Capítulo Cinco
Esse é um daqueles fins de semana
em que não saio de casa pra nada — literalmente — exceto uma ida rápida com
minha mãe até a loja de conveniência White Hen. Esses fins de semana em geral
não me aborrecem, mas fico meio que torcendo pra que Tiny Cooper e/ou Jane
liguem e me deem uma desculpa pra usar a identidade que escondi nas páginas de
Persuasão na minha estante.
Mas ninguém liga; tampouco Tiny
ou Jane aparecem on-line; e está mais frio que o peito de uma bruxa em um sutiã
de aço, então fico em casa e ponho o dever de casa em dia. Faço o trabalho de
pré-cálculo, e, quando termino, fico sentado com o livro por umas três horas,
tentando entender o que acabei de fazer. É um fim de semana desses — do tipo em
que você tem tanto tempo que vai além das respostas e começa a olhar as ideias.
Então, na noite de domingo,
quando estou no computador vendo se alguém está on-line, meu pai coloca a
cabeça na porta do quarto. “ Will”, diz ele, “ você tem um segundo pra
conversar na sala?” Giro na cadeira e me levanto. Meu estômago se contrai um
pouco porque a sala é o lugar menos agradável de se ficar; o lugar onde a não
existência do Papai Noel é revelada, onde as avós morrem, onde testas franzidas
olham as notas nos boletins e onde se aprende que a caminhonete do homem entra
na garagem da mulher, e então sai, e então volta a entrar, e assim por diante,
até um óvulo ser fertilizado etc. etc.
Meu pai é muito alto, muito magro
e muito careca, e tem dedos longos e finos, que ele tamborila no braço de um
sofá de estampa floral. Eu me sento de frente pra ele em uma poltrona super
acolchoada e super verde. O dedo que tamborila prossegue por uns 34 anos, mas
ele não diz nada, e então eu finalmente digo:
— Ei, pai.
Ele tem uma maneira de falar
intensa e muito formal, o meu pai. Sempre fala como se estivesse informando que
você tem câncer em estágio terminal — o que, na verdade, corresponde a uma boa
parte do trabalho dele, então faz sentido.
Ele me olha com aqueles olhos
tristes e intensos de você-tem-câncer, e diz:
— Sua mãe e eu estamos querendo
saber sobre seus planos.
E respondo:
— Hã, bem. Pensei em ir, hã, pra
cama daqui a pouco. E depois ir pra escola. Vou a um show na sexta. Já avisei a
mamãe.
Ele faz que sim com a cabeça.
— OK, mas depois disso.
— Hã, depois disso? Você se refere
a, tipo, ir pra faculdade e arrumar um emprego e me casar e dar netos a vocês e
ficar longe das drogas e viver feliz pra sempre?
Ele quase sorri. É algo
excessivamente difícil, fazer meu pai sorrir.
— Tem um aspecto desse processo
no qual sua mãe e eu estamos particularmente interessados neste momento
particular da sua vida.
— Faculdade?
— Faculdade — diz ele.
— Não preciso me preocupar com
isso até o ano que vem — observo.
— Nunca é cedo demais pra
planejar — insiste ele.
E aí ele começa a falar sobre
esse programa na Northwestern em que você pode fazer o curso de medicina
completo, tipo, os seis anos, de maneira que, aos 25 anos, você já é residente,
e pode ficar perto de casa, mas, é claro, morar no campus e blá-blá-blá. Depois
de uns 11 segundos, me dou conta de que ele e mamãe decidiram que eu deveria ir
pra esse programa e que estão me apresentando cedo à ideia, e periodicamente
vão tocar nesse assunto ao longo do próximo ano, pressionando, pressionando e
pressionando. Me dou conta também de que, se eu conseguir entrar, provavelmente
irei. Há maneiras piores de se ganhar a vida.
Sabe como as pessoas costumam
dizer com frequência que seus pais estão sempre certos? “ Siga o conselho dos
seus pais; eles sabem o que é bom pra você.” E você sabe como ninguém jamais
ouve esse conselho, porque, mesmo que seja verdade, é tão irritante e
condescendente que só te faz querer sair por aí e, tipo, desenvolver uma
dependência de metanfetamina e fazer sexo sem proteção com 87 mil parceiros
anônimos? Bem, eu ouço os meus pais. Eles sabem o que é bom pra mim.
Honestamente, eu dou ouvidos a qualquer um.
Quase todo mundo sabe mais que
eu.
