Capítulo Três
Nada acontece por uma semana. Não
digo isso no sentido figurado, como se houvesse uma escassez de eventos
significativos. Quero dizer que não acontece absolutamente nada mesmo.
Estagnação total. É um pouco como um paraíso, pra dizer a verdade.
Tem a coisa de levantar, tomar
banho e ir pra escola, e o milagre de Tiny Cooper ao sentar na carteira, e o
olhar melancólico pro meu relógio tipo Ônibus Escolar Mágico do Lanche Feliz do
Burger King durante cada aula, e o alívio do sinal do oitavo tempo, e o ônibus
pra casa, e o dever de casa, e o jantar, e os pais, e a porta trancada, e a
música boa, e o Facebook, e a leitura das atualizações de status das pessoas
sem atualizar o meu próprio status porque minha política de boca calada se
estende à comunicação textual, e depois tem a cama e a coisa de levantar, o
chuveiro e a escola outra vez. Isso não me incomoda. No que diz respeito à
vida, prefiro o silenciosamente desesperado ao radicalmente bipolar.
E então na noite de quinta-feira
vou pra casa, Tiny me liga e alguma coisa começa a acontecer. Eu digo alô e aí
Tiny, a título de introdução, diz:
— Você devia ir ao encontro da
Aliança Gay-Hétero de amanhã.
E eu respondo:
— Nada pessoal, Tiny, mas não sou
muito de alianças. De qualquer forma, você conhece minha política sobre
atividades extracurriculares.
— Não, não conheço — retruca
Tiny.
— Bem, sou contra elas — digo. —
Só as atividades curriculares já são suficientes. Ouça, Tiny, preciso desligar.
Minha mãe está na outra linha. — Desligo. Minha mãe não está na outra linha,
mas eu preciso desligar, porque não aguento ser persuadido a nada.
Mas Tiny liga de novo. E diz:
— Na verdade, eu preciso que você
vá porque temos de aumentar nosso número de associados. O financiamento
repassado pela escola é parcialmente decidido pela quantidade de pessoas que
frequentam as reuniões.
— Por que você precisa do
dinheiro da escola? Você tem sua própria casa.
— Precisamos de dinheiro pra
montar nossa produção de Tiny Dancer.
— Ai. Meu. Deus. Misericordioso —
digo, porque Tiny Dancer é um musical escrito por Tiny.
É basicamente a história da vida
de Tiny levemente dramatizada, só que cantada, e é — e eu não uso esse adjetivo
levianamente — o musical mais gay de toda a história da humanidade. O que não
quer dizer que ele seja ruim. Só estou dizendo que é gay. Na verdade — até onde
é possível com musicais — é bastante bom. As músicas ficam na cabeça. Gosto
particularmente de “Quem tá na linha de frente (gosta que ataquem por trás)”,
que inclui os memoráveis versos: “ No vestiário nem dá pra tirar casquinha /
porque vocês têm a cara cheia de espinha.”
— O quê? — geme Tiny.
— Só estou preocupado que isso
possa ser, hã... — O que foi que Gary disse no outro dia... — “Ruim para a
causa” — afirmo.
— Esse é exatamente o tipo de
coisa que você pode dizer amanhã! — responde Tiny, com um leve traço de
decepção na voz.
— Eu vou — digo, e desligo.
Ele torna a ligar, mas não
atendo, pois estou no Facebook, olhando o perfil de Tiny, correndo os olhos
pelos seus 1.532 amigos, cada um mais
bonito e estiloso que o outro. Estou tentando descobrir quem, precisamente, faz
parte da Aliança Gay-Hétero, e se poderiam se tornar um Grupo de Amigos convenientemente
não irritante. Até aqui, pelo que posso ver, porém, são apenas Gary, Nick e
Jane. Estou examinando atentamente a minúscula foto do perfil de Jane, na qual
ela parece segurar uma espécie de mascote em tamanho natural com patins de
gelo.
