Capítulo Vinte e Cinco


Call acordou novamente na Enfermaria. Os cristais nas paredes estavam turvos, e então ele achou que provavelmente já fosse noite.
Seu corpo todo estava dolorido. Além disso, tinha certeza de que deveria dar uma má notícia para alguém, apesar de não lembrar exatamente o que era. As pernas doíam e ele estava envolvido por cobertores. Estava deitado em uma cama e havia se machucado, mas não conseguia se recordar de como. Tentara se exibir durante aquele exercício com o tronco e caiu no rio, o que fez com que Jasper — logo ele entre todas as outras pessoas — o salvasse. E houve mais. Tamara, Aaron e Devastação em uma caminhada pela floresta. Ou será que aquilo não passara de um sonho? Naquele momento, parecia ter sido.
Virando-se para o outro lado, Call viu o Mestre Rufus sentado em uma cadeira ao lado da cama, com o rosto semicoberto pelas sombras. Por um momento, Call achou que o Mestre Rufus dormia, até que viu a boca do mago se curvar em um sorriso.
— Sentindo-se um pouco mais humano? — o mago perguntou.
Call assentiu e fez um esforço para se sentar. Porém, assim que conseguiu espantar um pouco o sono, todas as lembranças invadiram sua mente como um turbilhão: o Mestre Joseph com sua máscara de prata, Drew sendo devorado, Aaron pendurado em uma viga, preso por grilhões que feriam sua pele, e Call recebendo a notícia de que carregava a alma de Constantine Madden dentro de si.
Ele desmoronou novamente na cama.
“Preciso contar ao Mestre Rufus”, ele pensou. “Eu não sou uma pessoa ruim. Preciso contar a ele.”
— Você quer comer alguma coisa? — O Mestre Rufus estendeu uma bandeja diante de Call. — Trouxe chá e sopa para você.
— Chá, talvez. — Call pegou uma caneca de barro e deixou que ela esquentasse suas mãos. Tentou dar um gole. O gosto reconfortante da hortelã fez com que ele se sentisse um pouco mais desperto.
O Mestre Rufus abaixou novamente a bandeja e se virou para estudar Call por debaixo de suas pálpebras caídas. O menino se agarrou à caneca como se dela dependesse sua vida.
— Desculpe perguntar, mas preciso fazer isso. Seus colegas me contaram que tanto você quanto Tamara entraram no local onde Aaron foi preso, mas ambos disseram que você ficou lá dentro por mais tempo e esteve em uma sala que eles não visitaram. O que você pode me dizer a respeito do que viu?
— Eles contaram sobre o Drew? — Call puxou pela memória.
O Mestre Rufus assentiu.
— Pesquisamos todas as fontes que estavam ao nosso alcance e descobrimos que o nome e a identidade de Drew Wallace, na verdade todo o passado dele, consistiam em falsificações bastante convincentes arquitetadas para que ele entrasse no Magisterium. Não sabemos qual era o seu nome verdadeiro ou a razão de o Inimigo enviá-lo para a escola. Se não fosse por você e Tamara, o Inimigo conseguiria nos dar um golpe terrível. E as vítimas não seriam apenas nós, mas também Aaron. Tremo só de pensar no que poderiam ter feito com ele.
— Então quer dizer que não estamos encrencados?
— Por não me informarem que Aaron havia sido sequestrado? Por não contarem a ninguém aonde iam? — O Mestre Rufus baixou o tom de voz até que se tornasse apenas um rosnado. — Contanto que vocês nunca, jamais, aprontem nada parecido novamente, estou preparado para fazer vista grossa para a forma tola como agiram, já que foram bem-sucedidos em solucionar toda a situação. Parece uma idiotice fazer uma tempestade em copo d’água quando foram exatamente você e Tamara que salvaram nosso Makar. O mais importante é o que vocês fizeram.
— Obrigado — disse Call, sem ter certeza se deveria ou não encarar aquelas palavras como uma bronca.
— Enviamos alguns magos ao boliche abandonado, mas não restou muito do edifício além de algumas gaiolas vazias e equipamentos quebrados. Eles encontraram uma sala ampla que parecia ser usada como laboratório. Você esteve lá dentro?
Call assentiu, engolindo em seco. Aquele era o momento. Ele abriu a boca com a intenção de dizer: “O Mestre Joseph estava lá e me contou que eu sou o Inimigo da Morte.”
Porém, as palavras não saíram. Era como se ele estivesse na beira de um abismo e o seu corpo lhe dissesse para se jogar enquanto a mente o detinha. Caso repetisse o que o Mestre Joseph lhe contara, o Mestre Rufus o odiaria. Todos eles o odiariam.