E/porém/portanto meu pai não faz
ideia, mas toda a sua explicação sobre esse futuro é inútil; já está tudo certo
por mim. Não, estou pensando no quanto me sinto pequeno nessa cadeira
absurdamente grande, e na identidade falsa aquecendo as páginas de Jane Austen,
e se estou mais furioso ou espantado com Tiny, e pensando na sexta, em me
manter longe de Tiny na roda punk enquanto ele tenta dançar como todo mundo, e
no aquecimento ligado forte demais no clube e todo mundo com a roupa molhada de
suor, a música num ritmo tão vigoroso e uma sensação de arrepio que nem ligo
sobre o que estão cantando.
E digo:
— É, parece mesmo legal, pai.
E ele fica falando que conhece
gente lá, e eu fico balançando a cabeça só dizendo uhum, uhum, uhum.
Na segunda de manhã, chego à
escola vinte minutos adiantado porque minha mãe tem de estar no hospital às 7h
— imagino que alguém tem um tumor extravagranre ou coisa parecida. Então me
encosto no mastro da bandeira no gramado da frente da escola, esperando Tiny
Cooper e tremendo de frio apesar das luvas e do chapéu, e do casaco e do capuz.
O vento sopra, cortante, pelo gramado, e posso ouvi-lo fustigando a bandeira
acima de mim, mas de maneira nenhuma vou entrar naquele edifício um
nanossegundo antes de o sinal da primeira aula soar.
Os ônibus descarregam os alunos,
e o gramado começa a se encher de calouros, nenhum dos quais parecendo
particularmente impressionado comigo.
Então vejo Clint, membro titular
do meu ex-Grupo de Amigos, andando em minha direção, vindo do estacionamento do
terceiro ano. Consigo me convencer de que de fato ele não está vindo em minha
direção até que um hálito visível sopra sobre mim como uma pequena e
malcheirosa nuvem. E não vou mentir: eu meio que espero que ele esteja prestes
a se desculpar pela pequenez mental de certos amigos dele.
“Ei, seu puto”, diz ele. Clint
chama todo mundo de seu puto. Será um elogio? Um xingamento? Ou talvez sejam as
duas coisas de uma só vez, o que precisamente torna o adjetivo tão útil.
Eu me encolho um pouco por causa
do azedume do hálito dele e simplesmente digo: “ Ei.” Igualmente evasivo. Todas
as conversas que tive com Clint ou com qualquer outro do Grupo de Amigos são
idênticas: todas as palavras que usamos são despojadas, para que ninguém nunca
saiba o que o outro está dizendo, de modo que toda gentileza seja crueldade,
todo egoísmo seja generoso, todo cuidado seja insensível.
E ele diz:
— Tiny me ligou esse fim de
semana pra falar do musical dele. Quer que o conselho estudantil o financie.
Clint é o vice-presidente do
conselho estudantil.
— Ele me contou a porra toda
sobre o musical. A história de um grande filho da puta gay e de seu melhor
amigo que usa pinça pra tocar punheta porque o pau dele é muito pequeno. — Ele
diz isso tudo com um sorriso. Não está sendo perverso. Não exatamente.
E eu quero dizer: Isso é
incrivelmente original. De onde você tira essas pérolas, Clint? Tem alguma
fábrica de piadas na Indonésia, onde crianças de 8 anos trabalham 90 horas por
semana pra te entregar esse tipo de comentário espirituoso de alta qualidade?
Existem boy bands com material mais original.
Mas não digo nada.
— Pois é — continua Clint. — Acho
que talvez ajude Tiny na reunião de amanhã. Porque a peça parece uma ideia
fantástica. Só tenho uma pergunta: você vai cantar suas próprias músicas?
Porque eu pagaria pra ver isso.
Rio um pouco, mas não muito.
— Não sou muito de drama —
respondo, finalmente. Nesse momento, sinto uma presença enorme atrás de mim.
Clint levanta muito o queixo pra olhar pra Tiny e então o cumprimenta com um
gesto de cabeça. Ele diz:
— E aí, Tiny? — E se afasta.
— Ele tá tentando te roubar de
volta? — pergunta Tiny.
Faço meia-volta e agora posso falar.
— Você passa o fim de semana todo
off-line e sem me ligar, no entanto encontra tempo pra ligar pra ele em suas
contínuas tentativas de arruinar minha vida social através da magia da música?
— Em primeiro lugar, Tiny Dancer
não vai arruinar sua vida social, porque você não tem uma. Em segundo, você
também não me ligou. Em terceiro, eu estava muito ocupado! Nick e eu passamos
quase todo o fim de semana juntos.
