Capítulo 5 – Em que Jared lê um livro e prepara uma armadilha

Mallory e Simon tinham saído para o campo, para esgrimir, quando Jared encontrou-os. O rabo de cavalo de Mallory estava de fora do seu capacete de esgrima, e Jared pôde ver que ele estava menor do que era antes. Ela estava aparentemente tentando compensar sua fraqueza anterior através de uma luta implacável de espadas.
De qualquer maneira, Simon não conseguiria surpreendê- la. Ele estava sendo empurrado para o lado do depósito da casa e suas defesas tornavam-se cada vez mais desesperadas.
— Eu achei uma coisa — disse Jared. Simon levantou seu capacete da cabeça. Mallory aproveitou a oportunidade para golpear, empurrando a ponta falsa de sua espada contra o peito dele.
—É o terceiro, para acabar — disse Malloy. — Detonei você.
— Você trapaceou — reclamo ele.
— Você é que ficou distraído — revidou Mallory.
Simon tirou o capacete da cabeça, jogou-o no chão e olhou para Jared.
— Obrigado.
— Desculpe — respondeu Jared automaticamente.
— Você é que sempre luta com ela; eu só vim aqui apanhar alguns girinos. — Simon olhou com a cara feia.
— Certo, mas estou ocupado. Só porque eu não tenho um punhado de animais bobos para cuidar isso não significa que não possa estar ocupado — replicou Jared.
— Calem a boca, os dois. — Mallory levantou o próprio capacete. Seu rosto estava vermelho. — O que você achou?
Jared tentou reavivar um pouco da sua excitação de antes.
— Um livro no sótão. É sobre seres fantásticos, seres fantásticos de verdade. Olhe como eles são feios.
Mallory tomou o livro das mãos dele e começou a observá-lo.
— Isso é coisa de criança. É um livro de histórias.
— Não é — disse Jared defensivamente. — É um guia de campo. Sabe, como os de pássaros. Para saber distinguir os diferentes tipos.
— Você acha que um ser encantado amarrou meu cabelo na minha cama? — perguntou Mallory. — A mamãe acha que foi você. Acha que você está agindo de um jeito esquisito desde que papai foi embora. Como se meter em todas aquelas brigas na escola.
Simon não dizia nada.
— Mas você não acredita nisso. — Jared esperava que ela concordasse. — E você vive se metendo em brigas.
Mallory suspirou profundamente.
— Eu não acho que você é tonto o suficiente para fazer uma coisa como aquela — disse ela, cerrando os punhos para mostrar o que faria se tivesse sido ele. — Mas também não acho que foram os seres fantásticos.

***

Depois do jantar, a mãe deles estava estranhamente quieta enquanto colocava frango e purê de batatas no prato dos filhos. Mallory também não estava lá muito falante, mas Simon tagarelava sobre os girinos que encontrara e como eles logo se tornariam sapos porque já tinham uns braços pequenininhos.
Jared havia visto os girinos. Eles ainda tinham um longo caminho pela frente. O que Simon chamava de braços pareciam muito mais anteninhas de peixe.
— Mamãe — disse Jared finalmente —, nós temos um parente chamado Artur?
A mãe deles levantou suspeitosamente os olhos de seu prato.
— Não, eu acho que não. Por que você está perguntando?
— Eu só estava pensando — murmurou Jared. — E Spiderwick?
— Esse é o sobrenome da tia-avó Lúcia — a mãe deles respondeu. — Era o nome de solteira da minha mãe. Talvez Artur fosse um dos parentes dela. Agora me diga por que você está querendo saber essas coisas?
— É que encontrei uma coisa dele no sótão... só isso — disse Jared.
— No sótão! — Sua mãe derrubou a maior parte do chá gelado. — Jared Grace, como você sabe, metade de todo o segundo andar está tão apodrecido que, se você pisar em um lugar errado, vai cair em um cômodo do andar de baixo.
— Eu fiquei no lado seguro — alegou Jared.
— Não sabemos se há um lado seguro no sótão.
Não quero ninguém brincando lá, especialmente você — disse ela, olhando direto para ele.
Ele mordeu os lábios. Especialmente você. Jared não falou mais nada pelo resto do jantar.