E graças a quê? Mesmo que ele já tivesse sido Constantine Madden algum dia, não conseguia se lembrar de nada daquilo. Ele ainda era Callum, não era? Ainda era a mesma pessoa. Ele não havia se tornado mau. Não queria causar nenhum dano ao Magisterium. E, de qualquer forma, o que era uma alma? Não era ela quem dizia o que uma pessoa tinha de fazer. Ele podia muito bem tomar suas próprias decisões sozinho.
— É, tinha um laboratório com um monte de coisas borbulhantes e elementais em nichos que iluminavam todo o lugar. Só que não havia ninguém lá. — Call engoliu em seco, esforçando-se para mentir. Seu coração se acelerou. — A sala estava vazia.
— Não havia mais ninguém? — o Mestre Rufus perguntou, estudando Call com atenção. — Não há nenhum outro detalhe que você acredite que poderia nos ajudar? Qualquer coisa, independentemente do tamanho?
— Havia Dominados pelo Caos. Vários deles. E um elemental do caos. Ele me perseguiu até o laboratório, mas foi aí que Aaron e Tamara quebraram o teto, então...
— Sim, Tamara e Aaron já me contaram sobre o incrível truque que fizeram com a placa. — O Mestre Rufus sorriu, mas Call pôde perceber que ele escondia certa frustração. — Obrigado, Call. Você se saiu muito bem.
Call assentiu. Jamais se sentira tão horrível.
— Lembro que, quando você chegou ao Magisterium, me pediu diversas vezes para falar com Alastair. Nunca atendi seu pedido formalmente. — O Mestre Rufus enfatizou a última palavra, o que fez com que Call corasse. Ele imaginou se por fim, depois de todo aquele tempo, se meteria em encrenca por ter entrado escondido no gabinete do Mestre Rufus. — Mas permitirei que você faça isso agora.
Ele pegou um globo de vidro na mesa de cabeceira e o passou para Call. Um pequeno tornado rodopiava lá dentro.
— Acredito que você saiba usar isto. — Ele se levantou e caminhou até a outra porta da Enfermaria, com as mãos juntas nas costas. Levou um momento para que Call entendesse o motivo daquele gesto: o Mestre Rufus queria lhe dar privacidade.
Call pegou o globo de vidro transparente e o estudou por um momento. Parecia-se com uma grande bolha de sabão que se solidificou no ar. Ele se concentrou, pensando no pai, bloqueando os pensamentos no Mestre Joseph e em Constantine Madden e se lembrando apenas de Alastair, do cheiro de panquecas e de fumo de cachimbo, das mãos dele nos seus ombros quando fazia alguma coisa certa, do pai se esmerando para lhe explicar Geometria, a matéria de que Call menos gostava.
O tornado começou a se condensar e se moldou na forma do pai de Call, que estava de pé, vestindo uma calça manchada de óleo e uma camisa de flanela. Seus óculos estavam no alto da cabeça e ele tinha uma chave inglesa em uma das mãos. “Ele deve estar na garagem, trabalhando em um de seus carros antigos”, Call pensou. O pai olhou para cima, como se alguém houvesse chamado seu nome.
— Call? — ele perguntou.
— Pai. Sou eu.
Alastair largou a chave-inglesa, que desapareceu da imagem. Ele se virou, como se tentasse ver Call apesar de a imagem deixar claro que ele não conseguia enxergá-lo.
— O Mestre Rufus me contou o que aconteceu. Fiquei tão preocupado. Você estava na Enfermaria...
— Ainda estou — disse Call, e rapidamente acrescentou: —, mas estou bem. Fiquei um pouco baqueado, mas estou melhor. — Sua voz saiu fraca, até mesmo para seus próprios ouvidos. — Não precisa se preocupar.
— Não posso evitar — insistiu o pai, rude. — Ainda sou o seu pai, mesmo que você esteja na escola, longe de casa. — Ele olhou ao redor e depois se virou novamente para Call, como se pudesse vê-lo. — O Mestre Rufus me disse que você salvou o Makar. Foi mesmo inacreditável. Você fez o que todo o exército não conseguiu para salvar Verity Torres.
— Aaron é meu amigo. Acho que o salvamos, mas só por causa disso e não porque ele é um Makar. E nós nem sabíamos no que estávamos nos metendo.
— Fico feliz por você ter amigos aí, Call. — Os olhos do pai eram sérios. — Pode ser difícil ser amigo de alguém tão poderoso.
Call se lembrou do bracelete enviado junto com a carta de seu pai, das milhares de perguntas sem resposta que pairavam em sua cabeça. “Você era amigo de Constantine Madden?”, ele queria perguntar, mas não conseguia. Não naquele momento, nem com o Mestre Rufus ali por perto.
