Capítulo Doze
Quer saber quanto tempo levou para eu terminar com
meu namorado “perfeito” e me agarrar com um garoto novo? Levou... espere só...
vinte e três minutos. (Olhei para o relógio de Stuart assim que peguei o
telefone. Eu não tinha um cronômetro.)
Por mais que quisesse, eu não podia me esconder no
andar de cima para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que descer e
enfrentar o mundo. Sentei-me no chão sob a porta e parei para ouvir com o máximo
de atenção que pude o que acontecia lá embaixo. A maior parte do que ouvi foi
Rachel batendo em alguns brinquedos e depois ouvi alguém sair da casa. Parecia
uma boa deixa. Desci as escadas em silêncio. Na sala, Rachel estava mexendo no
jogo Armadilha, que ainda estava sobre a mesa. Ela me deu um sorriso cheio de
dentes.
– Estava brincando com Stuart? – perguntou.
A pergunta tinha muitos sentidos. Eu era uma mulher
muito, muito suja, e até uma menina de cinco anos sabia.
– Sim – respondi, tentando manter alguma dignidade.
– Estávamos brincando de Armadilha. Como estava a neve, Rachel?
– Mamãe disse que Stuart gosta de você. Eu consigo
enfiar uma bolinha de gude no nariz. Quer ver?
– Não, você não deveria...
Rachel enfiou uma das bolinhas de gude do Armadilha
bem dentro do nariz. Depois a extraiu e ergueu para que eu examinasse.
– Viu? – disse ela.
Ah, eu vi, sim.
– Jubileu? É você?
Debbie apareceu à porta da cozinha com o rosto
corado, parecendo meio nervosa e muito encharcada.
– Stuart foi até o outro lado da rua para ajudar a
sra. Addler a limpar a entrada da casa – falou ela.
– Ele viu que ela estava com dificuldades. Ela tem
um olho de vidro e as costas ruins, sabe? Vocês dois tiveram uma tarde... boa?
– Foi legal – respondi, inexpressiva. – Brincamos
de Armadilha.
– É assim que se chama hoje em dia? – perguntou
Debbie com um sorriso terrível na minha direção.
– Preciso dar um banho rápido em Rachel. Sinta-se à
vontade para fazer um chocolate quente ou o que quiser!
Ela parou pouco antes de acrescentar “futura jovem
noiva do meu único filho”.
Debbie rodeou Rachel com um enfático “Vamos,
podemos subir agora”, deixando-me com o chocolate quente e minha vergonha e
depressão. Fui até a janela da sala e olhei para fora. Claro que Stuart estava lá,
dando uma ajuda bem-vinda à vizinha no momento de necessidade. Ele estava
apenas fugindo de mim, é claro. Fazia total sentido. Eu teria feito o mesmo.
Era perfeitamente racional deduzir que eu só ia piorar. Poderia continuar em
uma espiral descendente, mergulhando mais e mais num pântano de incômodo e
comportamentos inexplicáveis. Como meus pais presidiários antes de mim, eu era imprevisível.
Melhor ir empurrar algumas toneladas de neve para a vizinha com olho de vidro e
torcer para que eu fosse embora.
E era precisamente o que eu precisava fazer. Ir
embora. Sair daquela casa e daquela vida enquanto eu ainda tinha um pingo de
dignidade. Eu iria encontrar o trem, que deveria deixar a cidade em breve, de qualquer
forma.
Fiz movimentos rápidos assim que tomei a decisão e
corri até a cozinha. Peguei o telefone no balcão, dei uns tapas nele e cutuquei
o botão liga/desliga. Não esperava que funcionasse, mas alguém teve piedade de
mim. Depois de um momento, ele voltou à vida com dificuldade. A tela não estava
centralizada, e as palavras estavam todas embaralhadas, mas havia um vestígio
de vida na coisa.
Minhas roupas, o casaco e a mochila estavam todos
na área de serviço do lado de fora da cozinha, em diversos estágios de secagem.