— Pensei que tivesse te explicado
por que você não pode ficar com o Nick
— digo, e Tiny está começando a
falar outra vez quando vejo Jane, encurvada, avançando contra o vento. Ela está
usando um casaco de capuz que não é grosso o bastante, e vem em nossa direção.
Eu digo oi, ela diz oi, então
caminha e para do meu lado como se eu fosse um aquecedor ou algo assim. Jane
estreita os olhos, tentando se proteger do vento, e eu digo: “ Ei, toma aqui
meu casaco.” Eu o tiro e ela se enterra nele. Ainda estou pensando em uma
pergunta pra fazer a Jane quando o sinal dispara e todos entramos apressados.
Não vejo Jane durante todo o dia
na escola, o que é um pouco frustrante, porque mesmo nos corredores está
congelando, e eu fico o tempo todo preocupado com o fato de que depois das
aulas vou congelar até a morte no caminho até o carro de Tiny. Depois do último
tempo, desço correndo e destranco meu armário. O casaco está embolado lá
dentro.
Bem, é possível passar um bilhete
por um armário trancado, através das aberturas de ventilação. Forçando um
pouco, até mesmo um lápis. Uma vez, Tiny Cooper enfiou um livro do Happy Bunny
em meu armário. Mas acho extraordinariamente difícil imaginar como Jane, que,
afinal, não é a pessoa mais forte do mundo, conseguiu enfiar um casaco inteiro
pelas pequenas fendas.
Mas não estou aqui pra fazer
perguntas, então visto o casaco e saio, a caminho do estacionamento onde Tiny
Cooper está partilhando um daqueles apertos-de-mão-seguidos-por-um-abraço com
ninguém menos que Clint. Abro a porta do passageiro e entro no Acura de Tiny.
Ele entra logo em seguida, e, embora eu esteja puto com ele, até sou capaz de
apreciar a fascinante e complexa geometria envolvida no ato de Tiny Cooper
entrar em um carro minúsculo.
— Tenho uma proposta — digo
enquanto ele se dedica a outro milagre da engenharia: o de prender o cinto de
segurança.
— Estou lisonjeado, mas não vou
dormir com você — responde Tiny.
— Não tem graça nenhuma. Ouça,
minha proposta é que, se você desistir dessa coisa de Tiny Dancer, eu vou...
bem, o que você quer que eu faça? Porque eu faço qualquer coisa.
— Bem, eu quero que você fique
com a Jane. Ou, pelo menos, ligue pra ela.
Depois de eu tão habilmente
arranjar pra deixar vocês sozinhos, ela parece ter ficado com a impressão de
que você não quer ficar com ela.
— E não quero — digo. O que é
inteiramente verdade e inteiramente mentira. A verdade estúpida e totalmente
abrangente.
— Em que ano acha que estamos,
1832? Quando você gosta de alguém e essa pessoa gosta de você, põe a porra da
boca na boca da outra, abre a boca um pouco e então põe só um pedacinho da
língua pra fora pra esquentar as coisas.
Pelo amor de Deus, Grayson. Todo
mundo sempre critica que a juventude da América é devassa, que são maníacos por
sexo, distribuindo punhetas como se fossem pirulitos, e você não consegue nem
beijar uma garota que decididamente gosta de você?
— Eu não gosto dela, Tiny. Não
assim.
— Ela é maravilhosa.
— Como você pode saber?
— Eu sou gay, não cego. O cabelo
dela é todo fofo e ela tem o nariz perfeito. Isso, perfeito. E o quê? O que
vocês gostam? Peitos? Ela parece ter peitos. Eles parecem ser aproximadamente
do tamanho normal de peitos. O que mais você quer?
— Não quero falar disso.
Então ele liga o carro e começa a
bater a cabeça na buzina ritmicamente. Peeeeeem. Peeeeeem. Peeeeeem.
— Você está envergonhando a gente
— grito acima da buzina.
— Vou ficar fazendo isso até ter
uma lesão cerebral ou você dizer que vai ligar pra ela.
Enfio os dedos nos ouvidos, mas
Tiny continua a bater a cabeça na buzina. As pessoas estão nos olhando.
Finalmente, digo:
— Está bem. Está bem! ESTÁ BEM!
E a buzina cessa.
— Vou ligar pra Jane. Vou ser
legal com ela. Mas ainda assim não quero ficar com ela.
