Capítulo Vinte e Quatro
— O... o quê? — Call estava boquiaberto. — Quem é você? Por que está me dizendo isso?
— Porque é a verdade. — O mago segurava a máscara de prata em uma das mãos. — Você é Constantine Madden. E, se olhar para mim com atenção, também saberá o meu nome.
O mago ainda estava ajoelhado aos pés de Call. Sua boca começava a se contorcer em um sorriso amargo.
“Ele é maluco”, Call pensou. “Só pode ser. O que ele está falando não faz o menor sentido.”
Porém o rosto do mago lhe era realmente familiar... Call já o vira antes, em alguma fotografia, pelo menos.
— Você é o Mestre Joseph — o menino concluiu. — Você foi o professor do Inimigo da Morte.
— Fui o seu professor — corrigiu o Mestre Joseph. — Posso me levantar, mestre?
Call permaneceu calado. “Estou preso aqui. Com um mago maluco e um cadáver”, ele pensou
Aparentemente considerando o silêncio do garoto como uma permissão, o Mestre Joseph se pôs de pé com algum esforço.
— Drew contou que suas memórias foram apagadas, mas não consigo acreditar nisso. Pensei que quando me visse, quando lhe contasse a seu respeito, você fosse se lembrar de alguma coisa. Mas não importa. Você pode não se lembrar, mas eu lhe garanto, Callum Hunt, a centelha de vida que você carrega dentro de si, sua alma, se você assim preferir, tudo o que anima essa concha que chamamos de corpo, pertence a Constantine Madden. O verdadeiro Callum Hunt morreu quando ainda era um bebê chorão.
— Isso é loucura. Essas coisas não acontecem. Não existe esse negócio de trocar alma.
— É verdade. Geralmente essas coisas não acontecem. Mas você pode fazer isso. Me permite, mestre?
Ele pegou uma das mãos de Call. Após um momento, o menino percebeu que o mago pedia permissão para pôr sua mão sobre a dele.
Call sabia que não deveria tocar o Mestre Joseph. Grande parte da magia era transferida pelo toque, elementais do toque, que canalizavam seu poder através das pessoas. Entretanto, mesmo que as palavras do Mestre Joseph não passassem de insanidades, havia algo naquela história que atraía Call, algo que ele não conseguia afastar de sua mente.
Devagar, o menino ergueu uma das mãos e o Mestre Joseph a tomou, envolvendo os dedos pequenos de Call com os seus, longos e repletos de cicatrizes.
— Veja — ele sussurrou, e uma descarga de eletricidade atravessou o corpo de Call. Sua visão se tornou esbranquiçada e, de repente, era como se ele visse cenas projetadas em uma tela imensa colocada diante de seus olhos.
Ele viu dois exércitos que encaravam um ao outro em uma vasta planície. Era uma guerra de magos, com explosões de fogo, flechas de gelo e lufadas de ar com a intensidade de um vendaval. Call viu rostos familiares: um Mestre Rufus muito mais jovem, um Mestre Lemuel adolescente, os pais de Tamara e, montada em um elemental do fogo à frente de todos eles, Verity Torres. A magia do caos transbordava de suas mãos estendidas enquanto ela avançava pelo campo de batalha.
O Mestre Joseph surgiu na cena, carregando um objeto pesado que soltava um brilho acobreado. O artefato lembrava uma garra de cobre, com dedos estendidos que lembravam as garras de uma ave. Ele reuniu um grande volume de magia do vento e a enviou pelo ar, explodindo na garganta de Verity Torres.
Ela caiu de costas, um filete de sangue voou no ar e o elemental do fogo em que ela cavalgava soltou um ganido e empinou para trás. Um raio saiu de suas garras, atingindo o Mestre Joseph, que tombou. A máscara saiu do lugar, revelando seu rosto.
— Ele não é Constantine! — gritou uma voz rouca. A voz de Alastair Hunt. — É o Mestre Joseph.
A cena mudou. O Mestre Joseph estava de pé em uma sala feita de mármore vermelho. Ele gritava para um grupo de magos encurvados.
— Onde está ele? Exijo que vocês me contem o que aconteceu com ele!
O som de passos pesados pôde ser ouvido a partir de uma das portas. Os magos abriram caminho, criando um corredor para a marcha de quatro Dominados pelo Caos que carregavam um corpo. O corpo de um homem jovem, loiro, com um imenso ferimento no peito e as roupas empapadas de sangue. Eles o colocaram aos pés do Mestre Joseph.
