Capítulo 16


Tirei da mochila quatro camisetas, cinco pares de meia, três pares de calça cargo, duas camisolas enormes, uma escova de dentes, um tubo de pasta, uma escova de cabelo, rímel e gloss labial. A equipe Alpina poderia ser chamada a qualquer momento, e eu queria estar pronta. Não me passou despercebido que eu estava brigando com o único bombeiro de elite destinado a me manter em segurança, nem que Tyler precisava se concentrar no incêndio que aumentava, e não no nosso drama ridículo.
Tyler e eu não tínhamos algo que se poderia chamar de nosso. Não éramos um nós, o que significava nada de ciúme, nada de expectativas e nada de discussões aprofundadas sobre a situação do nosso relacionamento ou para onde ele se encaminhava. Eu era uma alcoólotra em recuperação, e ele, galinha em recuperação. Qualquer um dos terapeutas que consultei ao longo dos últimos cinco anos diria o mesmo que eu estava pensando: não tínhamos futuro.
Peguei o controle remoto e liguei a tevê. O canal de notícias já estava relatando o incêndio, com as últimas atualizações rolando na parte inferior da tela. Só escutei durante alguns minutos antes de desligá-la.
Meu celular zumbiu, deitado no mesmo lugar da cama onde eu o jogara mais cedo. Mesmo a três metros de distância, dava para ver que era minha irmã. Ele tocou algumas vezes antes de apagar, depois a tela acendeu de novo.
Dei alguns passos e peguei o aparelho, sem saber, até levá-lo ao ouvido, se ia jogá-lo do outro lado do quarto ou atendê-lo.
— Alô.
— Ellison?
— Oi, Finley.
Ela suspirou.
— Achei que você tivesse morrido. A mamãe e o papai também.
— Acho que, para eles, eu meio que morri mesmo.
Pude ouvir sua ira aumentando e me encolhi quando ela gritou no meu ouvido.
— Não pra mim! Não fiz merda nenhuma pra você, Ellie, e você está me ignorando e me evitando há meses! Você acha que eu estava na praia simplesmente esperando que você estivesse bem?
— Não, mas eu tinha esperança...
— Foda-se! Não espere nada de bom de mim neste momento. Estou com raiva de você! Eu não mereço isso!
Congelei, me perguntando se ela estava falando de outra coisa além de ser ignorada.
— Diz alguma coisa! — A voz de Finley falhou, e ela começou a fungar.
Franzi o nariz.
— Você está chorando? Não chora, Fin, desculpa.
— Por que você não fala comigo? — ela gritou. — O que foi que eu fiz?
— Nada. Você não fez nada. Eu só não queria estragar as suas férias. Não queria que você se sentisse culpada ou que se preocupasse.
— E falhou em todos os sentidos!
— Desculpa.
— Não quero que você se desculpe! — ela soltou. — Quero que atenda a merda do telefone quando eu ligar!
— Tudo bem — falei. — Vou fazer isso.
— Promete? — Ela agora estava mais calma, respirando fundo.
— Prometo. Vou atender quando você ligar... se eu não estiver trabalhando.
— O que você está fazendo, afinal? A mamãe disse que você é secretária, ou fotógrafa, ou alguma coisa da revista daí.
— Isso.
— Você está usando a câmera que eu te dei?
Dava para ouvi-la sorrindo. Ela já tinha me perdoado. Ela não sabia do Sterling e, quando descobrisse, ela se lembraria dessa conversa e se sentiria ainda mais traída. Tudo que eu queria era desligar o telefone, mas isso só a deixaria mais desconfiada.
— Estou. É uma câmera muito boa, Fin, obrigada.
Finley não falou durante alguns segundos.
— Parece que eu estou falando com uma desconhecida.
— Sou eu — falei.
— Não, não é você. Você mudou.
— Estou sóbria.
Ela soltou uma risada.
— Como está sendo isso?
— Bem, na verdade. Bom... fiz só uma merda. Como está Sanya?
— Não sei. Passei as últimas três semanas em Bali.
— Como está Bali?
— Linda. Vou voltar para os Estados Unidos pra te ver.
Entrei em pânico.
— Sinto sua falta, Fin, mas estou viajando muito com esse emprego. Estou acompanhando os bombeiros de elite, e vamos viajar pra todo lado até o início de outubro.
— Os bombeiros de elite? Tipo, na equipe do Tyler?
— Isso.
— Você está trepando com ele, né?
— De vez em quando.
— Eu sabia! — Ela deu uma risadinha.
Eu ia sentir falta dessa Finley, da que nunca se chocava e sempre deixava minhas faltas de lado. Finley sempre inventava desculpas por mim; ela me conduzia pela vida de mãos dadas comigo e me dava ordens sem pensar porque era isso que irmãs mais velhas faziam.