— Isso é escolha sua. Uma escolha
idiota.
— Então — continuo, esperançoso
—, nada de Tiny Dancer?
Tiny dá a partida no carro.
— Desculpe, Grayson, mas não
posso fazer isso. Tiny Dancer é maior que você ou eu, ou qualquer um de nós.
— Tiny, você tem uma compreensão
bem distorcida de compromisso.
Ele ri.
— Compromisso é quando você faz o
que eu digo pra você fazer e eu faço o que eu quero. O que me lembra: vou
precisar de você na peça.
Eu reprimo uma risada, porque
essa merda vai deixar de ser engraçada se for apresentada em nosso maldito
auditório.
— Nem pensar. Não. NÃO. Além
disso, insisto que você não me inclua no texto.
Tiny suspira.
— Você não entende, não é? Gil
Wrayson não é você; é um personagem fictício. Não posso simplesmente mudar
minha arte porque você se sente incomodado com ela.
Tento uma abordagem diferente.
— Você vai se humilhar lá em
cima, Tiny.
— Vai acontecer, Grayson. Tenho o
apoio financeiro do conselho estudantil. Portanto, cale a boca e lide com o
fato.
Eu calo a boca e lido com o fato,
mas não telefono pra Jane naquela noite.
Não sou o garoto de recados de
Tiny.
Na tarde seguinte, volto de
ônibus pra casa, porque Tiny está ocupado na reunião do conselho estudantil.
Ele me liga assim que acaba.
— Ótimas notícias, Grayson! —
grita.
— Ótimas notícias pra alguém são
sempre más notícias pra outra pessoa — respondo.
E, de fato, o conselho estudantil
aprovou o financiamento de mil dólares pra montagem e produção do musical Tiny
Dancer.
Nessa noite, estou esperando meus
pais chegarem em casa para jantarmos e tentando trabalhar num ensaio sobre
Emily Dickinson, mas, principalmente, estou fazendo o download de tudo que os
Maybe Dead Cats já gravaram. Eu meio que os amo incondicionalmente. E, enquanto
fico ouvindo o som deles, fico querendo dizer a alguém o quanto eles são bons,
e aí ligo pra Tiny, mas ele não atende, e então faço exatamente o que Tiny quer
— como sempre. Ligo pra Jane.
— Ei, Will — diz ela.
— Eu meio que amo
incondicionalmente os Maybe Dead Cats — digo.
— É, eles não são maus. Um pouco
pseudointelectuais, mas, afinal, não somos todos?
— Acho que o nome da banda é,
tipo, uma referência a um físico — observo.
Na verdade, eu sei disso. Acabei
de pesquisar a banda na Wikipédia.
— É — concorda ela. — Schrödinger.
Só que o nome da banda é um fracasso total, porque Schrödinger é famoso por apontar
esse paradoxo na física quântica em que, em certas circunstâncias, um gato não
visível pode estar tanto vivo quanto morto. E não maybe, talvez, morto.
— Ah — respondo, pois não posso
nem fingir que sabia disso. Eu me sinto um completo imbecil, então mudo de
assunto. — Ouvi dizer que Tiny Cooper usou sua Tiny Magia e o musical foi
aprovado.
— Sim. Mas, falando nisso, qual é
o seu problema com Tiny Dancer?
— Você já leu?
— Sim. É incrível, se ele
conseguir realizá-la.
— Bem, eu sou, assim, o coastro.
Gil Wrayson. Esse sou eu, é óbvio. E é... é constrangedor.
— Você não acha que é meio
incrível ser, assim, o coastro na vida de Tiny?
— Na verdade, não quero ser o
coastro na vida de ninguém — afirmo.
Ela não diz nada como resposta.
— Então, como você está? —
pergunto após um segundo.
— Normal.
— Só normal?
— Você encontrou o bilhete no
bolso do seu casaco?
— O quê... não. Tinha um bilhete?
— Tinha.
— Ah. Espere aí. — Ponho o
telefone na mesa e vasculho os bolsos. O problema com os bolsos do meu casaco é
que, se eu tiver um lixo pequeno, tipo assim, uma embalagem de Snickers, mas
não tiver nenhuma lixeira por perto, meus bolsos acabam se tornando a lixeira.
E não sou muito bom em esvaziar os bolsos-lixeiras. Assim, levo alguns segundos
pra encontrar um pedaço de folha de caderno dobrado. Do lado de fora diz:
Para: Will Grayson
De: A Houdini do Armário
Pego o telefone e digo:
— Ei, encontrei. — Eu me sinto um
pouquinho enjoado, de uma forma que é, ao mesmo tempo, boa e ruim.
