil. Ela abriu um sorriso frágil.  ― Apenas queria que você soubesse que estou feliz por você estar aqui.
Eu me concentrei nos veios da madeira da mesa, tentando manter meus sentimentos sob controle. 
 ― Bom ― disse.
Ela perambulou em volta da mesa. Serviu mais um pouco de vinho na minha tala, embora eu só tivesse tomado um gole. 
 ― Abro meu coração e tudo o que você diz é ''Bom''?
 ― O que você quer que eu diga?
Savannah virou-se e foi em direção à porta da cozinha. 
 ― Que também está feliz por ter vindo ― disse com a voz quase inaudível. 
Com isso, ela saiu. Não ouvi a porta da frente se abrir, então deduzi que ela estivesse na sala.
O comentário me incomodara, mas não estava disposto a ir atrás dela. As coisas tinham mudado entre nós, e não havia modo de voltarem a ser como antes. Comi mais uma garfada de lasanha em teimosa desobediência, perguntando o que ela queria de mim. Foi ela quem mandou a carta, foi ela quem terminou tudo. Foi ela quem se casou. Iríamos fingir que nada daquilo havia acontecido?
Terminei de comer, levei os dois pratos para a pia e os enxagüei. Pela janela salpicada de chuva, vi meu carro e pensei que devia simplesmente sair sem olhar para trás. Seria mais fácil para nós dois assim. Mas quando vasculhava os bolsos em busca das chaves, congelei. Em meio ao tamborilar da chuva no telhado, ouvi um som proveniente da sala de estar, um som que desarmou minha raiva e confusão. Savannah, me dei conta, estava chorando.
Tentei ignorar o som, mas não consegui. Peguei o vinho e entrei na sala.
Savannah estava sentada no sofá, o copo de vinho em suas mãos. Ela levantou o rosto quando entrei.
Lá fora, o vento aumentara, e a chuva caia ainda mais forte. Para além da janela da sala, um relâmpago brilhou, seguido pelo estrondo do trovão, longo e grave.
Sentei ao lado dela, coloquei meu copo na mesa da centro e olhei ao redor. Em cima da lareira havia fotografias de Savannah e Tim no dia do casamento: uma onde eles cortavam o bolo, e outra na igreja. Ela estava radiante. Desejei que fosse eu a seu lado no retrato.
 ― Desculpe ― disse ela.  ― Sei que não devia estar chorando, mas não posso evitar.
 ― É compreensível, murmurei.  ― Tem muita coisa acontecendo com você. 
No silencio, ouvi as rajadas de chuva batendo contra as vidraças.
 ― Que tempestade, observei, agarrando-me às palavras para preencher o silêncio tenso.
 ― Sim ― ela disse, mal ouvindo.
 ― Você acha que Alan vai ficar bem?
Ela bateu os dedos contra o vidro.  ― Ele não sai ate parar de chover. Ele não gosta de relâmpagos. Mas não deve durar muito. O vento vai empurrar a tempestade para a costa. Pelo menos, é assim que tem sido ultimamente. ― Ela hesitou.  ― Você se lembra da tempestade que enfrentamos? Quando levei você para a casa que estávamos construindo?
 ― Claro.
 ― Ainda penso naquela noite. Foi a primeira vez que disse que te amava. Eu estava me lembrando daquela noite outro dia. Estava sentada aqui como agora. Tim estava no hospital, Alan ficou com ele e, enquanto olhava a chuva, tudo voltou. A memória era tão viva, parecia que tinha acabado de acontecer. E então a chuva parou e sabia que era hora de alimentar os cavalos. Voltei à minha vida normal de novo, e de repente foi como se eu tivesse apenas imaginado tudo. Como se tivesse acontecido com outra pessoa, alguém que nem conheço mais.
Ela se inclinou para mim. 
 ― O que você mais se lembra? ― ela perguntou.
 ― De tudo ― disse eu.
Ela olhou para mim sob seus cílios.
 ― Nada se destaca?
A tempestade lá fora tornou a sala escura e íntima, e senti um arrepio de ansiedade e  culpa sobre aonde aquilo iria parar. Eu a desejava mais do que já desejei qualquer pessoa, mas no fundo compreendia que Savannah não era mais minha. Senti a presença de Tim por todos os lados e sabia que ela estava fora de si.