E, nesse exato momento, recebo
uma solicitação de amizade dela. Poucos segundos depois de eu aceitar, ela me
manda uma mensagem.
Jane: Oi!
Eu: Oi.
Jane: Desculpe, esse deve ter
sido um uso de exclamação inadequado.
Eu: Rá. Tudo bem.
Olho o perfil dela. A lista de
músicas e livros favoritos é obscenamente longa, e eu só consigo percorrer a
letra A da lista de músicas antes de desistir. Ela está bonita nas fotos, mas
não tanto quanto na vida real — o sorriso nas fotos não é o dela.
Jane: Soube que Tiny está
recrutando você para a AGH.
Eu: De fato.
Jane: Você devia ir. Precisamos
de associados. É meio patético, na verdade.
Eu: É, acho que vou.
Jane: Legal. Não sabia que você
tinha Facebook. Seu perfil é engraçado. Gostei de “ATIVIDADES: precisam
envolver óculos de sol”.
Eu: Você tem mais bandas
favoritas do que Tiny tem ex-namorados.
Jane: É, bem. Algumas pessoas têm
vida; outras têm música.
Eu: E algumas não têm nenhuma das
duas.
Jane: Anime-se, Will. Você está
prestes a ser o hétero mais bonito na Aliança Gay-Hétero.
Tenho a nítida impressão de que
está rolando um clima. Assim, não me entenda mal. Eu gosto de flertar como
qualquer um, desde que seja qualquer um que tenha visto repetidamente seu
melhor amigo ser dilacerado pelo amor. Mas nada viola as regras de calar a boca
e não se importar o suficiente para flertar — exceto possivelmente aquele
momento encantadoramente horrível em que você age depois do flerte, o momento
em que você sela seu coração partido com um beijo. Deveria haver uma terceira
regra, na verdade: 1. Cale a boca. 2. Não ligue muito pra nada. E 3. Nunca
beije uma garota de quem você gosta.
Eu, depois de um tempo: Quantos
caras héteros tem na AGH
Jane: Você.
Eu escrevo lol, e me sinto um
tolo de sequer pensar nela como flerte. Jane é só uma garota inteligente e
crítica com cabelos enrolados demais. E então fica assim: às 15h30 da tarde
seguinte, o sinal do oitavo tempo toca e, por um nanossegundo, sinto
fervilhando pelo meu corpo as endorfinas que em geral indicam que sobrevivi com
êxito a mais um dia de aula sem que nada acontecesse, mas aí eu lembro: o dia
ainda não acabou.
Marcho para o andar de cima
enquanto um mundo de gente desce a escada correndo, a caminho do fim de semana.
Chego à sala 204A. Abro a porta. Jane está de costas pra mim sentada numa carteira
e com os pés na cadeira. Veste uma camiseta amarelo-clara e, do modo como está
inclinada, posso ver um pouco da lombar dela.
Tiny Cooper está esparramado no
carpete fino, usando a mochila como travesseiro. Está usando um jeans skinny,
que mais parecem invólucros jeans para salsicha. Nesse momento, a Aliança
Gay-Hétero consiste em nós três.
— Grayson! — exclama Tiny.
— Este é o Clube Homossexualidade
É Uma Abominação, certo?
Tiny ri. Jane apenas continua
sentada de costas pra mim, lendo. Meus olhos se dirigem às costas dela, já que
têm de ir a algum lugar, e Tiny diz:
— Grayson, você está desistindo
da sua assexualidade?
Jane se vira no momento em que
lanço um olhar pra Tiny e murmuro:
— Não sou assexuado. Sou
arrelacionamental.
E Tiny diz a Jane:
— É uma tragédia, não é? A única
coisa que Grayson tem a seu favor é que é uma graça, e, no entanto, ele se
recusa a namorar. Tiny gosta de me arrumar garotas. Ele faz isso pelo simples e
puro prazer de me irritar. E funciona.
— Cale a boca, Tiny.