— Rufus também me contou que havia outro aluno do Magisterium no boliche — o pai continuou. — Alguém que trabalhava para o Inimigo.
— Drew... É verdade. — Call balançou a cabeça. — Nós não sabíamos.
— Não é culpa de vocês. Às vezes as pessoas podem esconder suas verdadeiras faces. — O pai suspirou. — Então esse aluno... esse Drew... estava lá, mas não havia nem sinal do Inimigo?
“Não existe nenhum Inimigo. Vocês têm lutado contra um fantasma durante todos esses anos. Uma ilusão na qual o Mestre Joseph queria que vocês acreditassem. Só que não posso lhe contar essas coisas, porque, se o Inimigo não é Constantine Madden, então quem é?”
— Não acredito que teríamos conseguido sair vivos se ele estivesse lá — respondeu Call. — Acho que tivemos sorte.
— E esse tal de Drew... ele não disse nada a você?
— Como o quê?
— Qualquer coisa sobre... sobre você — o pai sondou, cauteloso. — É que eu acho estranho o Inimigo deixar um Makar capturado sob a proteção de um reles aluno do Magisterium.
— Também havia um monte de Dominados pelo Caos. Mas, não, ninguém me disse nada. Apenas Drew e os Dominados pelo Caos estavam lá, e eles não costumam falar muito.
— Não. — O pai quase abriu um sorriso. — Eles não gostam mesmo de falar, não é? — Ele suspirou novamente. — Sinto sua falta por aqui, Callum.
— Também sinto saudade. — Call sentiu um aperto na garganta.
— Vejo você quando as aulas terminarem — disse o pai.
Call assentiu, apesar de não considerar o tom de Alastair muito convincente, e passou uma das mãos pela superfície do globo. A imagem do pai desapareceu. Ele se sentou e encarou o aparelho. Já que não havia mais nenhuma imagem lá dentro, pôde ver seu próprio reflexo no vidro. O mesmo cabelo preto, os mesmos olhos cinza, o mesmo nariz e queixo levemente pontudos. Tudo que lhe era familiar. Ele não se parecia com Constantine Madden. Ele se parecia com Callum Hunt.
— Vou ficar com isto. — O Mestre Rufus tirou o globo das mãos de Call, sorrindo. — É provável que você fique aqui por mais alguns dias para descansar enquanto seus ferimentos saram. Nesse meio-tempo, há duas pessoas que esperam pacientemente para vê-lo.
O Mestre Rufus foi até a porta da Enfermaria e a abriu.
Tamara e Aaron correram lá para dentro.

***

Estar na Enfermaria por ter se machucado enquanto fazia algo incrível era totalmente diferente de estar ali por ter feito uma coisa estúpida. Os colegas não paravam de visitá-lo. Todos queriam ouvir a mesma história várias e várias vezes, todos queriam ouvir sobre quão assustadores eram os Dominados pelo Caos e como Call lutou contra o elemental do caos. Todos queriam ouvir como a placa atravessou o teto e rir da parte em que Call desmaiava.
Gwenda e Célia lhe deram barras de chocolate que trouxeram de casa. Rafe levou um baralho e eles jogaram buraco em cima dos cobertores. Call nunca havia percebido quantas pessoas no Magisterium sabiam quem ele era. Até mesmo alguns dos alunos mais velhos foram vê-lo, como a irmã de Tamara, Kimiya, que era tão alta e séria que assustou Call quando lhe disse que ficava feliz por ele ser amigo de Tamara, e Alex, que fez aparecer um pacote de balas de goma, as preferidas de Call, e o advertiu de como toda essa história de herói fazia com que o resto da escola se sentisse mal.
Até mesmo Jasper o visitou, o que era extremamente embaraçoso. Ele se arrastou para dentro da Enfermaria enquanto enfiava o cachecol de caxemira esfarrapada para dentro do uniforme.
— Trouxe um sanduíche da Galeria para você — ele disse, passando um embrulho para Call. — É de líquen, óbvio, com sabor de atum. Eu odeio atum.
— Obrigado. — Call virou o sanduíche nas mãos. Estava estranhamente quente, o que fez com que ele imaginasse que deveria estar no bolso de Jasper.
— Eu só queria dizer — começou Jasper — que todo mundo está falando sobre o que você fez, resgatando Aaron, e acho que você deveria saber que eu também acho que foi uma coisa boa. O que você fez. E que está tudo bem. Não tem problema se você tomou o meu lugar no grupo do Mestre Rufus. Porque talvez você mereça estar lá. Por isso, não estou com raiva de você. Não mais.