Tomei um gole de vinho, em seguida devolvi o copo à mesa.
 ― Não. ― Mantive a voz firme. ― Nada se destaca. Mas foi por isso que você quis que eu sempre olhasse para a lua, certo? Para me lembrar de tudo.
Mas não disse que ainda saía para olhar a lua. Apesar da culpa que sentia por estar ali, me perguntava se ela também havia saído.
 ― Quer saber do que eu mais me lembro? ― ela perguntou.
 ― Quando quebrei o nariz do Tim?
 ― Não. Ela riu, depois ficou séria.  ― Da vez que fomos à igreja. Você se deu conta que foi a única vez que vi você usando gravata? Você devia se arrumar com mais freqüência. Ficou muito bonito.
Ela refletiu um pouco antes de olhar para mim novamente.
 ― Você está saindo com alguém? ― perguntou.
 ― Não.
Ela assentiu.
 ― Foi o que imaginei. Senão você teria mencionado algo.
Ela virou-se para a janela. À distância, via-se um dos cavalos a calope na chuva.
 ― Eu vou ter que alimentá-los daqui a pouco. Tenho certeza que eles já estão querendo saber onde estou.
 ― Eles vão ficar bem, assegurei.
 ― Fácil para você dizer. Confie em mim, eles podem ficar tão esquisitos quanto pessoas quando estão com fome.
 ― Deve ser difícil cuidar de tudo sozinha.
 ― É. Mas que escolha eu tenho? Pelo menos o nosso patrão foi compreensivo. Tim está afastado e quando ele está no hospital, eles me deixar ficar fora o tempo que for preciso.
Então, em tom de provocação, ela acrescentou:  ― Assim como no Exército, certo?
 ― Oh sim. Exatamente igual.
Ela deu uma risadinha, depois ficou séria novamente.
 ― Como foi no Iraque?
Eu estava prestes a fazer o meu comentário usual sobre a areia, mas disse:
 ―  É difícil descrever.
Savannah esperou, e alcancei meu copo de vinho, detendo-me. Mesmo com ela, não tinha certeza se queria entrar nesse terreno. Mas estava acontecendo algo entre nós, algo que eu desejava, mas também não desejava. Obriguei-me a olhar para a aliança de Savannah e imaginar a traição que, sem dúvida, ela sentiria mais tarde. Fechei os olhos e comecei pela noite da invasão.
Não sei quanto tempo falei, mas foi o suficiente para a chuva passar. Com o sol ainda completando sua lenta descendente, brilhavam no horizonte as cores do arco-íris. Savannah  reabasteceu sua taça. Quando terminei, estava totalmente exausto e sabia que não falaria daquilo nunca mais.
Savannah permaneceu em silêncio, fazendo apenas perguntas ocasionais para demonstrar que estava ouvindo a tudo que eu contei.
 ― É diferente do que eu imaginava ― ela observou.
 ― Sim? ― perguntei.
 ― Quando você passa os olhos pelas manchetes ou lê as histórias na maior parte do tempo, os nomes de soldados e de cidades iraquianas são apenas palavras. Mas para você, é pessoal... é real. Talvez real demais.
Eu não tinha mais nada a acrescentar, e senti que ela tomava minha mão. Seu toque fez algo pular dentro de mim.
 ― Queria que você não tivesse que ter passado por isso.
Apertei a mão dela e senti a resposta na mesma intensidade. Quando ela finalmente soltou, a sensação do toque permaneceu e, como um velho hábito redescoberto, a vi colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha. A visão me doeu por dentro.
 ― É estranho como funciona o destino ― disse, sua voz quase em um sussurro.  ― Você imaginou que sua vida iria acabar assim?
 ― Não ― eu disse.
 ― Nem eu ― ela respondeu.  ― Quando você voltou para a Alemanha, sabia que nós nos casaríamos um dia. Isso era mais certo do que qualquer coisa na minha vida. 
Olhei para meu copo enquanto ela continuava.
 ― Então na sua segunda licença, tive ainda mais certeza. Especialmente depois que fizemos amor.
 ― Não..., balancei a cabeça.  ― Não vá por aí.
 ― Por quê? ― ela perguntou.  ― Você se arrepende?
