Capítulo Quinze
No dia seguinte, Tiny não está na
aula de pré-cálculo. Deduzo que esteja debruçado em algum lugar, escrevendo
canções em um caderno comicamente pequeno. Isso não me incomoda muito. Eu o
vejo entre o segundo e o terceiro tempo de aula quando passo por seu armário; o
cabelo parece sujo e os olhos arregalados.
— Overdose de Red Bull? —
pergunto ao me aproximar dele.
Tiny responde em um rompante
furioso.
— A peça estreia em nove dias,
Will Grayson é uma graça, está tudo bem. Olha, Grayson, tenho de ir pro
auditório. Até o almoço.
— O outro Will Grayson — digo.
— O quê, hein? — pergunta Tiny,
fechando ruidosamente a porta do armário.
— O outro Will Grayson é uma
graça.
— Isso, isso mesmo — responde
ele.
Ele não está em nossa mesa de
almoço, nem Gary, Nick ou Jane, nem ninguém, e eu não quero a mesa inteira pra
mim, então levo a bandeja pro auditório, imaginando que vou encontrar todo
mundo por lá. Tiny encontra-se de pé no meio do palco, um caderno numa das mãos
e o celular na outra, gesticulando enlouquecido. Nick está sentado na primeira
fileira. Tiny está falando com Gary no palco, e como a acústica é fantástica em
nosso auditório, posso ouvir exatamente o que ele está dizendo, mesmo lá de
trás.
— O que você precisa lembrar em
relação a Phil Wrayson é que ele é totalmente apavorado. Em relação a tudo. Ele
age como se não ligasse pra nada, porém está mais perto de desmoronar do que
qualquer outro na peça inteirinha. Quero ouvir o tremor na voz dele quando
cantar, a carência que ele espera que ninguém possa ouvir. Porque tem de ser
isso que o torna tão irritante, sabe? As coisas que ele diz não são irritantes;
é a maneira como ele as diz.
Assim, quando Tiny está colando
aqueles pôsteres sobre Orgulho, e Phil não para de falar sobre os estúpidos
problemas com garotas que arranjou pra si mesmo, temos de ouvir o que é
irritante. Mas você também não pode exagerar. É uma coisa bem sutil, cara. É a
pedrinha no sapato.
Fico ali parado por um minuto,
esperando que ele me veja, e então ele finalmente me vê.
— Ele é um PERSONAGEM, Grayson —
grita. — É um PERSONAGEM DE FICÇÃO.
Ainda segurando a bandeja, dou
meia-volta e saio. Me sento do lado de fora do auditório no piso de cerâmica do
corredor, encosto na vitrine de um troféu e como um pouco.
Fico esperando por ele. Que ele
venha e peça desculpas. Ou então que venha e grite comigo por ser tão fresco.
Fico esperando que aquelas portas duplas de madeira escura se abram, e Tiny
saia intempestivamente e comece a falar.
Sei que é imaturo da minha parte,
mas não me importo. Às vezes, você precisa que seu melhor amigo atravesse as
portas. Mas ele não vem. Por fim, sentindo-me pequeno e idiota, sou eu quem se
levanta e entreabre a porta. Tiny está cantando, feliz, sobre Oscar Wilde. Fico
ali parado por um momento, ainda esperando que ele me veja, e nem percebo que
estou chorando até que esse som distorcido escapa de mim quando inspiro. Fecho
a porta. Se Tiny me vê, ele não faz sequer uma pausa que acuse minha presença.
Atravesso o corredor, a cabeça
tão baixa que a água salgada pinga da ponta do meu nariz. Saio pela porta
principal — o ar frio, o sol cálido — e desço os degraus. Sigo pela calçada até
chegar ao portão de segurança, então mergulho nas moitas. Alguma coisa em minha
garganta dá a impressão de que vai me sufocar. Atravesso os arbustos exatamente
como Tiny e eu fizemos no primeiro ano, quando fugimos para ir a Boys Town ver
a Parada do Orgulho Gay, onde ele saiu do armário pra mim.
Sigo até um campo da Liga Júnior
que fica a meio caminho entre minha casa e a escola. Fica bem perto de outra
escola, e, quando eu era pequeno, costumava ir lá muitas vezes sozinho, depois
das aulas por exemplo, só pra pensar. Às vezes, eu levava um bloco ou algo
assim e tentava desenhar, mas gostava principalmente de ir lá. Dou a volta pela
cerca atrás da última base, me sento no banco de reservas, minhas costas
apoiadas na parede de alumínio aquecida pelo sol, e choro.