— É claro que você arranjou um jeito de atrair a atenção para você, não é, Jasper? — comentou Call, que tinha de admitir que desfrutava aquele momento.
— Está certo. — Jasper puxou o cachecol com tanta raiva que quase arrancou um pedaço do tecido. — Foi um bom papo. Saboreie o sanduíche.
Ele saiu da Enfermaria um tanto cambaleante, e Call se divertiu ao observá-lo se afastar. E só então se deu conta de que ficava feliz ao saber que Jasper não o odiava mais, apesar de ter jogado fora o sanduíche só por precaução.
Tamara e Aaron o visitaram mais vezes do que era permitido, jogando-se na cama de Call como se fosse uma cama elástica, loucos para lhe contar tudo o que acontecia enquanto ele estava ali deitado. Aaron explicou como ele convenceu os mestres a deixá-lo ficar com Devastação argumentando que, como o Makar, ele precisava de uma criatura Dominada pelo Caos para seus estudos. Eles não gostaram da ideia, mas permitiram que ele ficasse com o lobo, e a partir de então Devastação seria um elemento permanente em seus aposentos. Tamara contou que a forma como os magos deixavam que Aaron se safasse das coisas iria acabar subindo à cabeça dele, tornando-o ainda mais insuportável do que Call. Eles conversavam e riam tão alto que a Mestra Amaranth acabou liberando Call mais cedo apenas para ter um pouco de paz e silêncio, o que provavelmente foi uma boa ideia, já que o menino já estava se acostumando com o hábito de passar o dia inteiro deitado com pessoas lhe trazendo coisas. Mais uma semana e ele jamais abandonaria aquela vida.
Cinco dias após seu retorno do campo do Inimigo, Call voltou aos estudos. Ele entrou em um barco com Aaron e Tamara com os membros um pouco rígidos. Seu ferimento na perna já havia quase sarado, mesmo assim a locomoção ainda era difícil. Quando chegaram à porta da sala de aula, o Mestre Rufus já os esperava.
— Hoje, vamos fazer algo um pouco diferente. — Ele gesticulou em direção ao corredor. — Vamos visitar o Hall dos Graduados.
— Já estivemos lá antes — informou Tamara antes que Call pudesse lhe dar um chute. Se Mestre Rufus queria levá-los em uma excursão em vez de lhes passar exercícios tediosos, então era melhor apoiarem aquela ideia.
Além disso, o Mestre Rufus não sabia que eles já tinham estado no Hall dos Graduados, já que, naquela época, eles estavam ocupados se perdendo e falhando nas tarefas que lhes eram apresentadas.
— Ah, é mesmo? — O Mestre Rufus começou a andar. — E o que vocês viram lá?
— As impressões digitais de pessoas que estudaram no Magisterium antes da gente — Aaron respondeu. — Alguns dos parentes dos nossos colegas. A mãe de Call.
Eles atravessaram uma porta que o Mestre Rufus abriu com seu bracelete e desceram uma escada em espiral feita de pedra branca.
— Alguma outra coisa?
— O Primeiro Portal. — Tamara olhou ao redor, confusa. Eles não tinham passado por ali antes. — Só que não estava funcionando.
— Ah. — O Mestre Rufus passou seu bracelete diante de uma parede sólida e observou quando a rocha brilhou e desapareceu, revelando outra sala contígua àquela em que eles estavam. Rufus sorriu ao ver a surpresa dos alunos. — É, existem algumas rotas na escola que vocês ainda não conhecem.
Eles entraram em uma sala pela qual Call se lembrava de terem passado quando estavam perdidos, com longas estalactites e uma lama fumegante que aquecia o ar. Ele se virou, imaginando se seria capaz de refazer o caminho até a porta que o Mestre Rufus acabara de lhes mostrar, porém, mesmo que ele fosse capaz de seguir aquela rota, não tinha certeza de que seu bracelete seria capaz de abri-la.
Eles passaram por outra porta e então se viram no interior do Hall dos Graduados. Um dos arcos parecia estar coberto por alguma substância, algo membranoso e vivo. As palavras Prima Materia cinzeladas no alto da passagem brilhavam com uma luz estranha, como se as letras fossem iluminadas por dentro.
— Hum. O que é isso? — Call perguntou.
O sorrisinho no rosto do Mestre Rufus se transformou em um sorriso largo.
