Capítulo Onze

O quarto de Stuart era bagunçado. Ele não estava de brincadeira. Era o oposto do quarto de Noah. A única coisa que estava perfeitamente no lugar era uma cópia emoldurada, sobre a escrivaninha, da foto que eu vira na carteira dele. Eu me aproximei para olhar. Chloe era uma beldade, sem brincadeira.
Cabelo castanho-escuro longo. Cílios com os quais era possível varrer o chão. Um sorriso grande e alegre, bronzeado natural, algumas sardas. Tinha beleza até os ossos.
Sentei sobre a cama desfeita de Stuart e tentei pensar, mas havia apenas um zumbido baixinho na minha cabeça. Do andar de baixo, ouvi o som de piano sendo muito bem tocado. Stuart tocava músicas de Natal. Ele tinha estilo de verdade – não apenas como uma daquelas pessoas que toca de modo mecânico.
Ele poderia tocar em um restaurante ou no saguão de um hotel. Talvez em algum lugar melhor, até, mas esses eram os únicos lugares em que eu vira pianistas, na verdade. Do lado de fora da janela, dois passarinhos se aninhavam em um galho, sacudindo a neve de cima das penas.
Havia um telefone no chão de Stuart. Peguei-o e disquei. Noah parecia um pouquinho irritado quando atendeu.
– Oi – disse ele. – O que foi? Estávamos saindo e...
– Nas últimas vinte e quatro horas – comecei a falar, interrompendo-o –, meus pais foram presos. Eu fui colocada em um trem, que ficou atolado em uma nevasca. Andei quilômetros sobre neve espessa com sacolas plásticas na cabeça. Caí em um riacho e estou presa em uma cidade estranha com pessoas que não conheço. E a sua desculpa para não poder falar comigo é... qual exatamente? O Natal?
Isso o calou. Não era exatamente o que eu queria, mas fiquei feliz em ver que Noah tinha algum senso de vergonha.
– Ainda quer namorar comigo? – perguntei. – Seja sincero comigo, Noah.
O outro lado da linha ficou silencioso por um longo tempo. Longo demais para a resposta ser “Sim. Você é o amor da minha vida”.
– Leu – disse Noah, a voz baixa e rouca. – Não deveríamos conversar sobre isso agora.
– Por quê? – perguntei.
– É Natal.
– Não é mais motivo ainda para conversar?
– Você sabe como as coisas são aqui.
– Bem – falei e ouvi a raiva tomar minha voz. – Você precisa conversar comigo porque eu estou terminando com você.
Eu mal acreditava no que saía da minha boca. As palavras pareciam vir de um lugar bem no fundo, muito além do lugar onde eu as guardava, depois das ideias... de algum quartinho dos fundos que eu nem sabia que estava ali.
Houve um longo silêncio.
– Tudo bem – disse ele. Era impossível saber qual era o tom de voz. Pode ter sido tristeza. Pode ter sido alívio. Ele não me implorou para eu retirar o que disse. Ele não chorou. Simplesmente não fez nada.
– Bem? – perguntei.
– Bem, o quê?
– Não vai nem falar nada?
– Eu meio que sei há um tempo – falou ele. – Também andava pensando nisso. E, se é o que você quer, sabe, acho que é melhor assim e...
– Feliz Natal – falei. Desliguei. Minha mão tremia. O corpo inteiro praticamente. Fiquei sentada na cama de Stuart e passei os braços ao redor do corpo. No andar de baixo, a música parou, e a casa se encheu de um tipo sufocante de silêncio.
Stuart apareceu à porta e a abriu com cuidado.
– Só queria saber se você está bem – disse ele.
– Eu falei tudo – respondi. – Peguei o telefone e falei tudo.
Stuart entrou e se sentou. Não colocou os braços ao redor de mim, apenas se sentou ao meu lado, meio que perto, mas com um pequeno espaço entre nós.
– Ele não pareceu surpreso – falei.
– Imbecis nunca ficam. O que ele disse?
– Algo sobre saber há algum tempo, que provavelmente é melhor assim.
Por algum motivo, isso me fez soluçar. Ficamos em silêncio durante um tempo. Minha cabeça estava girando.
– Chloe era como Noah – disse ele por fim. – Realmente... perfeita. Linda. Boas notas. Cantava, fazia caridade e era... você vai gostar disso... líder de torcida.
– Parece um partidão – comentei de forma sombria.
– Eu nunca soube por que ela saía comigo. Eu era só um cara, e ela era Chloe Newland. Namoramos por catorze meses. Éramos bem felizes, até onde eu sabia. Pelo menos eu era. O único problema é que ela estava sempre ocupada e ficou cada vez mais ocupada. Ocupada demais para passar pelo meu armário no colégio ou na minha casa, para ligar, para mandar um e-mail. Então eu ia até a casa dela. Ligava para ela. Mandava e-mails para ela.