— Eu simplesmente não consigo
entender — continua ele. — Nada pessoal, Grayson, mas você não faz o meu tipo,
porque: A. Você não presta muita atenção à higiene, e B. Tudo que você tem a
seu favor é o que acho totalmente desinteressante. Quero dizer, Jane, acho que
podemos concordar que Grayson tem belos braços.
Jane parece ligeiramente em
pânico, e corro pra salvá-la de precisar falar.
— Você tem a maneira mais
estranha de dar em cima de mim, Tiny.
— Eu jamais daria em cima de
você, porque você não é gay. E, assim, garotos que gostam de garotas são, por
natureza, sem graça. Por que gostar de alguém que não pode retribuir o seu
amor?
A pergunta é retórica, mas, se eu
não estivesse tentando ficar calado, responderia: Você gosta de alguém que não
pode retribuir o seu amor porque é possível sobreviver ao amor não
correspondido de uma forma impossível no caso do amor uma vez correspondido.
Um momento depois, Tiny diz:
— As garotas héteros acham que
ele é uma gracinha, é só isso que estou dizendo.
E então me dou conta de toda a
extensão da insanidade. Tiny Cooper me trouxe para a Aliança Gay-Hétero para me
arrumar uma namorada. O que é naturalmente idiota naquele sentido profundo e
múltiplo que somente um professor poderia elucidar completamente. Pelo menos
Tiny acaba calando a boca, e imediatamente começo a olhar meu relógio e me
perguntar se é isso que acontece em uma reunião da AGH — talvez nós três apenas
fiquemos aqui sentados em silêncio por uma hora enquanto Tiny Cooper
periodicamente torna o ambiente toxicamente desconfortável com seus comentários
nada sutis, e então, no fim, daremos um abraço coletivo e gritaremos VIVAM OS
GAYS! Ou algo do gênero. Mas então Gary e Nick chegam com uns caras que
reconheço vagamente, uma garota com um corte de cabelo joãozinho vestindo uma camiseta
gigantesca do Rancid que chega quase aos joelhos dela, e um professor de
inglês, o Sr. Fortson, que nunca me deu aula, o que talvez explique o porquê de
ele estar sorrindo pra mim.
— Sr. Grayson — diz o Sr. Fortson
—, é um prazer tê-lo aqui. Gostei da sua carta para o editor de algumas semanas
atrás.
— O maior erro da minha vida —
conto a ele.
— Mas por quê?
Tiny Cooper intervém.
— É uma longa história que diz
respeito a calar a boca e não se importar com
nada.
Eu apenas concordo com a cabeça.
— Ah, meu Deus, Grayson —
sussurra Tiny em tom audível a todos. — Eu te contei o que Nick me disse?
Estou pensando nick, nick, nick,
quem diabos é nick? E então olho pra Nick, que não está sentado perto de Gary,
o que é a Pista A. Além disso, ele está com a cabeça enterrada nos braços, o
que é a Pista B.
Tiny diz:
— Ele disse que consegue se
imaginar comigo. Com essas palavras: consigo me imaginar com você. Isso não é a
coisa mais fantástica que você já ouviu?
Pela inflexão de Tiny, não sei
dizer se a coisa é fantasticamente hilária ou fantasticamente maravilhosa,
então simplesmente dou de ombros.
Nick suspira, a cabeça apoiada na
carteira, e murmura.
— Tiny, agora não.
Gary corre os dedos pelo cabelo e
suspira.
— Toda essa sua libertinagem é
ruim para a causa.
O Sr. Fortson põe ordem na
reunião com um martelo. Um martelo de verdade. Pobre coitado. Imagino que lá na
faculdade ou o que fosse, ele não sonhava que o uso do martelo seria necessário
em sua carreira no magistério.
— Muito bem, então temos oito
pessoas hoje. Isto é ótimo, rapazes. Creio que o primeiro ponto na pauta do dia
seja o musical de Tiny, Tiny Dancer. Precisamos decidir se pedimos à
administração que financie a peça ou se preferimos nos concentrar em outras
coisas: educação, conscientização etc.