 ― Não. Não podia suportar olhar para ela.  ― Claro que não. Mas você está casada agora.
 ― Mas aconteceu ― disse ela.  ― Você quer que eu esqueça?
 ― Não sei ― disse.  ― Talvez.
 ― Não posso ― ela disse, parecendo surpresa e magoada.  ― Foi minha primeira vez. Nunca vou esquecer, e a seu próprio modo, será sempre especial para mim. O que aconteceu entre nós foi lindo.
Não confiava em mim para responder, e depois de um momento, ela se recompôs. Inclinando-se à frente, ela perguntou:
 ― Quando você descobriu que eu tinha casado com Tim, o que achou?
Esperei para responder, escolhendo minhas palavras com cuidado.
 ― Meu primeiro pensamento foi que, de certa forma, fazia sentido. Ele estava apaixonado por você há anos. Percebi assim que o conheci. ― Passei a mão sobre o rosto.  ― Depois, me senti... em conflito. Fiquei feliz por você ter escolhido alguém como ele, porque ele é um cara legal, e vocês dois têm muito em comum, mas então eu... fiquei triste. Não teríamos de esperar muito. Eu teria saído do exército há quase dois anos agora. 
Ela apertou os lábios.
 ― Lamento, murmurou.
 ― Eu também. Tentei sorrir.  ― Se você quer minha opinião honesta, acho que você deveria ter esperado por mim.
Ela riu honestamente, e fiquei surpreendido com o olhar de saudade em seu rosto. Ela pegou a taça de vinho.
 ― Também estive pensando sobre isso. Onde estaríamos, onde seria nossa casa, o que estaríamos fazendo com nossas vidas. Especialmente, recentemente. Ontem à noite, depois que você saiu, só conseguia pensar nisso. Sei que parece terrível, mas, nos últimos dois anos, tenho tentando me convencer que nosso amor, mesmo sendo real, nunca teria durado. Ela tinha a expressão desolada.  ― Você realmente teria se casado comigo, não é?
 ― Em um piscar de olhos. E ainda casaria, se eu pudesse.
O passado de repente parecia pairar sobre nós, em sua esmagadora intensidade.
 ― Foi real, não foi? ― Sua voz tremia.  ― Você e eu?
O cinza do crepúsculo refletia em seus olhos enquanto ela esperava a resposta. Nos momentos que se seguiram, senti o peso do prognóstico de Tim pairando sobre nós. Meus pensamentos desembestados eram mórbidos e errados e, no entanto ― eles existiam. Eu me odiava só de pensar na vida depois de Tim, desejando afastar tais pensamentos.
E ainda assim, não conseguia. Só queria tomar Savannah em meus braços, abraçá-la, reconquistar tudo o que havíamos perdido nos anos que ficamos separados. Instintivamente, comecei a inclinar-me para ela.
Savannah sabia o que estava por vir, mas não se afastou. Não no inicio. Com meus lábios se aproximando dela, no entanto, ela rapidamente se virou e derramou vinho em nós  dois.
Ela deu um pulo, colocou a taça na mesa e puxou a blusa para longe da pele.
 ― Sinto muito ― disse.
 ― Tudo bem ― ela disse.  ― Vou me trocar. Tenho que colocar de molho É umas das minhas favoritas.
 ― Ok ― disse.
Observei-a sair da sala e atravessar o corredor. Assim que ela entrou no quarto da direita, eu praguejei. Balancei a cabeça diante da minha própria estupidez, então notei o vinho na minha camisa. Levantei-me e entrei no corredor, procurando o banheiro.
Girei a maçaneta ao acaso, e dei de cara comigo mesmo no espelho do banheiro. Na imagem refletida ao fundo, vi Savannah pela porta entreaberta do quarto do outro lado do corredor. Ela estava sem blusa, de costas para mim, e embora eu tentasse, não consegui desviar o olhar.
Ela deve ter sentido, pois olhos sobre os ombros na minha direção. Pensei que ela fosse fechar a porta de repente ou se cobrir, mas ela não o fez. Em vez disso, encarou-me nos olhos, querendo que eu continuasse olhando para ela. Então, devagar, se virou.