— Então, você leu?
— Não — respondo, e me pergunto
se não seria melhor não ler o bilhete. Eu não devia ter ligado pra ela, pra
começar. — Espere. — Desdobro o papel:
Sr. Grayson,
O senhor deve sempre se
certificar de que não há ninguém olhando quando
destrancar seu armário. Nunca se
sabe (18) quando alguém (26) irá gravar (4) a
sua combinação. Obrigada pelo
casaco. Creio que o cavalheirismo ainda não
morreu.
Sinceramente,
Jane
P.S.: Gosto do fato de que você
trata seus bolsos do jeito que eu trato meu carro.
Depois de terminar o bilhete,
leio outra vez. Ele torna as duas verdades mais verdadeiras. Eu quero ela. E
não quero. Talvez eu seja mesmo um robô. Não tenho a menor ideia do que dizer,
então digo a pior coisa possível.
— Muito fofo.
É por isso que tenho de aderir à
Regra 2.
No silêncio que se seguiu, tenho
tempo de contemplar a palavra fofo — o quanto é depreciativa, como equivale a
chamar alguém de pequeno, como transforma a pessoa em um bebê, como a palavra é
um letreiro de néon cintilando na escuridão a mensagem: “ Sinta-se mal em
relação a si mesmo.”
E então finalmente ela diz:
— Não é meu adjetivo preferido.
— Desculpe. Quero dizer, é...
— Sei o que você quer dizer,
Will. — Ela me corta. — Me desculpe. Eu, hã, não sei. Acabei de sair de um
relacionamento, e acho que estou, assim, só procurando alguém para preencher a
vaga, e você é o candidato mais óbvio pra tanto e, ah, meu Deus, isso soa
péssimo. Ah, Deus. Vou desligar.
— Me desculpe o fofo. Não era
fofo. Era...
— Esqueça. Esqueça o bilhete, de verdade.
Eu nem mesmo... Não se preocupe com isso, Grayson.
Depois de pôr um fim desajeitado
à ligação, me dou conta do fim que ela pretendera dar à frase “ Eu nem
mesmo...”. ‘’ Eu nem mesmo... gosto de você, Grayson, porque você é meio...
Como posso dizer isso de forma educada... Não muito inteligente. Tipo, você
teve de procurar aquele físico na Wikipédia. Eu simplesmente sinto falta do meu
namorado, e você não me beijou, então eu meio que quero só porque você não
quis, e, de verdade, não é nada de mais, mas eu não consigo encontrar uma forma
de te dizer isso sem ferir seus sentimentos, e como sou muito mais piedosa e
atenciosa do que você com seus fofos, vou simplesmente interromper a frase em
eu nem mesmo.”
Ligo outra vez pra Tiny, dessa
vez não pra falar dos Maybe Dead Cats, e ele atende na metade do primeiro toque
e diz:
— Boa noite, Grayson.
Pergunto se ele concorda comigo
sobre o provável fim da frase dela, e então pergunto o que teria causado o
curto-circuito em meu cérebro pra chamar o bilhete de fofo, e como é possível
estar ao mesmo tempo atraído e não atraído por alguém, e se, por acaso, eu não
seria um robô incapaz de ter sentimentos verdadeiros, e se você acha que, na
verdade, tentar seguir as regras sobre ficar de boca fechada e não me importar
fez de mim um tipo de monstro hediondo que ninguém vai amar nem querer casar.
Eu falo tudo isso, e Tiny não diz nada, o que é basicamente uma virada sem
precedentes nos acontecimentos, e então, quando finalmente me calo, Tiny diz
hummm daquele seu jeitinho e então continua — e aqui eu o cito em discurso direto:
“ Grayson, às vezes você é igual. a. uma. garota.” E desliga na minha cara.
A frase inacabada fica na minha
cabeça a noite toda. E então meu coração de robô decide fazer alguma coisa — o
tipo de coisa que seria apreciada por uma hipotética
garota-de-quem-eu-gostaria.
Na escola, sexta, almoço
super-rápido, o que é muito fácil de fazer, pois Tiny e eu estamos em uma mesa
cheia de Gente do Teatro, e eles estão discutindo Tiny Dancer, todos falando
mais palavras por minuto do que eu falo em um dia inteiro. A curva
conversacional segue um padrão distinto — as vozes vão ficando mais altas e
mais rápidas, num crescendo, até que Tiny, falando acima de todos, faz uma
piada, e a mesa explode numa gargalhada, e as coisas se acalmam brevemente,
então as vozes recomeçam, crescendo e crescendo até a iminente erupção de Tiny.