Não importa o quanto eu quisesse evitar, chegaria um momento em que seríamos irmãs, mas não seríamos mais amigas. Mesmo que Finley me perdoasse, ela sempre sentiria a dor da minha traição e nunca saberia se poderia voltar a confiar em mim.
Peguei uma das duas garrafas de água mineral do quarto, desejando que fosse algo mais forte, e andei de um lado para o outro antes de decidir descer. Meu reflexo no espelho ao lado da porta chamou minha atenção, e encarei os olhos azul-claros redondos que me espreitavam de um jeito vazio. Meu reflexo não era simpático. Fios escuros de cabelo ondulado escapavam do coque bagunçado. Eu estava sóbria e trabalhando, fazendo tudo que as pessoas normais faziam, mas eu estava feliz?
Parte de mim odiava Tyler por eu ter que fazer essa pergunta a mim mesma. Se eu não conseguisse ser feliz fazendo algo que adorava, dormindo ao lado de um homem paciente que tentava cuidar de mim do único jeito que ele sabia, será que eu merecia estar feliz? Eu era independente, ganhava meu próprio dinheiro e tomava minhas próprias decisões, mas, ao encarar a Ellie dois-ponto-zero no espelho, a tristeza em seus olhos era difícil de ignorar. Era enfurecedor.
A porta pesada bateu atrás de mim quando atravessei o corredor. O elevador me levou ao saguão, e eu me surpreendi ao encontrá-lo quase vazio.
— Oi — cumprimentei a recepcionista.
Ela sorriu, afastando o desenho que estava fazendo.
— Isso é muito bom — falei, olhando de novo.
— Obrigada — disse ela. — Como posso ajudá-la?
Coloquei meu cartão de crédito sobre a mesa.
— Posso trocar o cartão do meu quarto?
— Claro — respondeu ela, pegando o retângulo prateado da mesa. Ela usou o mouse, clicou algumas vezes e passou o cartão no scanner. — Para despesas extras também?
— Sim. Tudo.
— Entendi — disse ela, me devolvendo o cartão. — É só assinar aqui.
— Obrigada... — Olhei seu crachá. — Darby.
— De nada, Opinião das Montanhas.
Fui até o bar e sentei no banco, sozinha, exceto pelo homem atrás do balcão que lavava pratos. Ele tinha a pele macia e morena e era jovem demais para a cabeça cheia de cabelos e costeletas grisalhos.
— Boa tarde — cumprimentou. Em seguida enfiou o punho coberto com um pano num copo de vidro, girando rapidamente antes de pegar outro copo na pia. Seus olhos escuros davam a impressão de que ele me encarava com muito mais intensidade do que pretendia.
— Oi. Só... humm... uma Sprite, por enquanto.
— Com gelo? — provocou ele. Seu sorriso desapareceu, e ele voltou ao trabalho, percebendo que eu não estava no clima para piadas.
Ele encheu um copo alto, deslizando-o até a minha frente. Seus olhos brilharam quando alguém sentou no banco à minha direita. Não foi difícil adivinhar quem era quando a pessoa falou.
— Me dá uma cerveja, parceiro! — disse Liam.
— Vai beber no primeiro dia de trabalho? — perguntei. — Você não tem uma reunião daqui a quinze minutos?
— Sem problemas. Vou beber o que ela está bebendo.
— Mais uma Sprite — disse o bartender, decepcionado.
Rasguei as bordas do meu guardanapo, com um milhão de coisas quicando na mente.
— E aí, como foi que você veio parar nesse emprego? — perguntou Liam.
— Comecei atendendo ligações na revista e acabei tirando umas fotos que impressionaram o dono. Ele me mandou trabalhar com o Tyler, e minhas fotos se destacaram na região. Então, aqui estou eu, fotografando para uma série de artigos.
— Trabalhou até chegar onde está. Gostei disso — disse Liam, bebendo o refrigerante como se fosse uma caneca de cerveja. Ele até inclinou o copo de plástico para cumprimentar outros bombeiros que estavam passando.
— Eu era nova na revista quando me mandaram para a primeira tarefa.
— Mais impressionante ainda — observou Liam.
— Não muito. — Balancei a cabeça e olhei para baixo.
— O que você fazia antes?
— Nada. Fiz faculdade, mal me formei e viajei por um tempo. Meus pais têm uma casa em Estes Park, e foi assim que eu fui parar lá.
— Ah. Como é que vocês chamam isso? Filhinha de papai?
— Acho que era isso que eu era.
— Não é mais?
— Não, fui deserdada, na verdade.
— Quanto mais eu converso com você, mais você fica interessante. Normalmente é o contrário.