O mago se abaixou, pegando o corpo do jovem nos braços.
— Mestre — ele sibilou. — Oh, meu mestre, o Inimigo da Morte...
O menino abriu os olhos. Eles eram cinza. Call nunca vira os olhos de Constantine Madden antes nem nunca pensara em perguntar de que cor eles eram. Tinham o mesmo tom cinza dos de Call. Cinza e vazio como o céu invernal. O rosto coberto de cicatrizes estava imóvel, sem demonstrar nenhuma emoção.
O Mestre Joseph arfou.
— O que é isso? — Ele se virou para os outros magos com uma expressão furiosa no rosto. — O corpo dele está vivo, ainda que por pouco tempo, mas e a alma? Onde está a alma?
A cena mudou novamente. Call estava de pé em uma caverna aberta no meio de uma geleira. As paredes eram todas brancas e mudavam de cor onde as sombras as tocavam. O chão estava coberto de corpos de magos, muitos deles contorcidos e jogados sobre poças de sangue congelado. Call sabia onde estava. O Massacre Gelado. Ele fechou os olhos, mas isso não fez a menor diferença. Continuava a enxergar a cena, já que as imagens estavam dentro da sua mente. Ele observou o Mestre Joseph abrir caminho entre os mortos, parando de vez em quando para virar um ou outro cadáver e observar seu rosto. Após alguns momentos, Call se deu conta do que o mago fazia. Ele examinava apenas as crianças mortas, sem nem mesmo tocar nos adultos. Por fim, ele parou e observou algo, que Call logo percebeu o que era. Não era nenhum cadáver, mas uma frase inscrita no gelo.
MATE A CRIANÇA
Mais uma vez, as cenas se alteraram e então eles flutuavam depressa, como folhas na brisa. O Mestre Joseph atravessava cada vila e cidade em uma busca incansável, examinando os registros de nascimento dos hospitais, escrituras de propriedades, qualquer possível pista...
O mago estava em um parquinho pavimentado com concreto, observando enquanto um grupo de meninos ameaçava um garoto menor.
De repente, o chão debaixo dos pés deles tremeu e uma grande cratera quase dividiu o parquinho em dois. Todos os valentões deram o fora. O garoto menor se levantou, olhando ao redor com uma expressão perplexa.
Call reconheceu a si mesmo. Magricela, cabelo escuro, olhos cinzentos idênticos aos de Constantine e a perna fraca torcida debaixo dele. Ele sentiu que o Mestre Joseph começava a abrir um sorriso...
Call voltou à realidade com um choque, como se houvesse caído de uma altura imensa. Ele cambaleou para trás, largando a mão do Mestre Joseph.
— Não — Call engasgou. — Não, eu não entendo...
— Ah, acho que você entende, sim — disse o mago. — Acho que você entende muito bem, Callum Hunt.
— Pare com isso — disse Call. — Pare de me chamar de Callum Hunt desse jeito. É sinistro. Meu nome é Call.
— Não é, não — retrucou o Mestre Joseph. — Esse nome pertence ao seu corpo, a concha que o envolve. Um nome que você descartará quando estiver pronto, assim como descartará esse corpo e entrará no de Constantine.
Call jogou as mãos para o alto.
— Não posso fazer isso. Sabe por quê? Porque o Constantine Madden ainda está por aí. Sério, eu realmente não entendo como posso ser uma pessoa que está por aí liderando exércitos, criando elementais do caos e inventando lobos gigantes com olhos bizarros. Essa pessoa existe e NÃO SOU EU! — Call gritava, mas sua voz soou como um apelo até mesmo para seus próprios ouvidos. Ele só queria que tudo aquilo acabasse. Não podia evitar as palavras do pai que ecoavam sem parar em sua cabeça. “Call, você precisa me ouvir. Você não sabe o que você é.”
— Ainda está por aí? — O Mestre Joseph abriu um sorriso amargo. — Ah, a Assembleia e os magos acreditam que Constantine ainda está ativo e conectado com este mundo porque é nisso que eles querem acreditar. Porém, quem o viu? Quem falou com ele desde o Massacre Gelado?
— As pessoas o viram... — Call começou. — Ele se encontrou com a Assembleia. Ele assinou o Tratado.