Assim que percebo esse padrão, fica difícil não prestar atenção nele, mas tento
me concentrar em engolir minhas enchiladas. Despejo uma Coca goela abaixo e me
levanto.
Tiny ergue a mão pra silenciar o
vozerio.
— Aonde você vai, Grayson?
— Preciso ir ver uma coisa —
digo.
Sei a localização aproximada do armário
dela. Fica aproximadamente na frente do mural do corredor, no qual uma versão
mal pintada do mascote da nossa escola, Willie, o Wildkit, diz num balão de
fala: “ Wildkits Respeitam a TODOS”, o que é hilário em, pelo menos, 14 níveis
diferentes, o décimo quarto sendo que não existe essa coisa de wildkit. Willie,
o Wildkit, parece um leão da montanha, embora, apesar de eu admitir não ser
nenhum expert em zoologia, eu esteja razoavelmente seguro de que leões da
montanha, na verdade, não respeitam a todos.
Assim, estou recostado no mural
do Willie, o Wildkit, numa posição que parece que sou eu que estou dizendo que
Wildkits Respeitam a TODOS, e tenho de esperar assim por uns dez minutos, tentando
fazer parecer que estou fazendo alguma coisa e pensando que deveria ter levado
um livro ou qualquer coisa pra não ficar tão na cara que estou à espreita, e
então finalmente o sinal para o início da aula soa e o corredor se enche de
gente. Jane vai até o armário, dou um passo pro meio do corredor, as pessoas
abrem caminho pra mim e dou outro passo para a esquerda pra ficar no ângulo
certo.
Posso ver a mão dela indo até o
armário, estreito os olhos e 25-2-11. Me misturo ao fluxo de alunos e vou pra
aula de história.
Sétimo tempo, tenho essa aula de
criação de videogames. Acaba que criar videogames é incrivelmente difícil e nem
de perto tão divertido quanto jogá-los, mas a vantagem da aula é que tenho
acesso à internet e meu monitor fica de costas pro professor quase o tempo
todo.
Então mando um e-mail para os
Maybe Dead Cats.
De: williamgrayson@eths.il.us
Para: thiscatmaybedead@gmail.com
Assunto: Salvem a Minha Vida
Caros Maybe Dead Cats,
Se, por acaso, vocês tocarem “
Annus Miribalis” hoje à noite, será que poderiam dedicá-la a 25-2-11 (o segredo
do armário de uma tal garota)? Isso seria incrível.
Desculpe o pedido tão em cima da
hora,
Will Grayson
A resposta veio antes mesmo do
fim da aula.
Will,
Tudo pelo amor.
MDC
Assim, depois da aula, Jane, Tiny
e eu vamos ao Frank’s Franks, uma lanchonete de cachorro-quente a algumas quadras
do clube. Sento-me em uma mesa perto de Jane, o quadril dela encostado no meu.
Os casacos estão todos amontoados à nossa frente, ao lado de Tiny. O cabelo
dela cai em grandes
achos sobre
os ombros, e ela está usando uma blusa de alças finas nada apropriada ao clima,
além de muita maquiagem nos olhos. Porque este é um lugar de cachorro-quente
muito chique, um garçom anota nossos pedidos. Jane e eu pedimos um cachorro-quente
e um refrigerante cada um. Tiny pede quatro cachorros-quentes com pão, três sem,
uma tigela de chilli e uma Coca diet.
— Uma Coca diet? — pergunta o
garçom. — Você quer quatro cachorros-quentes com pão, três sem pão, uma tigela
de chilli e uma Coca diet?
— Isso mesmo — diz Tiny, e então
explica: — Açúcares simples não me ajudam a ganhar massa muscular.
E o garçom se limita a sacudir a
cabeça e falar:
— Aham.
— Pobre do seu sistema digestivo —
comento. — Um dia, ele vai se revoltar, subir e estrangular você.
— Sabe que o Treinador diz que
idealmente eu deveria ganhar 15 quilos para o começo da próxima temporada, se
eu quiser ganhar uma bolsa da Primeira Divisão? É preciso ser grande. E ganhar
peso é muito difícil pra mim. Eu tento e tento, mas é uma batalha constante.
— Você tem mesmo uma vida muito
dura, Tiny — diz Jane.