Eis o que eu gosto no banco de
reservas: estou ao lado da terceira base, e posso ver o diamante de terra à
minha frente e as quatro fileiras de arquibancadas de madeira a um dos lados;
e, do outro lado, o campo externo e o diamante seguinte mais além; e então um
grande parque e, mais adiante, a rua. Posso ver as pessoas caminhando com seus
cães e um casal andando contra o vento. Mas com as costas contra a parede, com
esse teto de alumínio sobre minha cabeça, ninguém pode me ver, a menos que eu
possa vê-los.
A raridade da situação é o tipo
de coisa que te faz chorar. Tiny e eu de fato jogamos na Liga Júnior juntos —
não neste campo, mas em um que ficava mais perto de nossas casas, a partir do
terceiro ano fundamental. Foi assim que ficamos amigos, eu acho. Tiny era forte
pra caramba, é claro, mas não muito bom com o taco. No entanto, ele liderava a liga
quando se tratava de ser acertado por arremessos. Havia muito o que acertar. Eu
fazia uma respeitável primeira base e não liderava a liga em nada. Apoiei os
cotovelos nos joelhos como fazia quando estava assistindo a algum jogo de um
banco como esse. Tiny sempre se sentava ao meu lado, e embora só jogasse porque
o treinador tinha de colocar todo mundo pra jogar, ele era superentusiasmado.
Ficava gritando: “ Ei, rebatedor, rebatedor. Ei, rebatedor rebatedor, BALANCE,
rebatedor”, e então por fim ele mudava para: “ Queremos um arremessador, não um
banana!”
Depois veio o sexto ano: Tiny
jogava na terceira base, e eu estava na primeira. Estávamos no começo do jogo,
e estávamos ou ganhando de pouco ou perdendo de pouco — não me lembro.
Sinceramente, eu nem olhava pro placar quando estava jogando. O beisebol, pra
mim, era apenas uma daquelas coisas estranhas e terríveis que os pais fazem por
razões que não se pode compreender, como vacinas contra gripe e a igreja. Então
o rebatedor acertou a bola, que seguiu pra Tiny. Tiny aparou e atirou a bola
para a primeira com seu braço de canhão, e eu me estiquei para apanhá-la,
tomando o cuidado de manter um pé na base. A bola acertou minha luva e
imediatamente caiu, porque me esqueci de fechar a mão. O corredor estava em
segurança, e o erro nos custou um run ou algo assim. Depois que o inning
terminou, voltei pro banco de reservas. O treinador — acho que o nome era Sr.
Frye — inclinou-se em minha direção.
Tive consciência do tamanho de
sua cabeça, o boné erguendo-se alto acima do rosto gordo, e ele disse: “
CONCENTRE-SE em PEGAR a BOLA. PEGUE a BOLA, entendeu? Meu Deus!” Senti meu
rosto quente, e, com aquele tremor na voz que Tiny indicou pra Gary, eu disse:
“ Sinto muito, treinador”, e o Sr. Frye respondeu: “ Eu também, Will. Eu
também.”
E então Tiny recuou e deu um soco
no nariz do Sr. Frye. Simples assim. E dessa forma nossas carreiras na Liga
Júnior chegaram ao fim. Não doeria se ele não estivesse certo — se eu, lá no
fundo, não soubesse que minha fraqueza o exaspera. E talvez ele pense como eu,
que a gente não escolhe os amigos, e ele está preso a esse baitola irritante
que não consegue lidar consigo mesmo, que não consegue segurar a bola na mão
enluvada, que não consegue levar um esporro do treinador, que se arrepende de
escrever cartas ao editor em defesa de seu melhor amigo. Essa é a verdadeira
história da nossa amizade: Não sou eu quem está preso a Tiny. É ele quem está
preso a mim.
Se não posso fazer mais nada,
posso aliviá-lo desse peso. Levo muito tempo pra parar de chorar. Uso a luva
como lenço enquanto observo a sombra do telhado do banco de reservas deslizar
pelas minhas pernas esticadas enquanto o sol sobe para o topo do céu. Por fim,
sinto as orelhas congeladas à sombra do banco, então me levanto, atravesso o
parque e sigo pra casa. No caminho, examino minha lista de contatos no celular
por um tempo e então ligo pra Jane. Não sei por quê. Sinto que preciso ligar
para alguém. Sinto, estranhamente, como se ainda quisesse que alguém abrisse as
portas duplas do auditório. Cai na caixa postal.