Era tudo tão terrivelmente familiar.
– Uma noite – continuou ele –, deveríamos estudar juntos, e ela simplesmente não apareceu. Fui de carro até a casa dela, mas a mãe disse que ela não estava lá. Comecei a ficar meio preocupado, porque normalmente ela ao menos me mandava uma mensagem se precisasse cancelar. E comecei a dirigir por aí, procurando o carro de Chloe, quer dizer, existe um limite de lugares para onde se pode ir em Gracetown.
Encontrei-o em frente à loja do Starbucks, o que fazia sentido. Estudamos muito lá porque... que outra opção a sociedade nos dá, certo? É a Starbucks ou a morte às vezes.
Ele sacudia as mãos furiosamente, puxando os dedos.
– O que eu imaginei – disse Stuart enfaticamente – é que eu tinha cometido um erro e deveria estar estudando com ela na Starbucks o tempo todo, mas havia esquecido. Chloe não gostava muito de vir aqui, em casa. Às vezes ficava com um pouco de medo da minha mãe, se é que dá para acreditar nisso.
Ele olhou para cima, como se esperasse uma gargalhada minha. Consegui dar um sorriso fraco.
– Fiquei tão aliviado quando vi o carro dela ali. Estava cada vez mais preocupado ao dirigir por aí.
Sentia-me um idiota. É claro que ela estava esperando por mim na Starbucks. Entrei, mas ela não estava em nenhuma das mesas. Uma das minhas amigas, Addie, trabalha no balcão. Perguntei se havia visto Chloe, pois o carro dela estava ali.
Stuart passou as mãos pelos cabelos até ficarem meio cheios. Resisti à vontade de baixá-los. Meio que gostava daquela forma. Algo sobre o cabelo bem cheio dele fez com que eu me sentisse melhor – acabou com parte da queimação que eu sentia no peito.
– Addie estava apenas com uma expressão muito triste no rosto e disse “Acho que ela está no banheiro”. Não entendi o que poderia ser tão triste em estar no banheiro.
Comprei uma bebida para mim e uma para Chloe e me sentei para esperar. Há apenas um banheiro na Starbucks, então ela precisaria sair em algum momento. Eu não estava com o computador ou nenhum livro, então fiquei só olhando para o mural na parede onde fica a porta do banheiro. Estava pensando em como era idiota ficar preocupado com ela e como eu a havia deixado esperando e percebi que Chloe estava no banheiro havia muito, muito tempo, e que Addie ainda estava me olhando de um jeito muito triste. Addie foi até lá e bateu à porta, e Chloe saiu. Além de Todd, o Puma.
– Todd, o Puma?
– Não é um apelido. Ele é literalmente o Puma. Nosso mascote. Veste a fantasia de puma e faz as danças do puma e tudo isso. Durante um minuto, meu cérebro tentou juntar as peças... tentou entender por que Chloe e Todd, o Puma, estavam em um banheiro da Starbucks. Acho que minha primeira expectativa foi de que não poderia ser nada ruim, pois todos pareciam saber que eles estavam ali dentro.
Mas, pelas expressões no rosto de Addie e no de Chloe, não olhei para Todd, tudo finalmente se encaixou. Ainda não sei se foram lá pra dentro porque me viram chegar ou se estavam lá havia algum tempo. Se você está se escondendo do namorado em um banheiro com o Puma... os detalhes meio que não importam.
Por um momento, esqueci completamente o telefonema. Estava naquela Starbucks com Stuart, vendo uma líder de torcida que eu não conhecia surgir de dentro de um banheiro com Todd, o Puma. Mas na minha imaginação ele vestia a fantasia de puma, o que provavelmente não foi o que aconteceu.
– O que você fez? – perguntei.
– Nada.
– Nada?
– Nada. Simplesmente fiquei parado, pensando que ia vomitar bem ali. Mas Chloe ficou furiosa.
Comigo.
– Como isso é possível? – falei com ódio em defesa dele.
– Acho que ficou assustada com o fato de ter sido descoberta, e foi a única forma que pensou em reagir.
Ela me acusou de espioná-la. E me chamou de possessivo. Disse que eu colocava pressão demais sobre ela. Acho que quis dizer emocionalmente, acho, mas soou tão mal. Então, além de tudo, ela fez com que eu parecesse um pervertido na frente de todo mundo na Starbucks, o que poderia muito bem ter sido todo mundo na cidade, porque nada fica em segredo por aqui. Eu queria dizer “Você está se agarrando com o Puma no banheiro da Starbucks. Eu não sou o vilão desta história”. Mas não falei, porque literalmente não conseguia falar. Deve ter parecido que eu concordei com ela. Como se eu estivesse admitindo que era um perseguidor maníaco sexual possessivo e grudento... e não o cara que estava apaixonado por ela, que estava apaixonado por ela fazia mais de um ano, que teria feito tudo o que ela pedisse...