Olhei para Liam, analisando suas feições. Ele era o estereótipo do australiano, com queixo firme, ombros largos e estrutura gigantesca. Seu maxilar estava coberto com uma leve barba castanha por fazer, e as íris esmeralda eram lindas, apesar de mal serem notadas por causa dos olhos estreitos. Meu primeiro instinto foi convidá-lo para ir até o meu quarto e esquecer a briga com Tyler durante uma ou duas horas, mas, se os últimos cinco meses tinham me ensinado alguma coisa, era que eu não podia trepar, beber nem fumar para afastar os problemas. Eles ainda estariam lá de manhã, ainda piores do que antes.
Liam tomou mais um gole do refrigerante, terminando a bebida. Eu mal tinha tocado o meu.
— Começar do zero pode ser meio deprimente — disse ele. — Isso ninguém fala. Além de você ter que se esforçar para se sentir bem, ainda tem que dar um jeito de não forçar a barra.
— Não me diz que você também é filhinho de papai — duvidei.
— Não. O trabalho clareia a minha mente, mas nem isso estava me ajudando mais. Eu precisava me afastar um pouco.
Ele olhou ao redor, por sobre cada um dos ombros, como se o que deixara para trás pudesse tê-lo seguido.
— Mas em algum momento a gente se sente melhor, não sente? — perguntei.
— Eu aviso quando acontecer — prometeu Liam, se levantando.
Tyler dobrou o corredor, mas parou quando nos reconheceu, sentados juntos no bar.
— Melhor eu ir para a reunião — disse Liam.
— Boa reunião — falei, erguendo o copo.
Liam bateu seu copo vazio no meu, depois partiu para a sala de conferências.
Tyler parou durante alguns segundos antes de vir até o meu lado.
— O que você está bebendo?
— Sprite. Pede uma pra você.
Ele balançou a cabeça, examinando o saguão.
— Sou do tipo Cherry Coke.
— Onde está o Taylor? — perguntei.
— Não está aqui. Pelo menos por enquanto. Ele me ligou mais cedo. Conheceu uma garota.
— Aqui? Uma moradora?
Ele deu de ombros.
— Ele não teve muito tempo pra falar. Acho que ela é garçonete ou alguma coisa assim.
— Interessante. Ai, merda. Tyler — falei, vendo o agente Trexler parar na recepção. Ele flertou de leve com Darby, a recepcionista, antes de seguir em direção às portas automáticas, notando a presença de Tyler quando as atravessou. Ele não parou, e eu soltei um suspiro de alívio.
— O Taylor já cuidou de tudo — disse Tyler.
— Como?
— Simplesmente cuidou. Tenho que ir.
Para minha surpresa, Tyler se inclinou para beijar meu rosto antes de seguir Liam até a sala de conferências. Quando ele abriu a porta, vi várias pessoas que pareciam oficiais na ponta da mesa, segurando papéis recém-desenrolados que lutavam para voltar à posição anterior. A sala estava agitada, com ligações telefônicas, digitação em iPads e notebooks. Os bombeiros de elite estavam em pé ao redor, esperando as ordens enquanto a equipe TAC colhia informações. Antes de as portas se fecharem, vi alguns dos garotos por meio segundo, com braços cruzados e aparência de durões, até Pudim me avistar de relance e acenar como uma criança que via os pais do palco, em um recital da escola.
— Tudo certo aí, Stavros? — perguntou Darby, apoiando-se no balcão. Sua blusa social branca perfeitamente passada, os lábios vermelhos mate muito bem delineados, a calça preta impecável e o rabo de cavalo cor de mel preso com firmeza, sem um único fio fora do lugar. Com suas curvas e um enorme e brilhante sorriso, eu me perguntei se Darby já havia participado de um concurso de beleza. Cada movimento que ela fazia era elegante, cada sorriso, planejado.
Eu a olhei de relance, imediatamente desconfiada. Trexler estivera flertando com ela mais cedo. Talvez ela também fosse uma agente.
— Os bombeiros não dão gorjeta — resmungou Stavros. — E, até agora, todos são héteros.
— Tem sido assim há uma semana — comentou Darby, apoiando o queixo na mão.
Senti o corpo enrijecer, preocupada de dizer ou fazer alguma coisa que pudesse ajudar Trexler em sua investigação da família de Tyler.
— Tudo bem com você? — perguntou Darby.
— Quem era aquele cara que saiu agora há pouco? O que ele te falou antes de sair?
— O Trex? — perguntou ela, os olhos brilhando instantaneamente com o som do nome dele nos lábios.
— É — respondi.
— Ele é bombeiro, vai ficar aqui até o incêndio acabar. Ele é, tipo... de uma equipe especial. Não é bombeiro de elite nem da equipe de solo. Ele não fala muito sobre o assunto.