— Mascarado — disse o Mestre Joseph, erguendo a máscara que usava quando Call o viu pela primeira vez. — Eu assumi o lugar dele na batalha com Verity Torres. Eu tinha certeza de que poderia fazer aquilo novamente. O Inimigo permaneceu escondido desde o Massacre Gelado, e, quando era estritamente necessário que ele aparecesse, eu assumia seu lugar. Mas Constantine propriamente dito? Ele sofreu um ferimento mortal doze anos atrás, na caverna onde Sarah Hunt e tantos outros morreram. Porém, quando percebeu que a vida deixava seu corpo, ele se utilizou daquilo que já tinha aprendido. O método para mover uma alma para outro corpo. E, assim, ele se salvou. Da mesma forma que ele colocava uma pequena parte do caos dentro de um Dominado pelo Caos, ele pegou sua própria alma e a pôs dentro do excelente receptáculo que tinha à disposição. Você.
— Mas eu nunca estive no Massacre Gelado. Eu nasci em um hospital. A minha perna...
— Alastair Hunt mentiu. Sua perna foi despedaçada quando Sarah Hunt o derrubou no gelo — disse o Mestre Joseph. — Ela sabia o que acontecera. A alma do filho dela havia sido expulsa do corpo e a de Constantine Madden tomou seu lugar. O filho de Sarah havia se tornado o Inimigo.
Call ouviu um rugido nas orelhas.
— A minha mãe jamais...
— Sua mãe? — O Mestre Joseph abriu um sorriso de escárnio. — Sarah Hunt era apenas a mãe da concha que contém sua alma. Até ela sabia disso. Só que não teve a força necessária para terminar aquilo com as próprias mãos, por isso deixou uma mensagem. Uma mensagem para aqueles que chegariam ao campo de batalha depois que ela já tivesse morrido.
— As palavras no gelo — sussurrou Call. Ele se sentia tonto e enjoado.
— Mate a criança — o Mestre Joseph declarou, com uma satisfação cruel. — Ela entalhou essas palavras no gelo com a ponta da faca que você agora carrega. Foi seu último ato neste mundo.
Call sentiu que estava prestes a vomitar. Ele estendeu uma das mãos atrás de si em busca da quina de uma mesa e se apoiou nela, respirando com dificuldade.
— A alma de Callum Hunt está morta — disse Joseph. — Foi forçada a abandonar o corpo. A alma subiu no ar como um redemoinho e morreu. A alma de Constantine Madden criou raízes e cresceu, recém-nascida e intacta. Desde então, seus seguidores lutaram para passar a impressão de que ele havia desaparecido do mundo, de forma que todos estivessem seguros. Protegidos. Só para que você tivesse tempo de amadurecer. Para que você pudesse viver.
“Call queria viver.” Era isso que Call, de brincadeira, acrescentava ao Quinário em sua mente, e, então, aquilo não parecia mais uma piada. Naquele momento, horrorizado, ele percebeu quão verdadeiras eram aquelas palavras. Será que queria tanto viver que roubou a vida de outra pessoa? Será que aquele era mesmo ele?
— Não me lembro de nada sobre ser Constantine Madden — sussurrou Call. — Sempre fui eu mesmo...
— Constantine sempre soube que poderia morrer — explicou Joseph. — A morte era o seu grande medo. Ele tentou inúmeras vezes trazer o irmão de volta, mas jamais conseguiu reaver a alma dele e tudo isso fez de Jericho quem ele era. Constantine resolveu fazer tudo o que fosse possível para permanecer vivo. Durante todo esse tempo, Call, tivemos de esperar até que você tivesse idade suficiente. E aqui está você, quase pronto. Logo a guerra começará de verdade... e, desta vez, temos certeza de que iremos vencer.
Os olhos do Mestre Joseph brilhavam com algo que se assemelhava muito à loucura.
— Eu não vejo por que você acha que eu ficaria ao seu lado — retrucou Call. — Você pegou o Aaron...
— Sim — disse Joseph —, mas quem realmente queríamos era você.
— Então você fez tudo isso, inventou esse sequestro, só para que eu fosse atraído até aqui para... o quê? Para me dizer isso? Por que não me contou tudo antes? Por que não me pegou antes que eu entrasse no Magisterium?
— Porque pensamos que você soubesse — o Mestre Joseph grunhiu. — Achávamos que você agia de forma discreta de propósito, para que seu corpo e sua mente amadurecessem o suficiente para que se tornasse novamente aquele formidável inimigo da Assembleia de antes. Eu não me aproximei de você porque pensei que, se você quisesse ser encontrado, entraria em contato comigo.
Call soltou uma risada amarga.