Ficamos ali nos olhando através do reflexo do espelho, só o corredor estreito nos separava. Seus lábios estavam entreabertos, e ela levantou um pouco o queixo; mesmo se eu vivesse mil anos, jamais esqueceria como ela estava deslumbrante naquele momento. Não queria nada alem de atravessar o corredor e ir até lá, sabendo que ela me desejava tanto quanto eu a desejava. Mas fiquei onde estava, congelado pelo pensamento de que um dia ela me odiaria pelo que ambos obviamente queríamos. 
E Savannah, que me conhecia melhor do que ninguém, baixou os olhos como se de repente tivesse o mesmo entendimento. Ela me deu as costas no mesmo momento em que a porta da frente abriu, e ouvimos um gemido alto na escuridão.
Alan...
Eu me virei e corri para a sala de estar, Alan já tinha entrado na cozinha, e ouvi as portas dos armários sendo batidas, enquanto ele gemia, quase como se estivesse morrendo. Parei, sem saber o que fazer. Um momento depois, Savannah passou correndo e ajeitando a blusa.
 ― Alan! Estou chegando! ― ela gritou com a voz frenética.  ― Vai ficar tudo bem!
Alan continuou a gemer, e as portas a bater.
 ― Você precisa de ajuda? ― perguntei.
 ― Não. Ela sacudiu a cabeça.  ― Deixa eu cuidar disso. Isso acontece algumas vezes quando ele chega no hospital.
Ela correu para a cozinha, e mal pude ouvi-la falando com ele. Sua voz se perdia em meio ao clamor, mas tinha firmeza. Mudando um pouco de lugar ― eu a vi ao lado dele, tentando acalmá-lo. Não parecia ter qualquer efeito, e senti desejo de ajudar, mas Savannah permaneceu calma. Ela continuou a falar com voz inalterada e colocou a mão sobre a dele, acompanhando o bater das portas.
Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, o bate-bate ficou mais lento e rítmico; por fim lentamente cessou. Os gemidos de Alan seguiram o mesmo padrão. A voz de Savannah estava mais suave, e eu não podia mais distinguir as palavras.
Sentei no sofá. Minutos depois, levantei e fui até a janela. Estava escuro, as nuvens haviam se dissipado e havia um redemoinho de estrelas acima das montanhas. Curioso para saber o que estava acontecendo, fui até um ponto da sala de estar de onde vislumbrava a cozinha.
Savannah e Alan estavam sentados no chão, encostados nos armários. Alan repousava a cabeça no colo dela, que acariciava seus cabelos com ternura. Ele piscava rapidamente, como se estivesse ligado e precisasse ficar sempre em movimento. As lágrimas brilhavam nos olhos de Savannah, mas havia concentração em seu olhar, e percebi que ela estava determinada a não demonstrar o quanto sofria.
 ― Eu o amo, ouvi Alan dizer. A voz profunda do hospital desapareceu; aquele era o apelo dolorido de um garotinho assustado.
 ― Eu sei, querido. Também o amo tanto. Sei que você está com medo, e também estou com medo.
Ouvia no tom da voz que ela falava a verdade.
 ― Eu o amo. ― disse Alan repetidamente.
 ― Ele vai sair do hospital em dois dias. Os médicos estão fazendo tudo o que podem.
 ― Eu o amo.
 ― Eu sei. Eu também amo. Mais do que você pode imaginar.
Continuei a observá-los, sentindo-me um intruso, percebendo, de repente, que não pertencia àquele ambiente. Em todo o tempo que estive lá, Savannah não levantou os olhos, e me senti assombrado por tudo que havíamos perdido.
Apalpei meu bolso, peguei as chaves e voltei-me para a saída, sentindo as lágrimas queimando em meus olhos. Abri a porta, e apesar do rangido alto, sabia que Savannah não iria ouvir nada.
Desci os degraus cambaleando, pensando se já me sentira tão cansado antes. E mais tarde, dirigindo de volta ao hotel, ouvindo o motor do carro parado nos semáforos, sabia que as pessoas na rua iriam ver um homem chorando, um homem cujas lagrimas pareciam não ter fim.

***

Passei o resto da noite sozinho no meu quarto de hotel. Lá fora, ouvia estranhos passando pela porta carregando suas bagagens. Quando carros entravam no estacionamento, meu quarto era momentaneamente iluminado pelos faróis que projetavam imagens fantasmagóricas nas paredes. Pessoas em movimento, pessoas tocando a vida em frente. Deitado na cama, sentia inveja e me perguntava quando poderia dizer o mesmo de mim.