— Tipo serviço secreto dos bombeiros? — perguntei em tom de brincadeira.
Ela deu uma risadinha, mas o som pareceu estranho, como se ela não estivesse acostumada a rir.
— Acho que sim. Ele é meio serião assim mesmo.
— Quer dizer que você não o conhece? — perguntei, pensando no motivo para ele ter mentido para ela.
— Um pouco.
— Só um pouco? — comentou Stavros com um sorrisinho.
— E você? — perguntou Darby, penteando o cabelo com os dedos. Seus olhos castanhos me lembraram os olhos de Tyler: quentes com tons dourados e muito sofrimento por trás. — Pelo cartão, suponho que você seja repórter.
— Fotógrafa. Estou acompanhando a equipe Alpina.
— Ah. Já conheci Taylor Maddox e Zeke Lund. São uns amores. Eles andaram conversando com o Trex.
— É mesmo? — perguntei, confusa.
— É. Foram até o quarto dele quase todas as noites desde que chegaram.
— Há quanto tempo o Trex está aqui?
Darby deu de ombros, olhando para trás para confirmar se não tinha ninguém na mesa.
— Duas semanas. Ele chegou aqui antes de o incêndio começar.
Minhas sobrancelhas se uniram.
— Isso é meio esquisito.
Ela sorriu.
— Talvez não seja do serviço secreto dos bombeiros. Talvez seja médium secreto dos bombeiros.
Uma família de quatro pessoas passou pelas portas automáticas, aproximando-se da mesa. Darby deu um pulo e voltou ao seu posto, cumprimentando-os com seu sorriso delineado de vermelho.
A porta da sala de conferências se abriu, liberando bombeiros de elite e oficiais da equipe TAC. Vi mais do que apenas a minha equipe lá dentro e me perguntei quantos tinham sido chamados para o incêndio de Colorado Springs.
Tyler e Anão pararam ao meu lado, parecendo pai e filho, em vez de colegas de equipe. Anão era duas cabeças mais baixo que Tyler, mas tão forte quanto ele. Assim como os outros caras, Anão emagrecera ao longo da temporada de incêndios, mas, apesar de ser o mais novo e menor, normalmente era o último na caminhonete, no fim do dia.
— Qual é o veredicto? — perguntei.
Tyler cruzou os braços, analisando a multidão que se formava no saguão.
— É profundo. Vamos seguir de caminhonete até onde der, depois pegamos um helicóptero para o local do incêndio. A equipe Alpina ficou com a parte leste.
— Devo pegar meus equipamentos? — perguntei.
Tyler se encolheu.
— Não.
— O que você quer dizer com não? Quando vamos partir?
— Não vamos.
Balancei a cabeça.
— Não entendi.
— Você não está autorizada a ir. É um incêndio de movimentação rápida. Por pouco não aconteceu uma tragédia. Os ventos mudam toda hora, e não é seguro, Ellie.
— Nunca é seguro — sibilei.
— A única zona segura é a negra.
— Então eu tiro fotos da zona negra.
— Não vou estar na zona negra. Eles precisam de mim na linha de fogo.
Virei de costas para ele, fumegando. A decisão não era dele, mas saber disso não ajudava.
— Você pelo menos tentou me defender?
— Ele te defendeu, Ellie — respondeu Anão. — Todos fizemos isso.
— Eu provavelmente poderia receber meu cartão vermelho agora. Isso é uma palhaçada sexista — rosnei.
Tyler suspirou.
— Tem meia dúzia de mulheres lá agora. Não é sexismo; é questão de segurança. Nenhum civil nas montanhas. Eles vão reconsiderar quando o fogo estiver mais perto de ser controlado.
Virei para ele.
— Você está brincando comigo, porra? Está dizendo que, se eu tivesse um pau, eles não me deixariam subir lá com o meu crachá da imprensa? Um incêndio nunca é controlado. Nunca é seguro. Nunca se sabe o que vai acontecer. A gente simplesmente acha que ele vai na nossa direção lá em cima. E agora eu vou ficar tirando fotos do horizonte e das equipes de solo fazendo a limpeza quando tudo acabar.
— Eu falei pra você não vir — disse Tyler, impaciente com meu ataque. — Temos que ir. Te vejo quando voltar.
— Me leva junto — gritei atrás dele. — Maddox!
A multidão do saguão ficou em silêncio e observou Tyler se afastando de mim em direção aos elevadores. Virei para encarar Stavros, tentando controlar lágrimas de raiva.
— Você disse “pau” — comentou Stavros. — Já gostei de você.
— Me serve uma vodca com tônica.
Stavros sorriu.
— Sério?
— Sério.

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