— Então você não se aproximou de mim porque não queria quebrar o meu disfarce e, durante todo esse tempo, eu nem mesmo sabia que estava disfarçado? Isso é mesmo hilário.
— Não vejo nada de engraçado nisso. — A expressão no rosto do Mestre Joseph não se alterou. — Ainda bem que meu filho... que Drew foi capaz de averiguar que você realmente não fazia a menor ideia de quem era, ou você poderia ter se revelado sem nem mesmo se dar conta.
Call encarou o Mestre Joseph.
— Você vai me matar? — ele perguntou de forma abrupta.
— Matar você? Nós estávamos esperando por você — emendou Joseph. — Durante todos esses anos.
— Bem, então todo esse seu plano estúpido não serviu para nada. Vou voltar para a escola e contar para Rufus quem eu realmente sou. Vou contar para todo mundo no Magisterium que meu pai estava certo e que eles deveriam ter dado ouvidos a ele. E vou deter você.
O Mestre Joseph sorriu e balançou a cabeça.
— Acho que conheço você muito bem, independentemente da forma em que esteja. Você voltará, terminará o Ano de Ferro e, quando retornar para cursar o Ano de Cobre, vamos nos falar novamente.
— Não, não vamos. — Call se sentiu infantil e pequeno, o peso do horror o esmagava. — Vou contar a eles...
— Contar a eles o que você é? Eles interditarão sua magia.
— Eles não fariam isso...
— Eles fariam. Isso se não o matarem. Eles interditarão sua magia e o enviarão de volta para o seu pai, que, a esta altura, com toda a certeza já sabe que não é seu pai.
Call engoliu em seco. Ele não pensara, até aquele momento, qual seria a reação de Alastair diante dessa revelação. O pai, que implorara para que Rufus interditasse sua magia... apenas por precaução.
— Você perderá seus amigos. Você realmente acha que eles deixarão que se aproxime do tão poderoso Makar sabendo quem você é? Eles educarão Aaron Stewart para ser seu inimigo. Ele é exatamente o que os magos têm procurado durante todo esse tempo. É isso o que Aaron representa. Ele não é seu companheiro. Ele é a sua destruição.
— Aaron é meu amigo. — A voz de Call, entretanto, era desesperançada. Ele podia sentir isso, mas era incapaz de evitar.
— Se é isso o que você diz, Call... — O Mestre Joseph tinha o olhar sereno de um homem que sabia das coisas. — Parece que o seu amigo tem algumas escolhas a serem feitas pela frente. Assim como você.
— Eu já escolhi — disse Call. — Escolhi voltar para o Magisterium e contar a verdade a eles.
Joseph abriu um sorriso radiante. — Vai mesmo? É fácil dizer isso quando você está aqui na minha frente, me desafiando. Eu não esperaria nada diferente de Constantine Madden. Você sempre foi desafiador. Porém, na hora H, quando a decisão tiver de ser feita, você vai mesmo desistir de tudo que lhe é caro em nome de um ideal abstrato que você compreende apenas em parte?
Call negou com a cabeça.
— De qualquer forma, eu teria mesmo de desistir dessa ideia. Até parece que você vai me deixar ir embora daqui.
— É claro que vou — disse o Mestre Joseph.
Call deu um pulo para trás, surpreso, batendo dolorosamente com um dos cotovelos na parede.
— O quê?
— Oh, meu mestre. — O velho mago respirou fundo. — Você não vê que...
Ele não terminou a frase. Com um estrondo, o teto se rompeu. Call mal teve tempo de olhar para cima antes que tudo parecesse explodir em uma chuva de estilhaços de madeira e concreto. Ele ouviu o grito rouco do Mestre Joseph logo antes de uma montanha de cascalho ser despejada sobre ele, tirando o mago de seu campo de visão. O chão se rompeu debaixo de Call, que caiu para o lado, estendendo um dos braços para pegar Devastação, que se contorcia, em pânico.
Tudo pareceu sacudir por um momento, e Call enterrou o rosto nos pelos do lobo, tentando não respirar a poeira grossa que flutuava pelo ar. Talvez aquele fosse o fim do mundo. Talvez os aliados do Mestre Joseph tivessem decidido explodir aquele lugar. Ele não sabia e quase não se importava.
— Call? — Apesar do zumbido em seus ouvidos, Call ouviu uma voz familiar. Era Tamara. Ele rolou com uma das mãos ainda sobre o pelo de Devastação e viu o que tinha feito com que o prédio desmoronasse.