Tiny se apruma na cadeira e
anuncia:
— Tiny Dancer é sobre educação e
conscientização.
— Certo — diz Gary, sarcástico. —
Educar e conscientizar a todos sobre Tiny Cooper.
Os dois caras sentados com Gary
riem, e, sem pensar duas vezes, digo: “ Ei, não seja idiota, Gary”, porque não
posso evitar de ir em defesa de Tiny.
Jane diz:
— Olha, as pessoas vão sacanear a
peça? Sem a menor sombra de dúvida.
Mas ela é honesta. É engraçada, e
justa, e não é cheia de bobagens. Mostra os gays como pessoas completas e
complicadas; e não apenas como “ ah, meu Deus, preciso dizer pro meu pai que eu
gosto de meninos e ai-ai é tão difícil”.
Gary revira os olhos e solta o ar
pelos lábios fechados como se estivesse fumando.
— Aham. Você sabe como é difícil
— diz ele a Jane —, já que você é... Ei, peraí. Ah, sim. Você não é gay.
— Isso é irrelevante — responde
Jane.
Olho pra Jane, que está fuzilando
Gary com o olhar no momento em que o Sr. Fortson começa a falar sobre não se
poder ter Alianças dentro da Aliança caso contrário não haverá uma Aliança
abrangente. Estou me perguntando quantas vezes ele será capaz de usar a palavra
aliança em uma frase quando Tiny Cooper interrompe o Sr. Fortson, dizendo:
— Ei, calma, Jane, você é hétero?
E ela faz que sim sem levantar a
cabeça e murmura:
— Quero dizer, acho que sim.
— Você devia sair com o Grayson —
diz Tiny. — Ele te acha supergata.
Se eu subisse em uma balança
totalmente vestido, encharcado, segurando pesos de cinco quilos em cada mão e
equilibrando uma pilha de livros de capa dura na cabeça, pesaria mais de 80
quilos, o que equivale aproximadamente ao peso do tríceps esquerdo de Tiny
Cooper. Mas, nesse momento, eu seria capaz de espancá-lo até a morte. E é o que
eu faria, juro por Deus, não fosse o fato de estar ocupado demais tentando
desaparecer.
Estou aqui pensando: Deus, juro
que vou fazer um voto de silêncio e me mudar pra um mosteiro e venerar o senhor
por todos os meus dias se, desta única vez, o senhor me proporcionar um manto
de invisibilidade; vamos, vamos, por favor por favor, manto de invisibilidade
agora, agora, agora. É muito possível que Jane esteja pensando a mesma coisa,
mas não faço a menor ideia, porque ela também não está falando nada e não
consigo olhar pra ela por estar cego de vergonha.
A reunião dura mais trinta
minutos, durante os quais não falo, nem me mexo, nem respondo a nenhum tipo de
estímulo. Entendo que Nick faz com que Gary e Tiny meio que façam as pazes, e a
aliança concorda em buscar dinheiro tanto pra Tiny Dancer quanto para uma série
de folhetos com propósito educacional. Rola mais alguma conversa, mas não volto
a ouvir a voz de Jane.
E então a coisa chega ao fim, e
com minha visão periférica vejo todos saindo, mas eu fico ali parado. Na última
meia hora, reuni numa lista mental aproximadamente 412 maneiras de matar Tiny
Cooper, e não vou sair da sala até ter resolvido qual a melhor. Finalmente,
decido que simplesmente vou apunhalá-lo mil vezes com uma caneta esferográfica.
No estilo presídio. Me levanto com a postura perfeita e saio. Tiny Cooper está
encostado em uma fileira de armários, à minha espera.
— Ouça, Grayson — diz, e eu vou
até ele e o agarro pela camisa polo, e, na ponta dos pés, com meus olhos na
altura do pomo de adão dele, digo:
— Essa foi a pior de todas as
coisas miseráveis que você já fez, seu boqueteiro.