Nem me incomodei em tentar dormir. Pensei sobre Tim, mas, estranhamente, em vez da figura esquálida do quarto do hospital via apenas o jovem que conheci na praia, um estudante arrumadinho de sorriso fácil para qualquer um. Pensei em meu pai e imaginei como teriam sido suas ultimas semanas de vida. Tentei visualizar os funcionários ouvindo enquanto ele falava sobre moedas e rezei para que o diretor estivesse certo quando disse que meu pai morreu pacificamente durante o sono. Pensei sobre Alan e no mundo estranho habitado por sua mente. Mas, principalmente pensei em Savannah. Repassei tudo o que aconteceu naquele dia, e nutri-me interminavelmente do passado, tentando escapar do vazio que não desaparecia.
De manha, vi o sol nascer, uma bolinha de ouro emergindo da terra. Tomei banho e coloquei os poucos pertences que trouxera para o quarto de volta no carro. Pedi o café da manha na lanchonete do outro lado da rua, mas quando o prato fumegante foi colocado na minha frente, empurrei-o de lado e peguei a xícara de café, pensando se Savannah já estava em pé, alimentando os cavalos. 
Eram nove da manhã quando apareci no hospital. Assinei o registro e peguei o elevador para o terceiro andar; percorri o mesmo corredor do dia anterior. A porta de Tim estava entreaberta, e ouvi a televisão.
Ele me viu e sorriu surpreso.
 ― Oi John ― disse ele, desligando a televisão.  ― Entre. Eu estava só matando o tempo.
Sentei na mesma cadeira do dia anterior, e percebi que sua cor tinha melhorado. Ele se esforçou para sentar mais reto na cama, antes de se concentrar em mim novamente.
 ― O que o traz aqui tão cedo?
 ― Estou me preparando para ir embora. ― disse.  ― Tenho que pegar o avião para a Alemanha amanha. Você sabe como é.
 ― Sim ― eu sei. Ele balançou a cabeça.  ― Espero sair do hospital ainda hoje. Passei muito bem a noite passada.
 ― Bom ― eu disse.  ― Estou contente por ouvir isso.
Estudei-o, procurando sinal de desconfiança em seu olhar, qualquer noção do que quase aconteceu na noite anterior, mas não vi nada.
 ― Por que você realmente veio aqui, John? ― ele perguntou.
 ― Não tenho certeza, confessei.  ― Senti que precisava vê-lo. E que talvez você também quisesse me ver.
Ele assentiu e virou para a janela; de seu quarto, não dava pra ver nada, exceto um grande ar condicionado.  ― Quer saber o pior disso tudo? Ele não esperou a resposta.  ― Eu me preocupo com Alan ― disse.  ― Eu sei o que está acontecendo comigo. Sei que as chances não são boas e que há uma grande probabilidade que eu não sobreviva. Posso aceitar isso. Como disse ontem, ainda tenho a minha fé. Sei, ou pelo menos eu espero que existe algo melhor esperando por mim. E Savannah... sei que ela vai ficar devastada se acontecer algo comigo. Mas sabe o que aprendi quando perdi meus pais?
 ― Que a vida não é justa?
 ― Sim, isso também. Mas também aprendi que é possível seguir em frente, não importa quanto pareça impossível. Com o tempo, a dor... diminui. Pode não desaparecer completamente, mas depois de um tempo não é massacrante. É o que vai acontecer com Savannah. Ela é jovem ― ela é forte, e vai conseguir superar. Mas Alan... não sei o que vai acontecer com ele. Quem vai cuidar dele? Onde ele vai viver?
 ― Savannah vai cuidar dele.
 ― Eu sei que ela faria isso. Mas é justo com ela? Esperar que ela carregue essa responsabilidade?
 ― Não importa se é justo. Ela não vai deixar que nada aconteça a ele.
 ― Como? Ela vai ter de trabalhar, quem vai cuidar de Alan então? Além disso ― ele ainda é jovem. Tem apenas dezenove anos. Esperar que ela cuide dele nos próximos cinqüenta anos? Para mim é fácil. Ele é meu irmão. Mas Savannah... ― ele balançou a cabeça.  ― Ela é jovem e bonita. É justo esperar que ela não se case de novo?