Eu rio, e nós trocamos olhares, e
então Tiny fala:
— Ah, meu Deus, andem logo com
isso.
O que leva a um silêncio
desconfortável que dura até Jane perguntar:
— Então, cadê Gary e Nick?
— Provavelmente fazendo as pazes —
diz Tiny. — Terminei com Nick ontem à noite.
— Fez a coisa certa. Estava
condenado desde o início.
— Eu sei, está bem? Acho que
quero ficar solteiro por um tempo.
Eu me viro para Jane e digo:
— Aposto cinco dólares como ele
vai estar apaixonado em quatro horas.
Ela ri.
— Três horas. Fechado.
— Feito.
Trocamos um aperto de mão.
Depois de comer, andamos um pouco
pela vizinhança pra matar o tempo e então entramos na fila diante do Storage
Room. Faz frio do lado de fora, mas junto ao prédio, pelo menos, estamos
protegidos do vento. Na fila, pego minha carteira, passo a identidade falsa pra
frente e escondo a carteira de motorista verdadeira entre um cartão do seguro
saúde e o cartão de visitas do meu pai.
— Deixe-me ver — pede Tiny, e
entrego minha carteira a ele, que diz: — Puxa, Grayson, pela primeira vez na
vida você não parece um baitola numa foto.
Pouco antes de chegarmos ao
começo da fila, Tiny me empurra pra frente dele; acho que para ter o prazer de
me ver usar a identidade pela primeira vez. O segurança usa uma camiseta que
não chega a cobrir sua barriga.
— Identidade — diz ele pra mim.
Puxo a carteira do bolso de trás,
tiro a identidade e a entrego. Ele dirige o feixe da lanterna pra ela, em
seguida, o aponta pra mim, então de volta à identidade, e diz:
— O quê? Você acha que não sei
fazer conta?
E eu resmungo:
— Hein?
E o segurança diz:
— Garoto, você tem 20 anos.
E eu digo:
— Não, tenho 22.
E ele me entrega a identidade e
diz:
— Bem, sua maldita carteira de
motorista diz que você tem 20.
Eu olho pra ela e faço o cálculo.
Ela diz que faço 21 no próximo janeiro.
— Hã — murmuro. — É, sim.
Desculpe.
Aquele maconheiro idiota e
h-o-p-e-l-e-s-s pôs a porra do ano errado na minha identidade. Eu me afasto da
entrada do clube, e Tiny me segue, morrendo de rir. Jane está dando risadinhas
também. Tiny bate com muita força no meu ombro e diz:
— Só Grayson pra conseguir uma
identidade falsa que diz que ele tem 20 anos. Totalmente inútil!
E eu reclamo com Jane:
— Seu amigo colocou o ano errado.
E ela diz:
— Sinto muito, Will. — Mas ela
não pode sentir tanto assim, senão pararia de rir.
— Podemos tentar fazer você
entrar — sugere Jane, mas eu simplesmente balanço a cabeça.
— Vão vocês — digo. — Me liguem quando
acabar. Vou fazer hora no Frank’s Franks ou em outro lugar. E, ah, me liguem se
tocarem “ Annus Miribalis”.
E o que acontece é: eles vão.
Eles simplesmente voltam para a fila, e eu os vejo entrar no clube, e nenhum
deles nem sequer tenta dizer não, não, não queremos ver o show sem você.
Não me entendam mal. A banda é
ótima. Mas ser preterido por causa dela é uma merda mesmo assim. Na fila, eu
não tinha sentido frio, mas agora estou congelando. Está terrivelmente gelado
do lado de fora, o tipo de frio em que respirar pelo nariz faz congelar o
cérebro. E aqui estou eu sozinho com a porra da minha identidade inútil de cem
dólares.
Volto andando até o Frank’s
Franks, peço um cachorro-quente e como lentamente. Mas sei que não posso ficar
comendo esse cachorro-quente pelas duas ou três horas que eles ficarão por lá —
não se pode degustar um cachorro-quente.
Meu telefone está em cima da
mesa, e fico olhando pra ele, torcendo estupidamente pra que Jane ou Tiny
liguem. E, sentado aqui, vou ficando cada vez mais e mais puto. Essa é uma
maneira horrível de se deixar alguém — sentado sozinho num restaurante — só
olhando pro nada, sem nem mesmo um livro como companhia. Não só com Tiny e
Jane; estou puto comigo mesmo, por deixá-los ir, por não verificar a data na identidade
idiota, por ficar aqui sentado esperando que o telefone toque embora pudesse
estar no carro, indo pra casa. E pensando bem, percebo que esse é o problema em
ir pra onde você é empurrado: às vezes, você é empurrado até aqui.