“ Desculpe, Tarzan, Jane não se
encontra disponível. Deixe uma mensagem.”
“ Oi, Jane, é o Will. Só queria
falar com você. Eu… sinceridade radical? Acabei de passar uns cinco minutos
correndo a lista de todo mundo pra quem eu podia ligar e você foi a única
pessoa pra quem eu quis ligar, porque eu gosto de você. Gosto muito. Acho que
você é incrível. Você é simplesmente… mais. Mais inteligente e mais engraçada e
mais bonita e simplesmente… mais. Sim. Isso é tudo. Tchau.”
Quando chego em casa, telefono
pro meu pai. Ele atende no último toque.
— Você pode ligar pra escola e
dizer que estou doente? Precisei vir pra casa — digo.
— Você está bem, companheiro?
— Sim, estou bem — respondo, mas
o tremor está na minha voz, e sinto como se fosse recomeçar com os soluços por
alguma razão, e ele diz:
— Ok. Ok. Vou ligar.
Quinze minutos depois, estou
afundado no sofá da sala, os pés na mesa de centro. Olho pra TV, só que ela não
está ligada. Estou com o controle remoto na mão esquerda, mas não tenho energia
nem pra pressionar o maldito botão de ligar.
Ouço a porta da garagem se abrir.
Meu pai entra pela cozinha e se senta ao meu lado, bem perto.
— Quinhentos canais — diz ele
após um momento —, e não está passando nada.
— Você tirou o dia de folga?
— Eu sempre posso conseguir
alguém pra me cobrir — responde ele. — Sempre.
— Estou bem — digo.
— Sei que está. Eu só queria
estar em casa com você, só isso.
Pisco, afugentando algumas
lágrimas, mas meu pai tem a decência de não falar nada a respeito. Então ligo a
TV e encontramos um programa chamado Os Iates Mais Impressionantes do Mundo,
sobre iates que têm, tipo, campos de golfe ou o que seja, e toda vez que
mostram algum recurso sofisticado, ele diz: “ É IM-PRES-SIO-NAN-TE!” com
sarcasmo, embora seja mesmo meio impressionante. É e não é, suponho.
E então meu pai tira o som da TV
e diz:
— Sabe o Dr. Porter?
Faço que sim com a cabeça. É o
cara que trabalha com a mamãe.
— Eles não têm filhos, por isso,
são ricos.
Eu rio.
— Mas eles têm esse barco que
mantêm em Belmont Harbor, um desses gigantes com armários de madeira de
cerejeira importada da Indonésia e uma cama king-size giratória acolchoada com
penas de águias ameaçadas de extinção e tudo mais. Sua mãe e eu fomos a um
jantar no barco com os Porter há alguns anos, e no período de uma única
refeição, naquelas duas horas, o barco passou de a experiência mais
extraordinariamente luxuosa para um simples barco.
— Imagino que haja uma moral
nessa história.
Ele ri.
— Você é o nosso iate,
companheiro. Sabe todo aquele dinheiro que teria ido pra um iate, todo o tempo
que nós teríamos passado viajando pelo mundo? Em vez disso, tivemos você. O
iate acabou sendo um simples barco. Mas você... você não pode ser comprado a
crédito, e não pode ser abatido do imposto de renda. — Ele vira o rosto na
direção da TV e, após um momento, diz: —
Tenho tanto orgulho de você que
acabo tendo orgulho de mim. Espero que você saiba disso.
Faço que sim com a cabeça, a
garganta apertada, olhando agora pra um comercial sem som de sabão em pó. Um
segundo depois, ele murmura pra si mesmo:
— Crédito, pessoas, consumismo…
Tem um trocadilho aí em algum lugar.
Eu pergunto:
— E se eu não quisesse ir praquele
programa na Northwestern? Ou e se eu não for aceito?
— Bem, então eu deixaria de amar
você — diz ele, mantendo a expressão séria por um segundo, então ri e liga o
som da TV.
•••
Mais tarde, resolvemos fazer uma
surpresa pra minha mãe com chilli de peru pro jantar. Estou picando cebola
quando a campainha toca. Imediatamente sei que é Tiny, e sinto esse estranho
alívio irradiar do meu plexo solar.