 ― Do que você está falando?
 ― Será que seu novo marido estará disposto a cuidar de Alan?
Fiquei em silêncio ― ele ergueu as sobrancelhas.
 ― Você estaria?, acrescentou. 
Abri a boca para responder, mas as palavras não saíram. Seu rosto se tranquilizou.
 ― É o que penso deitado aqui. Quer dizer, quando não estou passando mal. Na verdade, penso em um monte de coisas. Inclusive você.
 ― Eu?
 ― Você ainda a ama, não é?
Mantive a expressão serena, mas mesmo ele leu meu rosto.  ― Tudo bem ― disse.  ― Já sei. Sempre soube. Ele pareceu quase melancólico.  ― Ainda lembro o rosto de Savannah na primeira vez que ela falou sobre você. Nunca tinha visto ela daquele jeito Fiquei feliz por ela, porque alguma coisa me fez confiar em você imediatamente. Ela sentiu muito a sua falta no primeiro ano que você ficou longe. Foi como se o coração dela se despedaçasse um pouquinho todo dia. Ela só pensava em você. Então descobriu que você não ia voltar, acabamos em Lenoir e meus pais morreram... Ele não terminou.  ― Você sempre soube que eu também esta apaixonado por ela, não é?
Assenti.
 ― Acho que sim. Ele limpou a garganta.  ― Eu a amava desde os doze anos. Mas só queria que ela fosse feliz. E, gradualmente ― ela também se apaixonou por mim.
 ― Por que você está me contando isso?
 ― Porque ― disse ele,  ― Não foi igual. Sei que ela me ama, mas ela nunca me amou do jeito que ama você. Nunca teve uma paixão ardente por mim, mas estávamos levando uma vida boa junto. Ela ficou tão feliz quando começamos o rancho... e fiquei muito feliz de poder fazer algo assim para ela. Estávamos felizes. Então fiquei doente, mas ela está sempre aqui, cuidando de mim como eu cuidaria dela se fosse o contrário. 
Ele parou em seguida, se esforçando para encontrar as palavras certas, e notei o tormento em sua expressão.
 ― Ontem, quando você entrou, vi o jeito que ela olhava para você e entendi que ela ainda te ama. Mais do que isso, entendi que ela sempre vai te amar. Fiquei com coração partido, mas sabe de uma coisa? Ainda estou apaixonado por ela, e só quero que ela seja feliz na vida. Quero isso mais do que tudo. É tudo que eu sempre quis para ela.
Minha garanta estava tão seca que eu mal conseguia falar.
 ― O que você está dizendo?
 ― Estou dizendo para você não esquecer Savannah, se acontecer alguma coisa comigo. E prometa que vai adorá-la para sempre, assim como eu.
 ― Tim...
 ― Não diga nada, John. Ele ergueu a mão, tanto para me calar quanto para se despedir.  ― Basta lembrar o que eu disse, ok?
Quando ele se virou, entendi que a conversa tinha acabado.
Então caminhei calmamente para fora do quarto, fechando a porta atrás de mim.

***

Fora do hospital, apertei os olhos diante do sol forte da manhã. Ouvi pássaros cantando nas arvores, mas embora os procurasse ― eles ficaram escondidos de mim.
O estacionamento estava cheio. Aqui e ali, havia pessoas caminhando para a entrada ou voltando para os carros. Todos pareciam tão cansados quanto eu, como se o otimismo demonstrado aos entes querido no hospital desaparecesse assim que estivessem sozinhos. Sei que sempre é possível haver milagres, não importa o quanto a pessoa esteja doente, e as mulheres na maternidade estavam alegres com seus recém-nascidos nos braços, mas a maioria dos visitantes, assim como eu, saía do hospital aos cacos.
Sentei em um bando em frente ao hospital, perguntando por que tinha ido até ali, arrependido. Repasse minha conversa com Tim diversas vezes e a imagem de sua angústia fez-me fechar os olhos. Pela primeira vez em anos, meu amor por Savannah pareceu... errado. O amor deve trazer alegria, deve conceder paz, mas aqui e agora só provocava dor. Para Tim, para Savannah, até para mim. Eu não viera tentar seduzir Savannah ou arruinar um casamento... ou vim? Não tinha certeza se eu era tão nobre como imaginava, e tal constatação me fez sentir vazio como uma lata de tinta enferrujada.