Vesti-os, deixando os moletons sobre a máquina de lavar. Havia um contêiner de
sacolas plásticas no canto, então peguei umas dez. Senti-me mal ao pegar algo
sem pedir, mas sacolas plásticas não contam de verdade como “algo”. São como
lenços, mas menos caros. Em um último gesto, estiquei o braço e peguei uma das
etiquetas natalinas de endereço sobre um organizador no balcão.
Eu mandaria um bilhete quando chegasse em casa.
Talvez eu fosse completamente lunática, mas era completamente lunática e educada.
É claro que precisei sair pela porta dos fundos,
aquela por onde havia entrado na noite anterior. Se saísse pela frente, Stuart
me veria. A neve tinha se acumulado na porta dos fundos, tinha pelo menos sessenta
centímetros de espessura – e não era mais a neve fofa e úmida da noite
anterior. Tinha endurecido com o frio. Mas eu estava operando com o combustível
da confusão e do pânico, o departamento que, como falei, está sempre pronto e a
postos para começar a trabalhar. Joguei todo o meu peso contra a porta e senti que
ela balançou e se entortou. Fiquei com medo de quebrá-la com a força, o que
daria um sentido completamente diferente à minha partida. Eu conseguia
visualizar muito claramente: Stuart ou Debbie encontraria a porta amassada fora
das dobradiças, caída na neve. “Ela entrou, violentou o menino, roubou sacolas
plásticas e arrebentou a porta durante a fuga”, diria a polícia no boletim de
ocorrência. “Provavelmente a caminho de libertar os pais da cadeia.”
Consegui abri-la o suficiente para me esgueirar
para fora, rasgando as sacolas e arranhando o braço no processo. Assim que saí,
a porta ficou emperrada na posição em que estava, então gastei mais dois ou três
minutos empurrando-a de volta. Feito isso, deparei-me com outro problema. Não
podia tomar de volta o caminho pelo qual tínhamos chegado, pois não queria dar
outro mergulho no riacho congelado. Não que eu fosse capaz de descobrir o
caminho. Todos os quatro rastros haviam desaparecido. Eu estava em uma leve
colina diante de um aglomerado pouco familiar de árvores nuas retorcidas e os
fundos de uma dúzia de casas idênticas. A única coisa de que tinha certeza era
que o rio estava abaixo de mim, provavelmente em algum lugar naquelas árvores.
A aposta mais segura seria me manter próxima às casas e trilhar o caminho por
alguns quintais. Então conseguiria voltar para uma estrada, e dali, presumi, seria
fácil encontrar o caminho de volta para a interestadual, a Waffle House e o
trem.
Ver observação anterior sobre a minha pessoa e
minhas suposições. A subdivisão do bairro de Stuart não seguia a adorável e
organizada lógica das ruas da Cidade do Papai Noel Flobie. Aquelas casas haviam
sido fincadas com uma aleatoriedade alarmante – os espaços eram desiguais, as
linhas eram tortas, como se quem tivesse projetado o local dissesse: “Vamos
seguir esse gato, e onde ele se sentar nós construímos alguma coisa.” A
desorientação era tanta que eu nem consegui descobrir onde deveria ser a rua. A
neve não havia sido escavada em lugar algum, e as luzes da rua da noite
anterior estavam apagadas. O céu estava branco em vez do rosa maluco da noite.
Era o horizonte mais indefinido que eu já vira, e não havia uma rota óbvia de
saída.
Enquanto caminhava com dificuldade pelo condomínio,
tive bastante tempo para considerar o que eu tinha acabado de fazer com a minha
vida. Como explicaria o término para minha família? Eles amavam Noah. Não tanto
quanto eu, é claro, mas muito. Meus pais estavam claramente orgulhosos de eu ter
um namorado tão impressionante. No entanto, meus pais estavam na cadeia por
causa de um Hotel dos Elfos da Flobie, então eles talvez precisassem rever as
prioridades. Além disso, se eu dissesse que estava mais feliz assim, eles
aceitariam.
Meus amigos, as pessoas da escola... era outra história.
Eu não namorei Noah pelos benefícios – eles apenas vinham como parte do serviço.
E havia Stuart, é claro.