A imensa placa em que se lia BOLICHE DA MONTANHA atravessou o teto, dividindo o prédio pela metade como um machado que corta um bloco de concreto. Aaron estava agachado em cima da placa, como se a houvesse guiado pelo ar, com Tamara a seu lado. A placa soltava fagulhas e chiados onde os fios elétricos foram cortados e torcidos.
Aaron saltou de cima da placa e correu na direção de Call, curvando-se para pegar o braço do amigo.
— Call, vamos!
Sem conseguir acreditar naquilo, Call se levantou aos tropeções, permitindo que Aaron o ajudasse. Devastação soltou um ganido e pulou, espalmando as patas traseiras no peito de Aaron.
— Aaron! — Tamara gritou. Ela apontava para trás deles. Call deu meia-volta e tentou enxergar entre as nuvens de poeira e cascalho. Não havia nem sinal do Mestre Joseph.
Mas aquilo não significava que eles estavam sozinhos. Call se virou novamente para Aaron.
— Dominados pelo Caos — avisou Call, sombrio. O corredor estava repleto deles, que marchavam sobre os escombros de uma forma sinistramente regular, seus olhos rodopiantes queimando como fogo.
— Vamos! — Aaron se virou e correu como uma flecha na direção da placa, pulando sobre ela e depois estendendo os braços para ajudar Call a subir. A placa ainda estava presa na base. A maior parte dela havia se chocado contra uma das paredes do edifício, como uma colher que cai dentro de um pote e fica apoiada em um dos lados. Tamara já corria sobre as palavras BOLICHE DA MONTANHA, com Devastação em seu encalço. Call começou a mancar atrás dela quando percebeu que Aaron não os seguia.
Ele girava, olhando ao redor. Faíscas brotavam dos fios aos seus pés. A sala lá embaixo foi rapidamente tomada por Dominados pelo Caos, que metodicamente se aproximavam da placa. Vários deles já a escalavam. Aaron estava alguns metros acima deles, olhando para baixo. Tamara já estava alto o suficiente para pular para o telhado.
— Vamos! — Call a ouviu gritar ao perceber que eles não a seguiam. E não havia como ela voltar para a placa. — Call! Aaron!
Porém, Aaron não se moveu. Ele se equilibrava na placa como se estivesse sobre uma prancha de surfe, com uma expressão sombria no rosto. O cabelo estava branco graças à poeira desprendida pelo concreto, e seu uniforme cinzento estava rasgado e coberto de sangue. Devagar, ele ergueu uma das mãos e, pela primeira vez, Call não viu Aaron apenas como um amigo, mas como o Makar, o mago do caos, alguém que poderia algum dia ser tão poderoso quanto o Inimigo da Morte.
Alguém que poderia ser o inimigo do Inimigo. Seu inimigo.
A escuridão se espalhou a partir das mãos de Aaron como um raio de luz negra, envolvendo os Dominados pelo Caos com gavinhas feitas de sombras. Assim que a escuridão os tocava, o fogo nos olhos deles se apagava e eles caíam no chão, flácidos e sem oferecer nenhum tipo de resistência.
“É isso que eles têm procurado todo esse tempo. Sua destruição. É isso o que Aaron representa.”
— Aaron — Call gritou, escorregando pela placa na direção do amigo.
Aaron não se virou, não pareceu nem mesmo ouvi-lo. Call ficou de pé ao lado dele, a luz negra continuava a explodir a partir de uma de suas mãos, criando um caminho que cortava o céu. Ele tinha uma aparência assustadora. — Aaron — Call arquejou e tropeçou em um amontoado de fios. Uma dor excruciante atingiu sua perna e o corpo se retorceu, derrubando Aaron no chão e quase prendendo o menino com o peso do seu corpo. A luz negra desapareceu quando as costas de Aaron atingiram o metal da placa, e suas mãos se espalmaram entre seu próprio corpo e o de Call.
— Me deixa! — Aaron gritou. Ele parecia fora de si, como se talvez, em meio a toda aquela fúria, houvesse se esquecido de quem eram Call e Tamara. Ele se contorceu debaixo de Call, tentando libertar as mãos. — Eu preciso... preciso...
— Você precisa parar. — Call pegou Aaron pela frente do uniforme. — Aaron, você não pode fazer isso sem um contrapeso. Você pode morrer.
— Isso não importa. — Aaron lutou para se livrar de Call.
Call não o soltou.