— Vocês todos podem ver? Muito bem. Imaginei que veriam. Isso significa que vocês estão prontos para passar pelo Primeiro Portal, o Portal do Controle. Depois que o atravessarem, serão considerados magos por direito e eu lhes darei o metal para ser adicionado a seus braceletes que formalmente lhes conferirá o status de alunos do Ano de Cobre. A partir deste ponto, vocês poderão decidir até quando querem continuar a estudar, mas acredito que vocês três são alguns dos melhores aprendizes a quem já tive o prazer de ensinar. Espero que continuem com seus estudos.
Call olhou para Tamara e Aaron. Eles sorriam um para o outro e depois se viraram para ele. Aaron então resolveu perguntar algo para quebrar o gelo:
— Mas eu pensei... quero dizer, isso é mesmo ótimo, mas não deveríamos atravessar o portal apenas no fim do ano? Quando terminarmos o Ano de Ferro?
O Mestre Rufus ergueu ambas as sobrancelhas espessas.
— Vocês são aprendizes. O que significa que aprenderão aquilo que estão preparados para aprender e passarão pelos portais quando estiverem prontos, não depois e, com toda a certeza, não antes. Já que são capazes de ver o portal, então vocês estão prontos. Tamara Rajavi, você primeiro.
Ela deu um passo à frente, com os ombros eretos, e caminhou até o portal com uma expressão maravilhada no rosto, como se mal conseguisse acreditar no que estava acontecendo. Ergueu um dos braços e tocou o centro rodopiante do portal. Logo em seguida, ela fez um som agudo e tirou os dedos, encantada. Ela olhou de relance para Call e Aaron e, então, ainda sorrindo, deu um passo para dentro e saiu do campo de visão dos meninos.
— Agora você, Aaron Stewart.
— Tudo bem — Aaron assentiu, parecendo um pouco nervoso. Ele secou as palmas das mãos suadas na calça cinzenta do uniforme. Dando um passo para dentro do portal, ele jogou os braços para cima e se arremessou para o que quer que houvesse além daquela passagem como um jogador de futebol americano que corre para marcar um touchdown.
O Mestre Rufus balançou a cabeça como quem se divertia ao observar a cena, mas não fez nenhum comentário sobre a técnica de Aaron para atravessar portais.
— Callum Hunt, siga em frente — ele disse.
Call engoliu em seco e se aproximou da passagem. Ele se lembrou do que o Mestre Rufus havia lhe dito no dia em que lhe revelou por que o escolhera. “Até que um mago passe pelo Primeiro Portal, a magia dele pode ser interditada por qualquer um dos Mestres. Você não será mais capaz de acessar os elementos nem de utilizar seu poder.”
Caso sua magia fosse interditada, Callum não poderia se tornar o Inimigo da Morte. E nem mesmo poderia se tornar alguém parecido com ele. Foi aquilo o que o pai pedira que o Mestre Rufus fizesse, enviando o bracelete de Constantine Madden como um aviso. De pé, diante do portal, Call finalmente admitiu para si mesmo: Tamara estava certa quando disse que a advertência de seu pai não tinha nada a ver com a segurança de Call. Na verdade, era uma tentativa de proteger as outras pessoas dele.
Aquela era a última chance de Call. Sua chance final. Se ele atravessasse o Portal do Controle, sua magia não poderia mais ser interditada. Não seria mais fácil deixar o mundo a salvo de quem ele era. Assegurar que ele jamais se voltaria contra Aaron. Ter certeza de que jamais se tornaria Constantine Madden.
Ele pensou em voltar para sua escola de sempre, onde não tinha nenhum amigo e passava os fins de semana sob o olhar carrancudo do pai. Ele pensou em como seria nunca mais ver Aaron e Tamara novamente e em todas as aventuras que eles realizaram juntos. Ele imaginou como seria ter Devastação em seu quarto de casa e quão deprimido o lobo ficaria. Ele pensou em Célia, Gwenda, Rafe e até mesmo no Mestre Rufus, se lembrou do Refeitório, da Galeria e de todos os túneis que jamais exploraria.
Talvez, se ele contasse tudo, as coisas não se mostrassem como o Mestre Joseph descrevera. Talvez eles não interditassem sua magia. Talvez eles o ajudassem. Talvez até mesmo lhe dissessem que toda essa coisa de trocar almas era impossível, que ele era simplesmente Callum Hunt e não havia nada a temer, já que ele não se tornaria um monstro com uma máscara de prata.
Mas talvez não fosse o suficiente.
Dando um passo à frente, ele respirou fundo, abaixou a cabeça e atravessou o Portal do Controle. Ele pôde sentir a magia, pura e poderosa.
Call ouviu Tamara e Aaron gargalhando do outro lado.
E, mesmo contra a própria vontade, apesar da coisa terrível que fazia, apesar de tudo, Call abriu um imenso sorriso.

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