Stuart, que tinha acabado de testemunhar minha
passagem por um arco-íris inteiro de emoções e experiências. Havia a Jubileu
dos “pais que acabaram de ser presos”, a Jubileu “presa numa cidade estranha”,
a Jubileu “maluca que não cala a boca”, a Jubileu “meio desconfiada do cara
estranho tentando me ajudar”, a Jubileu do término e a extremamente popular
Jubileu que “agarra você de repente”.
Eu tinha estragado tanto, tanto aquilo. Tudo. O
arrependimento e a humilhação doíam muito mais do que o frio. Precisei de
algumas ruas para perceber que não estava arrependida por causa de Noah... era Stuart.
Stuart que havia me salvado. Stuart que parecia mesmo querer passar o tempo
comigo. Stuart que era direto comigo e me disse para me valorizar.
Esse último era o Stuart que ficaria muito aliviado
em ver que eu tinha ido embora, por todas as razões que acabei de listar.
Contanto que as notícias sobre a prisão de meus pais não fossem muito detalhadas,
eu seria irrastreável. Bem, meio irrastreável. Talvez ele conseguisse me
encontrar em algum lugar on-line, mas nunca procuraria. Não depois do show de
horrores que eu acabara de apresentar.
A não ser que eu acabasse na porta dele de novo.
Depois de uma hora caminhando pelo condomínio, percebi que isso era um perigo
real. Estava olhando para as mesmas casas idiotas, ficava presa em becos sem saída.
Ocasionalmente parava e pedia orientações a pessoas que limpavam as entradas
das casas, mas todas pareciam muito preocupadas por eu estar querendo andar até
tão longe e não queriam me dizer como chegar lá. Pelo menos metade delas me
convidou para entrar e me aquecer, o que pareceu bom, mas eu não arriscaria
mais. Tinha entrado em uma casa em Gracetown e olha aonde isso havia me levado.
Eu me arrastava por um grupo de menininhas que ria
na neve quando o desespero realmente se instaurou. As lágrimas estavam prestes
a descer. Não conseguia mais sentir os pés. Meus joelhos estavam duros. Foi
quando ouvi a voz dele atrás de mim.
– Espera aí – disse Stuart.
Parei de repente. Fugir é bem patético, mas ser
pega é bem pior. Fiquei parada ali por um momento, pouco disposta (e
parcialmente incapaz) a me virar para encará-lo. Tentei fazer a expressão mais
casual que pude, do tipo “engraçado topar com você aqui, a vida não é hilária”?!
Pelo modo como os músculos da minha mandíbula estavam repuxando as orelhas,
tenho certeza de que ficou mais parecida com minha expressão “tive um derrame”!
– Desculpa – falei por entre o sorriso rígido. –
Apenas achei que deveria voltar para o trem e...
– É – disse ele, interrompendo-me baixinho. – Eu
meio que imaginei.
Stuart não estava nem olhando para mim. Tirou um
chapéu de verdade, ainda que levemente constrangedor, do bolso. Parecia ser de
Rachel. Tinha um grande pompom no topo.
– Acho que você vai precisar disto – falou ele ao
estender o chapéu. – Pode ficar. Rachel não precisa dele.
Peguei o chapéu e o achatei na cabeça, porque
Stuart parecia disposto a ficar ali de pé, segurando o chapéu até que a neve
derretesse ao redor dele. Ficou apertado, mas mesmo assim provocou um calor bem-vindo
nas orelhas.
– Segui suas pegadas – disse ele em resposta à
pergunta não feita. – É mais fácil fazer isso na neve.
Eu havia sido rastreada, como um urso.
– Desculpe-me por dar tanto trabalho a você –
respondi.
– Não precisei ir tão longe, na verdade. Você está
a mais ou menos três ruas de distância. Ficou andando em círculos.
Um urso muito incapaz.
– Não acredito que saiu com essa roupa de novo –
disse Stuart. – Deveria me deixar andar com você.
Não vai chegar lá por este caminho.
– Estou bem – falei rapidamente. – Alguém acaba de
me dizer qual é o caminho.
– Você não precisa ir, sabe?
Eu queria dizer mais alguma coisa, mas não consegui
pensar em nada. Ele interpretou isso como se eu quisesse que ele fosse embora,
então assentiu.