Em algum momento após o término do namoro, Stuart deve ter contado essa história o tempo todo, mas ele obviamente não fazia isso havia algum tempo. Estava sem prática. A expressão no rosto não mudou muito – toda a emoção parecia vir das mãos. Ele havia parado de sacudi-las, e no momento tremiam só um pouquinho.
– Addie finalmente levou Chloe para o lado de fora a fim de acalmá-la – disse ele. – Foi assim que tudo terminou. E eu ganhei um latte por conta da casa. Então não foi uma perda total. Virei um cara célebre por ter sido chutado em público quando a namorada o traiu com o Puma. De qualquer forma... Eu tinha um objetivo em dizer tudo isso. Meu objetivo é que esse cara... – Ele apontou de modo acusatório para o telefone. – É um babaca, embora isso não deva significar muito para você agora.
Minhas lembranças do último ano estavam passando na mente como um filme em alta velocidade, mas eu estava assistindo a todas de um ângulo diferente da câmera. Lá estava eu, Noah segurava minha mão, um passo à frente, puxando-me pelo corredor, falando com todo mundo menos comigo pelo caminho.
Eu me sentava com ele na primeira fileira nos jogos de basquete da escola, mesmo que Noah soubesse que, desde que fui atingida por uma bola desgovernada no rosto, eu morria de medo desses assentos. Ainda assim, ficávamos ali, eu congelada pelo terror, assistindo a um jogo que nunca me interessou. Sim, eu me sentava com os veteranos de alto escalão no almoço, mas as conversas eram repetitivas. Só falavam sobre como eram ocupados, como estavam montando os currículos para os documentos de admissão na faculdade.
Como iam se encontrar com recrutadores. Como organizavam os calendários on-line. Quem os estava recomendando.
Nossa... passei um ano entediada. Não falava sobre mim havia séculos. Stuart estava falando sobre mim. Estava prestando atenção. Senti-me como uma estranha e um pouco desconfortavelmente íntima, mas até que ótima. Meus olhos se encheram d’água.
Ao ver isso, Stuart se ajeitou e abriu um pouco os braços, como se me convidasse a desistir dos esforços para me conter. Havíamos nos aproximado bastante em algum momento, e havia uma energia latente. Algo estava prestes a ceder. Senti que estava para chorar. Isso me deixou com ódio. Noah não merecia. Eu não ia começar a chorar.
Então, beijei Stuart.
Quer dizer, beijei mesmo. Derrubei-o para trás. Ele me beijou de volta. Um beijo bom. Não muito seco, não muito molhado. Beirou um pouco o frenético, talvez porque nenhum de nós tivesse se preparado mentalmente, então estávamos pensando Ah, certo! Beijar! Rápido! Rápido! Mais movimento! Engatar a língua!
Levamos mais ou menos um minuto para nos recuperarmos e estabelecermos um ritmo um pouco mais lento. Senti que flutuava, e então houve um enorme baque, algo caindo, e gritos vindos do andar de baixo. Parece que Debbie e Rachel haviam escolhido aquele momento para amarrar o trenó com os cães e retornar de sua corrida pessoal pelas ruas de Gracetown. Entraram na casa aos tropeços daquele modo ridiculamente barulhento com que se costuma voltar da neve ou da chuva. (Por que o clima nos torna mais barulhentos?)
– Stuart! Jubileu! Tenho cupcakes especiais do Papai Noel! – gritava Debbie.
Nenhum de nós se mexeu. Eu ainda estava debruçada sobre Stuart, basicamente o prendendo ao chão. Ouvimos Debbie chegar à metade das escadas, onde deve ter visto a luz do quarto acesa. De novo, a reação normal de um pai seria dizer algo como: “É melhor saírem neste momento ou eu vou virar bicho!” Mas Debbie não era uma mãe normal, então ouvimos uma risadinha, e ela virou as costas.
– Shhh... Rachel! Venha com a mamãe! Stuart está ocupado! – falou ela.
A aparição repentina de Debbie na cena fez meu estômago se contrair. Stuart revirou os olhos para trás em agonia. Eu o soltei, e ele se levantou em um salto.
– É melhor eu descer – disse ele. – Você está bem? Precisa de alguma coisa ou...
– Estou ótima! – respondi com um entusiasmo repentino e insano. Mas, a essa altura, Stuart estava acostumado com minhas táticas, minhas tentativas de me fazer parecer normal.

Com muita sensibilidade, ele saiu do quarto.

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