Tiny ri, o que só me deixa com
mais raiva, e diz:
— Você não pode me chamar de
boqueteiro, Grayson, porque: A. Isso não é um insulto, e B. Você sabe que não
sou. Ainda. Infelizmente.
Solto a camisa dele. Não tem como
intimidar Tiny fisicamente.
— Bem, que seja — respondo. — Seu
merda. Babaca. Xoxoteiro.
— Isso sim é um insulto — diz
ele. — Mas ouça, cara. Ela gosta de você.
Quando saiu agora, veio até mim e
perguntou: “Você estava falando sério ou estava só brincando?”, e eu falei: “Por
que a pergunta?”, e ela respondeu:
“Bem, ele é legal, só isso”, e
então eu disse que não era brincadeira e ela riu toda boba.
— Sério?
— Sério.
Respiro fundo e devagar.
— Isso é péssimo. Eu não estou
interessado nela, Tiny.
Ele revira os olhos.
— E você acha que eu sou maluco?
Ela é adorável. Eu acabo de total fazer sua vida!
Percebo que isso não é, assim,
coisa de garoto. Percebo que os caras propriamente ditos deviam pensar só em
sexo e em como consegui-lo, e que deviam correr com a pélvis apontada na
direção de toda garota que gosta deles etc. Mas: a parte que eu mais gosto não
é fazer, e sim notar. Notar que ela cheira a café muito doce, e a diferença
entre o sorriso dela e o sorriso das fotos, e a forma como ela morde o lábio
inferior, e a pele pálida de suas costas. Eu só quero o prazer de notar essas
coisas a uma distância segura — não quero ter de reconhecer que estou notando.
Não quero ter de falar nisso ou fazer alguma coisa em relação a isso.
E eu, de fato, pensei nisso
quando estávamos lá com Tiny inconsciente e se afogando em meleca aos nossos
pés. Pensei em saltar sobre o gigante caído e beijá-la, e na minha mão em seu
rosto e no seu hálito improvavelmente quente, e sobre ter uma namorada que se
irritasse comigo por eu ser tão quieto e então eu ficando mais quieto ainda
porque o que eu gostava era de um sorriso com um leviatã adormecido entre nós,
e aí me sinto um lixo por um tempo até finalmente terminarmos, e nesse ponto
reafirmo meu voto de viver segundo as regras.
Eu poderia fazer isso.
Ou poderia apenas viver segundo
as regras.
— Acredite em mim — digo a ele. —
Você não está melhorando minha vida. Pare de interferir, ok?
Ele responde dando de ombros, o
que tomo como um gesto de concordância.
— Então, ouça — diz Tiny —, sobre
Nick. O negócio é que ele e Gary ficaram juntos por muito tempo e, assim, eles
terminaram só ontem, mas tem realmente alguma coisa entre nós.
— Ideia incrivelmente péssima —
falo.
— Mas eles terminaram — insiste
Tiny.
— Certo, mas o que aconteceria se
alguém terminasse com você e então no dia seguinte flertasse com um amigo seu?
— Vou pensar nisso — diz Tiny,
mas sei que ele não pode se conter para evitar mais um breve e fracassado
romance. — Ah, ei. — Tiny se anima. — Você devia ir conosco para a Storage Room
na sexta. Nick e eu vamos ver essa banda, a, hum... Maybe Dead Cats. Pop punk
intelectual. Tipo a Dead Milkmen, só que menos engraçados rá-rá.
— Obrigado por me convidar antes
— agradeço, dando uma cotovelada em Tiny.
Ele me empurra, brincando, e eu
quase caio da escada. É como ser o melhor amigo de um gigante de conto de
fadas: Tiny Cooper não consegue evitar te machucar.
— Só pensei que você não gostaria
de ir depois do desastre da semana passada.
— Ah, espere, não posso. O
Storage Room é para maiores de 21.