Estou cansado de ir pra onde sou
empurrado. Uma coisa é ser empurrado de um lado para o outro pelos meus pais.
Mas Tiny Cooper me empurrar pra cima de Jane, e depois me empurrar pra uma
identidade falsa, e depois rir do fracasso que resultou disso, e então me
deixar aqui sozinho com um maldito cachorro-quente de segunda categoria quando
eu nem sou muito fã de cachorros-quentes de primeira — isso é estupidez.
Posso vê-lo em minha mente, a
cabeça gorda dele rindo. Totalmente inútil. Totalmente inútil. Nem tanto! Posso
comprar cigarros, embora eu não fume. Posso até me registrar ilegalmente pra
votar. Eu posso... Ah, ei. Hã. Bem, até que é uma ideia.
Na frente do Storage Room, tem
esse lugar. Do tipo anúncio de néon e sem vitrines. Bem, eu não gosto
particularmente de pornô — ou dos “ Livros Adultos” prometidos pela placa do
lado de fora da porta —, mas de jeito nenhum vou passar a noite toda no Frank’s
Franks sem usar minha identidade falsa. Não. Eu vou até a sex shop. Tiny Cooper
não tem colhões pra entrar num lugar assim. De jeito nenhum. Estou pensando na
história que vou ter quando Tiny e Jane saírem do show. Ponho uma nota de cinco
em cima da mesa — uma gorjeta de cinquenta por cento — e ando as quatro
quadras. À medida que me aproximo da porta, começo a me sentir ansioso — mas
digo a mim mesmo que ficar do lado de fora no auge do inverno no centro de
Chicago é muito mais perigoso do que qualquer estabelecimento pode ser.
Abro a porta e entro em uma sala
muito iluminada com luz fluorescente. À minha esquerda, um cara com mais
piercings que uma almofada de alfinetes está atrás de um balcão, me olhando.
— Você está dando uma olhada ou
quer fichas? — pergunta.
Não tenho a menor ideia de que
fichas são essas, então digo:
— Dando uma olhada?
— Ok. Em frente — responde ele.
— O quê?
— Vá em frente.
— Você não vai me pedir a
identidade?
O sujeito ri.
— Por quê? Você tem 16 anos ou
algo assim?
Ele acertou na mosca, mas digo:
— Não, tenho 20.
— Bem, então. Foi o que imaginei.
Vá em frente.
E fico pensando: Ah, meu Deus.
Que dificuldade pode haver em conseguir usar uma identidade falsa nesta cidade?
Isso é ridículo! Não vou tolerar isso.
— Não — insisto. — Peça minha
identidade.
— Está certo, cara. Se é isso que
faz vibrar suas maracas. — E então, de forma dramática, ele pede: — Posso ver
sua identidade, por favor?
— Sim — respondo, e a entrego a
ele, que olha o documento, me devolve e diz:
— Obrigado, Ishmael.
— De nada — digo, exasperado. E
então estou em uma sex shop.
É meio chato, na verdade. Parece
uma loja comum — prateleiras de DVDs e antigas fitas de VHS e um rack de
revistas, tudo sob esse ofuscante brilho fluorescente. Quero dizer, tem, sim,
algumas diferenças de uma locadora comum, eu acho, como: A. Na locadora comum,
muito poucos DVDs têm as palavras comer ou vadia, enquanto aqui o oposto parece
ser o caso, e também: B. Tenho certeza de que a locadora comum não tem nenhum
acessório para espancamento, enquanto nesse lugar existem vários. Além disso,
C. Na locadora comum tem muito poucos itens à venda que fazem você pensar: “
Não faço a menor ideia do que isso supostamente faz ou onde supostamente faz.”
Afora o Señor con Muchos
Piercings, o lugar se encontra vazio, e eu quero muito sair daqui porque essa é
possivelmente a parte mais constrangedora e desagradável do que foi até aqui um
dia bastante constrangedor e desagradável. Mas a incursão será completamente
inútil se eu não comprar algo pra provar que estive aqui. Meu objetivo é
encontrar o item que seja a prova mais engraçada, aquele que fará Tiny e Jane
sentirem que eu tive uma noite divertida que eles podem apenas vislumbrar, e é
como eu finalmente venho a me decidir por uma revista em espanhol chamada Mano
a Mano.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)