***

— Você vai ler isso durante a noite toda? — perguntou
Simon. Ele estava sentado no seu lado do quarto. Tomás e Jeferson corriam pelo acolchoado, e seus novos girinos estavam em um dos aquários.
— E se eu for? — quis saber Jared.
Com cada página esfarelada, Jared aprendia fatos estranhos. Poderia realmente ter gnomos na casa dele? Fadas no quintal? Ondinas no rio lá atrás? O livro tornava esses seres muito reais. Ele não queria falar com ninguém naquele momento, nem mesmo com Simon. Só queria continuar lendo.
— Eu não sei — disse Simon —, achei que talvez você já estivesse entediado a uma hora dessas. Você não tem o costume de ler.
Jared levantou os olhos e vacilou. Era verdade. Simon é que era o leitor. Jared, na maioria das vezes, apenas se metia em problemas.
Ele virou uma página.
— Eu posso ler se quiser.
Simon bocejou.
— Você está preocupado em cair no sono? Quero dizer com o que pode acontecer essa noite.
— Olhe para isso — Jared apontou para uma página na frente deles. — Esse é um ser encantado chamado gnomo. — Ele colocou a folha na frente de Simon. Na folha amarelada havia um desenho de um homenzinho, posando com um espanador feito de pena de peteca e um alfinete reto. Perto dele havia um vulto arqueado, também pequeno, mas esse segurava um pedaço de caco de vidro.
— O que é isto? — Simon apontou para a segunda figura, intrigado.
— Esse tal de Artur diz que é um diabrete. Veja, gnomos são aqueles gentis homenzinhos, mas se você os perturba, eles ficam loucos. Começam a fazer coisas ruins e você não é capaz de contê-los. Então eles viram diabretes. É o que eu acho que nós temos.
— Você acha que nós o perturbamos mexendo na casa dele?
— Pode ser. Ou talvez ele já fosse um tipo doido antes disso. Quero dizer, olhe para esse aqui. — Jared apontou para o gnomo. — Ele não é o tipo que vive em uma casa esquisita decorada com insetos mortos.
Simon concordou, olhando para os desenhos.
— Já que você achou o livro nessa casa — disse ele —, você acha que esse é o desenho do nosso diabrete?
— Nunca pensei nisso — disse Jared, baixinho. — Mas bem que faz sentido.
— No livro diz o que devemos fazer?
Jared balançou a cabeça.
— Ele fala sobre diferentes formas de apanhá-lo. Não capturá-lo de verdade, mas de vê-lo... ou de ter evidências.
Jared — Simon parecia duvidar —, mamãe disse para fechar a porta e ficar aqui. A última coisa que ela quer é outra razão para acreditar que foi você que fez aquilo com Mallory.
— Mas ela acha de qualquer jeito que fui eu. Se acontecer alguma coisa essa noite, ela vai pensar que fui eu também.
— Ela não vai. Vou dizer para ela que você ficou aqui a noite inteira. Além disso, desse jeito, nós dois vamos ter certeza de que com a gente nada vai acontecer.
— E Mallory? — perguntou Jared.
Simon deu de ombros.
— Eu a vi indo para cama com uma de suas espadas de esgrima. Eu não mexeria com ela.
— Certo. — Jared voltou para cama e abriu o livro novamente. — Só vou ler mais um pouco.
Simon concordou com a cabeça e foi colocar os ratos de volta em seus potes. Então foi para a cama, colocou as cobertas sobre a cabeça, resmungando em seguida:
— Boa noite.
À medida que Jared lia, cada página o levava mais fundo naquele estranho mundo de florestas e rios, na companhia de criaturas que pareciam tão próximas que ele podia mesmo acariciar a escorregadia e escamosa costela das sereias. Ele podia sentir inclusive o calor da respiração do troll e ouvir o rumor dos passos do duende.
Quando virou a última página, era tarde da noite. Simon estava tão enrolado no cobertor que Jared podia ver somente a ponta de sua cabeça. Jared apurou os ouvidos, mas os únicos barulhos na casa eram o vento assobiando no teto sobre eles e a água pelos canos. Nada correndo ou se mexendo. Até os bichos do Simon estavam dormindo.
Jared mudou para a página em que leu: Diabretes adoram atormentar aqueles que antes protegiam e fazem o leite azedar, as portas baterem, os cães mancarem e outras travessuras mal intencionadas.
Simon acreditava nele — ainda bem, ao menos —, mas Mallory e a mãe deles não. E, além disso, ele e Simon eram gêmeos. Não fazia diferença para ninguém que Simon acreditasse nele. Jared observou a sugestão do livro: Espalhar açúcar ou farinha no chão é um jeito de conseguir pegadas.
Se ele tivesse pegadas para mostrar, então acreditariam nele.
Jared abriu a porta e arrastou-se escada abaixo. Estava escuro na cozinha e tudo parecia quieto. Ele andou na ponta dos pés sobre os azulejos frios até onde sua mãe tinha colocado a farinha — em um velho vidro de farmácia na prateleira. O garoto retirou vários punhados e espalhou-os no chão generosamente. Não parecia muito.
Ele não tinha certeza do jeito que as pegadas se mostrariam ali.
Talvez o diabrete nem mesmo caminhasse pelo chão da cozinha. Até ali, o bicho parecia decidido a mover- se entre as paredes. Ele pensava no que sabia sobre diabretes do livro. Ardilosos. Odiosos. Difícil de se livrar deles.
Quando estavam sob a forma de gnomos eram gentis e belos, faziam todo tipo de trabalho por uma bela tigela de leite. Talvez... Jared foi até a geladeira e derramou leite em um pequeno pires. Talvez se ele deixasse por ali, a criatura ficaria tentada a sair das paredes e deixaria pegadas na farinha.
Quando o menino olhou para o pires de leite ali no chão, não pôde deixar de se sentir um pouco mal e estranho ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, era esquisito que ele estivesse ali naquela hora, preparando uma armadilha para alguma coisa que nem acreditava existir duas semanas atrás.
Mas a razão por que ele se sentia mal era que... bom, ele sabia que aquilo parecia ser uma loucura, e sabia como era simples tudo virar uma confusão, mesmo se fosse realmente maluquice ou qualquer coisa assim. E ele achava que talvez o diabrete se sentisse também daquele jeito.
Foi então que percebeu ainda outra coisa. Poderia deixar suas próprias pegadas na farinha por todo o caminho do leite até o corredor.
— Droga — murmurou enquanto ia apanhar a vassoura.
A luz acendeu.
— Jared Grace — era a voz de sua mãe, no topo da escada.
Jared virou-se rápido, mas não sabia se pareceria muito culpado.
— Volte para a cama — disse ela.
— Eu só estava tentando pegar... — Mas ela não o deixou terminar.
— Agora, senhor. Vá.
Depois de pensar sobre aquilo por um instante, ele ficou feliz por ter sido interrompido. Sua idéia sobre o diabrete provavelmente não teria sido grande coisa.
 Com uma olhadela sobre seus ombros para a farinha espalhada no chão, Jared fugiu pelas escadas.

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