Tiny Cooper, andando na minha
frente, alcança a porta. Empurra o quadril contra a barra de metal e a mesma se
abre. O lado de fora. O fim de semana. A luz viva de Chicago. O ar frio me
envolve, a luz está mudando rapidamente, e a silhueta de Tiny Cooper é
destacada contra o sol poente, de modo que mal posso vê-lo quando ele se vira
pra mim e pega o celular.
— Para quem você está ligando? —
pergunto, mas Tiny não responde.
Simplesmente segura o aparelho na
mão gigantesca e robusta, e diz: “Ei, Jane”, e meus olhos se arregalam, e faço
o movimento de cortar a garganta para
Tiny que sorri e diz: “ Olhe,
Grayson quer ir com a gente ao Maybe Dead Cats na sexta. Que tal um jantar
primeiro?”
“ ...”
“Bem, o único problema é que ele
não tem identidade. Você não conhece um cara?”
“ ...”
“Você ainda não chegou em casa,
não é? Então volte e venha tirar a bunda magra dele daqui.” Tiny desliga e me
diz: “ Ela está vindo pra cá”, e então fico parado na porta enquanto Tiny
dispara escada abaixo e começa a saltitar — isso mesmo, saltitar — na direção
do estacionamento do terceiro ano. “ Tiny!”, grito, mas ele não se vira;
continua saltitando. Eu não começo a saltitar atrás do rabo ensandecido dele ou
coisa do tipo, mas meio que sorrio. Ele pode ser um feiticeiro malévolo, mas
Tiny Cooper não está nem aí pros outros, e se ele quer ser um gigante
saltitante, então é seu direito como americano enorme.
Suponho que não possa largar Jane
lá, então estou sentado nos degraus da frente quando ela aparece dois minutos
depois atrás do volante de um Volvo antigo, pintado à mão de laranja. Eu já vi
o carro antes no estacionamento — não dá pra não notá-lo —, mas nunca associei
o automóvel a Jane. Ela parece mais discreta do que o mesmo sugere. Desço os
degraus, abro a porta do carona e entro, pisando numa pilha de embalagens de
fast-food.
— Desculpe. Eu sei que é nojento.
— Não se preocupe — digo. Essa
seria a hora certa pra fazer uma piada, mas fico pensando cale a boca, cale a
boca, cale a boca. Após algum tempo o silêncio fica muito estranho, então
pergunto:
— Você conhece essa banda, os
hã... Maybe Dead Cats?
— Conheço. Eles não são ruins.
São meio que uma versão pobre da Mr. T
Experience nos primeiros tempos,
mas têm uma música que gosto; ela tem uns 55 segundos de duração e se chama “Annus
Miribalis”, e basicamente explica a teoria da relatividade de Einstein.
— Legal — digo. Ela sorri, engata
a marcha, e partimos num solavanco pra cidade.
Um minuto depois mais ou menos,
encontramos uma placa de pare, e Jane encosta num dos lados da estrada e me
olha.
— Eu sou muito tímida — diz ela.
— Hein?
— Eu sou muito tímida, então
entendo. Mas não se esconda atrás de Tiny.
— Não estou me escondendo —
retruco.
E então ela passa por baixo do
cinto de segurança e eu me pergunto por que ela está fazendo isso, e aí ela se
debruça sobre o câmbio, e eu me dou conta do que está acontecendo, e ela fecha
os olhos, inclina a cabeça, e eu me afasto, olhando pras sacolas de fast-food
no chão do carro dela. Jane abre os olhos e volta pra trás com um solavanco.
Então começo a falar pra preencher o silêncio.
— Eu não, hã, eu acho você
incrível e bonita, mas eu não, assim, eu não, assim, eu acho que na verdade
não, hã, não quero um relacionamento agora.
Após um instante, muito baixinho,
ela diz:
— Acho que devo ter recebido
informações não confiáveis.
— É possível — concordo.