— Eu atendo — digo. Passo
espremido por meu pai na cozinha e vou correndo até a porta.
Não é Tiny, mas Jane. Ela me
olha, os lábios apertados.
— Qual o segredo do meu armário?
— Vinte-cinco-dois-onze — digo.
Ela me bate de brincadeira no
peito.
— Eu sabia! Por que você não me
falou?
— Eu não conseguia chegar à
conclusão de qual de várias verdades era a mais verdadeira — respondo.
— Temos de abrir a caixa —
continua ela.
— Hã — digo. Dou um passo à
frente pra poder fechar a porta atrás de mim,mas ela não recua, então agora
estamos quase nos encostando. — O gato tem namorado — ressalto.
— Na verdade, eu não sou o gato.
O gato somos nós. Eu sou uma física. Você é um físico. O gato somos nós.
— Hã, ok — retruco. — A física
tem namorado.
— A física não tem namorado. A
física deu o fora no namorado no jardim botânico porque ele não parava de falar
que ia pras Olimpíadas de 2016, e havia essa vozinha na cabeça da física
chamada Will Grayson, dizendo: “ E nas Olimpíadas você vai representar os
Estados Unidos ou o Reino da Babacolândia?” Então a física rompeu com o
namorado e insiste que a caixa seja aberta, porque ela, tipo, não consegue
parar de pensar no gato. A física não se importa se o gato estiver morto; ela
só precisa saber.
Nos beijamos. As mãos dela estão
geladas no meu rosto, ela tem gosto de café, o cheiro da cebola ainda está no
meu nariz, e meus lábios estão ressecados por causa do interminável inverno. E
é incrível.
— Sua opinião profissional como
física? — pergunto.
Ela sorri.
— Acredito que o gato esteja
vivo. E o que diz meu estimado colega?
— Vivo — respondo. E está mesmo.
O que faz com que seja ainda mais estranho que, enquanto falo com ela, uma
pequena ferida dentro de mim ainda esteja aberta. Pensei que seria Tiny na
porta, cheio de pedidos de desculpas, as quais eu lentamente aceitaria. Mas assim
é a vida. Nós crescemos. Planetas como Tiny ganham novas luas. Luas como eu
ganham novos planetas. Jane se afasta de mim por um instante e diz:
— Alguma coisa cheira bem. Quero
dizer, alguma coisa além de você.
Sorrio.
— Estamos fazendo chilli — conto.
— Você quer… Você quer entrar e conhecer meu pai?
— Não quero ser introm…
— Não — retruco. — Ele é legal.
Um pouco estranho. Mas legal. Você pode ficar pro jantar.
— Hã, ok. Deixa eu ligar pra
casa. — Fico ali fora tremendo por uns instantes enquanto ela fala com a mãe:
— Vou jantar na casa de Will
Grayson… Sim, o pai dele está aqui… Eles são médicos… Aham… Ok, te amo.
Entro em casa.
— Pai — digo —, esta é minha
amiga Jane.
Ele surge da cozinha usando o
avental que diz Cirurgiões têm pegada firme sobre a camisa e a gravata.
— Dou crédito às pessoas que não
resistem ao consumismo! — diz ele, animado, tendo encontrado seu trocadilho. Eu
rio.
Jane estende a mão, a própria
imagem da elegância, dizendo:
— Olá, Dr. Grayson, sou Jane
Turner.
— Srta. Turner, é um prazer.
— Tudo bem se Jane ficar pro
jantar?
— Claro, claro. Jane, você nos dá
licença um instante?
Papai me leva pra cozinha, onde
se inclina e diz baixinho:
— Era essa a causa dos seus
problemas?
— Curiosamente, não — respondo. —
Mas nós estamos meio que sim.
— Vocês estão meio que sim —
murmura ele pra si mesmo. — Vocês estão meio que sim. — E então, bem alto, diz:
— Jane?
— Sim, senhor?
— Qual é o seu coeficiente de
rendimento?
— Hã, 9,25, senhor.
Ele olha pra mim, os lábios
franzidos, e assente lentamente.
— Aceitável — diz, e então sorri.
— Pai, não preciso da sua
aprovação — retruco baixinho.
— Eu sei — responde ele. — Mas
pensei que você pudesse gostar assim mesmo.
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