– Tome cuidado, está bem? E pode me avisar quando
chegar? Ligar ou...
Nesse momento, meu telefone começou a tocar. A
campainha também devia ter sido afetada pela água, pois estava com um toque
agudo e estridente – mais ou menos como eu imagino que uma sereia deve fazer se
for socada no rosto. Surpresa. Um pouco indignada. Magoada. Voz borbulhante.
Era Noah. A tela embaralhada dizia que “Mogb”
estava ligando, mas eu sabia o que queria dizer. Não atendi. Apenas o encarei.
Stuart o encarou. As menininhas ao nosso redor nos encararam encarando o telefone.
Parou de tocar, depois começou de novo. Vibrava na minha mão com insistência.
– Sinto muito se fui um idiota – falou Stuart em
voz alta para superar o barulho da campainha. – E você provavelmente não se
importa com o que eu penso, mas não deveria atender.
– O que quer dizer com você foi um idiota? –
perguntei.
Stuart ficou em silêncio. A campainha parou e começou
de novo. Mogb queria mesmo falar comigo.
– Eu disse a Chloe que esperaria por ela – falou
ele finalmente. – Disse que esperaria o quanto precisasse. Ela me falou para não
perder tempo, mas eu esperei mesmo assim. Durante meses, estava determinado a
nem olhar para outra garota. Tentei até não olhar para as líderes de torcida. Não
olhar, olhar, quero dizer.
Eu sabia o que ele queria dizer.
– Mas eu percebi você – continuou Stuart. – E isso
me levou à loucura desde o primeiro minuto. Não só porque eu havia notado você,
mas porque podia ver que você estava saindo com um cara supostamente perfeito
que era óbvio que não a merecia. Para falar a verdade, era meio que a mesma
situação em que eu estava. Mas parece que ele percebeu o erro que cometeu.
Stuart fez um gesto com a cabeça para o telefone,
que começou a tocar de novo.
– Ainda estou muito feliz por você ter vindo –
acrescentou ele. – E não ceda para esse cara, está bem?
De todas as coisas? Não ceda para esse cara. Ele não
merece você. Não deixe que ele a engane. O telefone tocou e tocou e tocou.
Olhei para a tela uma última vez, depois para Stuart, então estiquei o braço
para trás e atirei o aparelho o mais forte que pude (infelizmente não foi tão
forte assim), e ele sumiu na neve. As menininhas de oito anos, que estavam
realmente fascinadas com cada um dos nossos movimentos àquela altura, saíram
correndo atrás dele.
– Perdi – falei. – Ops.
Foi a primeira vez durante essa conversa toda que
Stuart realmente olhou para meu rosto. Ele havia desfeito a careta horrível
nesse ponto. Deu um passo à frente, ergueu meu queixo e me beijou. Beijou, beijou.
E eu não reparei que estava frio, nem me importei que as garotinhas que agora
estavam com meu celular estivessem atrás de nós falando “UuuuUUUuuuUUuuh”.
– Só uma coisa – falei quando nos separamos e a
sensação rodopiante na minha cabeça passou. – Talvez... não conte a sua mãe
sobre isso. Acho que ela fica criando ideias.
– O quê? – perguntou Stuart, todo inocente,
enquanto colocava um dos braços sobre meus ombros e me levava de volta para a
casa dele. – Seus pais não torcem e encaram quando você está beijando alguém?
Isso é esquisito de onde você vem? Acho que eles não devem ver muita coisa, na
verdade. Da cadeia, quero dizer.
– Cala a boca, Weintraub. Se eu derrubar você na
neve, essas crianças vão formar um bando e devorar você.
Um caminhão solitário passou por nós e o Homem Alumínio
nos lançou um cumprimento rigoroso conforme se dirigia mais para o centro de
Gracetown. Todos saímos do caminho para dar passagem a ele – Stuart, eu e as
menininhas. Stuart abriu o zíper do casaco e me convidou a ficar aconchegada
sob o braço dele, e seguimos pela neve.
– Quer voltar lá para casa pelo caminho longo? –
perguntou ele. – Ou pelo atalho? Você deve estar com frio.
– Caminho longo – respondi. – O
caminho longo, com certeza.
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