Tirei a foto de Savannah de minha carteira. Estaca amassada e gasta. Enquanto olhava aquele rosto, fiquei imaginando o que o próximo ano traria. Não sabia se Tim iria viver ou morrer, e nem queria pensar nisso. Sabia que, não importa o que acontecesse, a relação entre mim e Savannah jamais seria a mesma do passado. Nós nos conhecemos em um momento livre de preocupações e cheio de promessas; em seu lugar agora havia as duras lições do mundo real.
Esfreguei as têmporas, impressionado com o pensamento de que Tim intuiu o que quase aconteceu entre mim e Savannah na noite anterior, que talvez ele até esperasse por isso. As palavras dele deixaram isso bem claro, assim como o pedido para que eu prometesse amá-la com a mesma devoção que ele. Entendi exatamente o que ele sugeriu que eu fizesse se ele morresse, mas de algum modo, sua permissão me fez sentir ainda pior.
Finalmente me levantei e comecei a caminhar lentamente para o carro. Não sabia ao certo para onde ir, a não ser que precisava me afastar o máximo possível do hospital. Precisava sair de Lenoir, apenas para ter uma chance de pensar. Enfiei as mãos nos bolsos e pincei minhas chaves.
Somente quando cheguei perto do meu carro, notei a caminhonete de Savannah estacionada ali ao lado. Savannah estava sentada no banco do motorista e , quando me viu chegar, abriu a porta e saiu do carro. Ela esperou por mim, alisando a blusa enquanto me aproximava.
Parei a poucos metros de distância.
 ― John ― ela disse,  ― Você saiu sem se despedir na noite passada.
 ― Eu sei.
Ela assentiu ligeiramente. Nós dois compreendemos o motivo.
 ― Como você sabia que eu estava aqui?
 ― Eu não sabia ― disse ela.  ― Passei no hotel e me disseram que você fechou a conta. Quando cheguei aqui, vi seu carro e decidi esperar. Você falou com Tim?
 ― Sim. Ele está bem melhor. Acha que vai sair do hospital ainda hoje.
 ― Essa noticia é boa ― ela disse. Apontou para o meu carro.  ― Você está saindo da cidade?
 ― Tenho de voltar. Minha licença está acabando.
Ela cruzou os braços.
 ― Você iria se despedir?
 ― Não sei, admiti.  ― Não tinha pensado tão longe.
Vi um flash de mágoa e decepção em seu rosto.  ― O que você e Tim conversaram?
Olhei para o hospital por cima do ombro e depois de novo para ela.  ― Você deve fazer essa pergunta para ele. 
Ela crispou os lábios, seu corpo endureceu.
 ― Então isso é adeus?
Ouvi uma buzina na rua em frente e uma fila de carros parar de repente. O motorista de um Toyota vermelho manobrava para a outra pista, fazendo o máximo para contornar o tráfego. Enquanto observava, percebi que estava imobilizado e que ela merecia uma resposta.
 ― Sim ― disse, virando lentamente para ela.  ― Acho que é.
Os nós brancos dos dedos se destacavam contra seus braços.
 ― Posso escrever para você?
Eu me esforcei para não desviar o olhar, desejando mais uma vez que nosso destino tivesse sido diferente.
 ― Não tenho certeza se é uma boa ideia.
 ― Não entendo.
 ― Sim, você entende ― disse.  ― Você é casada com Tim, não comigo. Deixei as palavras assentarem, enquanto reunia forças para continuar a falar.  ― Ele é um bom homem, Savannah. Um homem melhor do que eu, isso é certo, e estou feliz que você tenha se casado com ele. Por mais que te ame, não estou disposto a romper um casamento por causa disso. E, no fundo, acho que você também não. Mesmo que você me ame, você o ama também. Demorei um pouco para perceber isso, mas agora tenho certeza.
Não mencionei o futuro incerto de Tim, e vi os olhos dela começando a encher de lágrimas.
 ― Será que vamos nos ver de novo?
 ― Não sei. As palavras queimaram na minha garganta.  ― Mas espero que não. 
 ― Como você pode dizer isso? ― ela perguntou com a voz vacilante.