— Sinto muito.
— Eu também. Quero dizer, você é
mesmo...
— Não, não, não, pare, isso só
piora as coisas. Ok. Ok. Olhe pra mim.
Olho para ela, que diz:
— Eu posso esquecer completamente
que isto aconteceu se, e somente se, você puder esquecer completamente que isto
aconteceu.
— Nada aconteceu — falo, e
reafirmo: — Não aconteceu nada.
— Exatamente — diz ela, e então
nossa parada de 32 segundos na placa de pare chega ao fim, e minha cabeça é
lançada de encontro ao assento. Jane dirige do mesmo jeito que Tiny namora.
Estamos saindo da Lake Shore
perto do centro da cidade, falando sobre o Neutral Milk Hotel, sobre a
possibilidade de existir alguma gravação por aí que ninguém tenha ouvido,
apenas demos, e como seria interessante ouvir como as músicas deles eram antes
de se tornarem músicas, e, quem sabe, se poderíamos arrombar o estúdio de
gravação deles e copiar cada momento gravado da existência da banda. O sistema
de aquecimento antigo do Volvo deixa meus lábios secos e a coisa de ela ter se
inclinado parece, de fato, literalmente esquecida — e me ocorre que estou
estranhamente desapontado com o fato de Jane não parecer nem um pouco chateada,
o que, por um lado, faz com que eu me sinta estranhamente rejeitado, e, por
outro, me faz pensar que talvez uma ala especial do Museu dos Loucos deva ser
erguida em minha homenagem.
Encontramos uma vaga e
estacionamos em uma rua a algumas quadras do lugar, e Jane me leva até uma
porta de vidro sem identificação ao lado de uma lanchonete de cachorro-quente.
Uma placa na porta diz Cópias e Impressões Gold Coast. Subimos a escada, o
cheiro de deliciosos focinhos de porco flutuando no ar, e entramos em uma loja
que parece um minúsculo escritório. O lugar é pouquíssimo mobiliado, o que
equivale a dizer que são duas cadeiras dobráveis, um pôster de gatinho escrito
Aguente firme, uma planta morta num vaso, um computador e uma impressora
sofisticada.
— Ei, Paulie — diz Jane a um cara
coberto de tatuagens que parece ser o único empregado da loja. O cheiro de
cachorro-quente se dissipou, mas só porque a Cópias e Impressões Gold Coast
fede a maconha. O cara dá a volta no balcão e dá um abraço de um só braço em
Jane, que então diz: “Este é meu amigo, Will”, e o cara estende a mão, e
enquanto a aperto vejo que ele tem as letras H-O-P-E, tatuadas nos dedos.
— Paulie e meu irmão são amigos.
Frequentaram a Evanston juntos.
— É, frequentamos juntos — diz
Paulie. — Mas não nos formamos juntos, porque ainda não me formei. — Paulie ri.
— Pois é, Paulie. Will perdeu a
identidade — explica Jane.
Paulie sorri para mim.
— Uma pena, garoto. — Ele me
entrega uma folha de papel em branco e diz:
— Preciso do seu nome completo,
endereço, data de nascimento, seguro social, altura, peso e cor dos olhos. E
cem pratas.
— Eu, hã... — digo, pois não
costumo carregar notas de cem por aí comigo.
Mas, antes que eu possa sequer
formar as palavras, Jane põe cinco notas de vinte no balcão.
Sentamos nas cadeiras dobráveis,
e juntos inventamos minha nova identidade: Meu nome é Ishmael J. Biafra, meu
endereço, W. Addison Street, número 1.060, a localização do estádio Wrigley
Field. Tenho cabelos castanhos, olhos azuis, 1,78 metro, 72 quilos; meu número
do seguro social são nove números aleatoriamente escolhidos, e eu fiz 22 anos
no mês passado.