— Tamara está esperando. Não podemos deixá-la sozinha. Você precisa ir. Vamos. Você tem que ir.
Aos poucos, a respiração de Aaron se tornou mais tranquila e seus olhos se concentraram em Call. Atrás dele, mais Dominados pelo Caos rastejavam sobre os corpos dos companheiros mortos. Os olhos deles brilhavam na escuridão.
— Tudo bem. — Call soltou Aaron e se ergueu sobre as pernas que doíam. — Tudo bem, Aaron. — Ele estendeu uma das mãos para o amigo. — Vamos.
Aaron hesitou, mas finalmente ergueu uma das mãos para que Call o ajudasse a se levantar. Call se virou e começou a escalar novamente a placa. Desta vez, Aaron o seguiu. Por fim, chegaram alto o suficiente para pular para o telhado, ao lado de Tamara e Devastação. Call sentiu o impacto de aterrissar sobre as telhas de concreto atravessar suas pernas e chegar até os dentes.
Tamara parecia aliviada por vê-los, entretanto o rosto dela estava tenso. Os Dominados pelo Caos ainda estavam atrás deles. Ela se virou, desceu correndo o telhado inclinado e deu outro pulo, desta vez para a lixeira. Call cambaleava atrás dela.
Assim que Call desceu do telhado, com o coração batendo acelerado dentro do peito tanto por medo daquilo que os perseguia quanto por temer que não fossem capaz de escapar, independentemente do quanto corressem, seus pés bateram na tampa de metal da lixeira e ele sentiu como se seus joelhos e pernas fossem feitos de sacos de areia, pesados, dormentes e pouco firmes. Conseguiu rolar até o canto, junto ao edifício, e foi capaz de se levantar se apoiando na lata de lixo, tentando recuperar a respiração.
Um segundo depois, ouviu Aaron dar um salto e parar ao lado dele.
— Você está bem? — Aaron perguntou, e Call sentiu uma onda de alívio apesar de todo o resto. Aaron parecia novamente o amigo que ele conhecia.
Eles ouviram um retinir de metal. Call e Aaron se viraram para ver que Tamara rolara a lixeira para afastá-la da parede do prédio. Os Dominados pelo Caos não tinham um apoio sobre o qual pudessem pular e se aglomeravam na beira do telhado.
— Eu... eu estou bem. — Call olhava de Aaron para Tamara. Ambos o observavam com expressões idênticas de preocupação. — Não acredito que vocês voltaram por minha causa. — Call se sentia tonto e enjoado e tinha certeza de que cairia novamente se desse mais um único passo. Ele pensou em dizer que seus amigos deviam deixá-lo ali e correr, mas não queria ser deixado para trás.
— É claro que a gente voltou. — Aaron franziu a testa. — Quero dizer, você e a Tamara vieram até aqui por minha causa, não foi? Por que eu não faria o mesmo por você?
— Você faz diferença, Call — garantiu Tamara.
Call queria dizer que salvar Aaron era algo diferente, mas não sabia como explicar por quê. Sua cabeça rodopiava.
— Bem, foi mesmo muito impressionante... o que vocês fizeram com a placa.
Mais que depressa, Aaron e Tamara olharam um para o outro.
— Não era bem isso o que tentamos fazer — Tamara admitiu. — Estávamos tentando chegar ao topo dela para enviar uma mensagem para o Magisterium. Só que perdemos um pouco a mão da magia da terra e... bem. Tipo, funcionou, não é? É isso o que importa.
Call assentiu. Aquilo era mesmo o que importava.
— Obrigado também pelo que você fez lá em cima. — Aaron colocou uma das mãos no ombro de Aaron e lhe deu um tapinha, sem graça. — Eu estava com tanta raiva... se você não tivesse me feito parar de usar a magia do caos, não sei o que teria...
— Ah, pelo amor de Deus! Por que vocês, garotos, têm que ficar o tempo todo falando sobre seus sentimentos? Isso é tão bobo — Tamara o interrompeu. — Ainda há Dominados pelo Caos tentando vir atrás da gente! — Ela apontou para cima, para onde olhos rodopiantes os espiavam da escuridão do telhado. — Vamos. Já chega. Temos que dar o fora daqui.
Ela começou a andar com as longas tranças balançando em suas costas. Reunindo forças para a caminhada sem fim até o Magisterium, Call se afastou da parede e deu um único passo excruciante antes de desmaiar. Ele apagou tão depressa que nem sentiu quando sua cabeça bateu no chão.
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