 ― Porque significa que Tim vai ficar bem. E tenho a sensação de que tudo vai acabar como deveria.
 ― Você não pode dizer isso! Você não pode prometer isso!
 ― Não ― disse.  ― Eu não posso.
 ― Então porque é que tem que acabar agora? Desse jeito?
Uma lagrima escorreu em seu rosto, e apesar de saber que deveria simplesmente ir embora, dei um passo na direção dela. Cheguei perto e enxuguei a lagrima gentilmente. Nos olhos dela, vi medo e tristeza, raiva e traição. Mas acima de tudo, vi uma suplica para eu mudar de ideia.
Engoli a seco.
 ― Você é casada com Tim, e seu marido precisa de você. Todos vocês. Não há espaço para mim, e ambos sabemos que não deveria haver.
Mais lagrimas começaram a correr pelo seu rosto, e senti meus olhos encherem de água. Inclinei-me, beijei Savannah suavemente nos lábios e a abracei com firmeza.
 ― Eu te amo, Savannah, e sempre vou te amar ― murmurei.  ― Você é a melhor coisa que já me aconteceu. Você foi minha melhor amiga e minha amante, e não me arrependo de um só momento. Você fez eu me sentir vivo de novo, e acima de tudo, você me deu meu pai. Nunca vou me esquecer disso. Você sempre será a melhor parte de mim. Sinto que tenha de ser assim, mas tenho que partir, e você tem que ver seu marido.
Enquanto eu falava, ela soluçava convulsivamente, e continuei a abraçá-la por um longo tempo. Quando finalmente nos separamos, percebi que fora nosso ultimo abraço. Me afastei, olhando nos olhos de Savannah.
 ― Eu também te amo, John ― ela disse.
 ― Adeus. Acenei.
E com isso, ela limpou o rosto e começou a caminhar em direção ao hospital.

***

Dizer adeus foi a coisa mais difícil que já fiz. Parte de mim queria dar meia volta, correr para o hospital e dizer que eu estaria sempre ao lado dela, contar a ela o que Tim havia me dito. Mas não o fiz.
Na saída da cidade, parei em uma pequena loja de conveniência. Precisava de gasolina e enchi o tanque; comprei uma garrafa de água. No balcão ― eu vi o pote colocado pelo proprietário para arrecadar dinheiro para Tim, e fiquei olhando. Estava cheio de moedas e notas de dólar; no rótulo, havia os dados de uma conta em um banco local. Pedi para trocar algumas notas por moedas de vinte e cinco centavos e o heme atrás do balcão me atendeu.
Estava entorpecido no caminho de volta para o carro. Abri a porta e comecei a vasculhar os documentos que o advogado me entregara, procurando também por um lápis. Achei o que precisava e fui até o telefone público. Ficava perto da estrada, em meio ao barulho dos carros. Liguei para o serviço de informações e tive que apertar o telefone contra a orelha para ouvir a voz computadorizada me dar o número solicitado. Rabisquei em uma folha dos documentos e desliguei. Coloquei algumas moedas no aparelho, e fiz uma chamada interurbana. Ouvi outra voz eletrônica pedindo mais dinheiro. Coloquei mais moedas. Em breve, ouvi o telefone chamar.
Quando foi atendido, disse quem eu era e perguntei se o homem se lembrava de mim. 
 ― Claro que sim, John. Como vai?
 ― Bem, obrigado. Meu pai faleceu.
Houve uma pequena pausa.
 ― Sinto muito em ouvir isso ― disse ele.  ― Você está bem?
 ― Não sei ― disse.
 ― Posso fazer alguma coisa por você?
Fechei os olhos, pensando em Savannah e Tim e esperando que, de algum modo, meu pai me perdoasse pelo que estava prestes a fazer.  ― Sim ― disse ao negociante de moedas.  ― Na verdade, você pode sim. Quero vender a coleção de moedas do meu pai, e preciso do dinheiro o mais rápido possível.

Comentários

  1. Adorei, amei este romance. Só ñ gostei do final. isso nos ensina que devemos pensar bém antes de tomarmos a decisão correta, para que ñ se arrependa depois, assim como ela se arrependeu, chorando vendo o grande Amor da vida dela ir embora.

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Nada de spoilers! :)

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