Entrego o papel a Paulie, e então
ele aponta pra uma tira de fita adesiva na parede e me diz pra ficar ali
parado. Leva uma câmera digital até os olhos e diz: “Sorria!” Eu não sorri pra
minha carteira de motorista de verdade, e com toda certeza não ia sorrir pra
essa.
— Só vai levar um minuto — diz
Paulie, e então eu me recosto na parede, nervoso o suficiente por causa da
identidade pra esquecer de ficar nervoso por causa de minha proximidade com
Jane. Embora eu saiba que sou aproximadamente a milionésima terceira pessoa a
obter uma identidade falsa, ainda assim estou muito consciente de que se trata
de um crime, e em geral não sou a favor de cometê-los.
— Eu sequer bebo — falo em voz
alta, em parte pra mim e em parte pra Jane.
— A minha é só pros shows —
afirma ela.
— Posso ver? — pergunto. Ela pega
a mochila, cujo tecido foi todo escrito com nomes de bandas e frases, e pesca a
carteira lá de dentro.
— Eu guardo ela escondida aqui —
diz ela, abrindo o fecho de um compartimento da carteira — porque se eu, tipo,
morrer ou alguma coisa assim, não quero que o hospital fique tentando ligar
pros pais de Zora Thurston Moore.
E, de fato, esse é o nome dela, e
a carteira parece completamente autêntica pra mim. Sua foto é incrível: a boca
parece prestes a sorrir, e era exatamente assim que ela estava na casa de Tiny,
diferente de todas as fotos dela no Facebook.
— Essa foto ficou ótima. É
exatamente assim que você parece — digo a ela.
E é verdade. Esse é o problema:
tantas coisas são verdade. É verdade que quero sufocá-la de elogios e verdade
que quero manter a distância. Verdade que quero que ela goste de mim e verdade
que não quero. A verdade estúpida e infinita falando pelos dois lados e saindo
por minha boca imensa e estúpida. É o que me faz continuar falando, feito um
idiota.
— Tipo, não pode saber como você
parece, certo? Sempre que se vê no espelho, sabe que está olhando para você,
portanto, não pode evitar fazer um pouco de pose. Assim, nunca sabe de verdade.
Mas essa... É assim que você parece.
Jane encosta dois dedos na foto
da carteira, que estou segurando apoiada na minha perna, de modo que os dedos
dela estão na minha perna se a gente não contar a carteira, e olho pra eles por
um momento e então olho pra ela, que diz:
— Paulie, apesar de toda sua
criminalidade, na verdade é um bom fotógrafo.
Nesse momento, Paulie surge
acenando no ar um pedaço de plástico que parece uma carteira de motorista.
— Sr. Biafra, sua identidade.
Ele a entrega pra mim. Os dedos
dessa mão exibem as letras L-E-S-S. Está perfeita. Todos os hologramas de uma
carteira legítima do Illinois, as mesmas cores, o mesmo plástico grosso e
laminado, a mesma informação sobre doação de órgãos. Eu até pareço
razoavelmente bem na foto.
— Meu Deus — exclamo. — Está
magnífica. É a Mona Lisa das identidades.
— Sem problema — fala Paulie. —
Muito bem, garotos, preciso resolver umas coisas. — Paulie sorri e ergue um
baseado. Estou perplexo como alguém tão doido de maconha poderia ser esse gênio
no campo da falsificação. — Até mais, Jane. Diga ao Phil pra me ligar.
— Sim, sim, capitão — diz Jane, e
então começamos a descer a escada, e eu posso sentir minha identidade falsa no
bolso da frente, apertada contra minha coxa, e tenho a sensação de que tenho
uma passagem pro mundo inteiro.
Chegamos à rua, e o frio é sempre
uma surpresa. Jane dispara a correr na minha frente e não sei se devo segui-la
ou não, mas então ela se vira e começa a saltitar de costas. Com o vento no
rosto dela, mal posso ouvi-la gritar:
— Anda, Will! Corre! Afinal,
agora você é um homem.
E maldito seja eu se não começar
a correr atrás dela.
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