Capítulo 1 – Em que há uma briga e um duelo
O motor da caminhonete já estava ligado. Mallory
apoiou-se na porta, os tênis surrados que usava todos os dias contrastavam com
o branco vivo das longas meias de esgrima. Seu cabelo estava com gel e preso
num rabo-de-cavalo tão apertado que seus olhos ficavam saltados. A senhora
Grace estava parada no lado do carro onde fica o motorista, as mãos na cintura.
— Eu o encontrei! — disse Jared sem fôlego, correndo
na direção deles.
— Simon — a mãe deles chamou. — Onde você estava?
Nós o procuramos por todo lugar!
— Estava na casinha do elevador — disse Simon —,
cuidando do... do pássaro que encontrei. — Simon parecia sem jeito. Não estava
habituado a mentir. Isso geralmente era coisa do Jared.
Mallory revirou os olhos.
— É uma pena a mamãe não ter ido embora sem você!
— Mallory
— disse a mãe, balançando a cabeça irritada. —
Todos vocês, entrem no carro. Nós já estamos atrasados, e eu ainda preciso dar
uma parada no caminho para deixar uma coisa.
Quando Mallory se virou para colocar a bolsa no porta-malas,
Jared reparou que o peito dela parecia estranho. Duro e grande... com um jeito
esquisito.
— O que você está usando? — perguntou ele, apontando
para o peito dela.
— Cala a boca — disse ela.
Ele deu uma risadinha e disse:
— Parece que você está usando um...
— Cale a boca! — repetiu ela, entrando no banco da
frente enquanto os meninos se acomodavam no de trás. — É para proteção, e eu
preciso usá-lo.
Jared sorriu contra a janela e ficou observando
os bosques. Há duas semanas não acontecia nenhuma confusão com os seres
fantásticos — até mesmo o Tibério andava quieto — e, de vez em quando, Jared precisava
lembrar-se de que tudo aquilo era real. Às vezes, tinha a impressão de que
poderia existir outra explicação. Mesmo a água em chamas poderia ser justificada
por ter vindo de um poço contaminado. Até que o velho encanamento pudesse ser
ligado ao duto central, eles usaram galões de água do supermercado sem que a
mãe achasse isso estranho. Mas havia o grifo de Simon e isso não dava para entender, a não
ser com a ajuda das informações contidas no Guia de Campo de Artur.
— Pare de mastigar o rabo-de-cavalo — a mãe deles
disse a Mallory. — Por que você está tão agitada? Esse novo time é bom mesmo?
— Eu estou ótima! — disse Mallory.
Quando moravam em Nova York, a garota treinava
com calças de moletom e uma jaqueta do time que ficavam jogadas numa pilha de
roupas.
Se você fizesse um ponto, um garoto ao lado
ergueria a mão para sinalizá-lo. Mas, na nova escola, os praticantes de esgrima
usavam uniformes de verdade e tinham floretes eletrônicos ligados a uma máquina
que registrava os pontos marcados. Jared achava que isso já era suficiente para
deixar alguém nervoso.
Aparentemente, a mãe deles tinha outra
explicação.
— É aquele menino, não é? O garoto que estava conversando
com você na quarta-feira, quando fui apanhá-la.
— Que menino? — perguntou Simon do banco de trás,
já começando a rir.
— Fique quieto — disse a mãe deles, mas respondeu
assim mesmo. — Chris, o capitão de esgrima. Ele é o capitão, certo?
A irmã deles grunhiu, indiferente.
— Chris e Mallory estavam sentados numa árvore, trocando
B-E-I-J-O-S — cantarolou Simon. Jared deu uma risadinha, e Mallory virou-se
para o banco de trás, com um olhar fulminante.
— Você por acaso quer perder todos os seus
dentes de leite, de uma vez só?
— Não ouça o que eles dizem — falou a mãe. — E não se preocupe. Você é esperta,
linda e ótima esgrimista. Aposto que ele gosta de você.
— Mãe! — exclamou Mallory e afundou-se no banco.
A mãe deles parou na biblioteca onde trabalhava,
entregou um relatório, e voltou para o carro sem fôlego.
— Vamos! Não posso me atrasar — disse Mallory, arrumando
o cabelo sem que houvesse necessidade. — É minha primeira competição!
A mãe suspirou e disse:
— Estamos quase chegando.
Jared voltou a olhar pela janela a tempo de ver
algo que se parecia com uma cratera profunda. O carro atravessava uma ponte de
pedra. O ônibus da escola nunca passava por lá.
— Simon, olhe! O que é aquilo?
— É uma mina abandonada — disse Mallory impaciente.
— As pessoas escavavam rochas.
— Uma mina
— repetiu Jared. Ele se lembrava de uma coisa no
mapa que tinham encontrado no estúdio de seu tio-avô Artur.
— Já pensou se eles encontrarem fósseis? — disse
Simon, subindo sobre Jared para olhar pela
janela. — Já imaginou se os dinossauros caminhavam por essa área?
A mãe deles já estava entrando com o carro no estacionamento
da escola. Ela nem sequer respondeu.
***
Jared, Simon e a mãe deles acomodaram-se na arquibancada
do ginásio de esportes, enquanto Mallory foi se sentar com o resto do time.
Algumas outras famílias já estavam sentadas, além de um bando de gente que
Jared conhecia da escola. Um tapete retangular, com linhas, foi colocado no
chão. Mallory o chamava de pista, mas Jared achava que aquilo se parecia com um capacho comprido e
preto. Atrás dele ficava uma mesinha portátil com o placar, seus botões grandes
e coloridos faziam com que parecesse mais um jogo do que com um placar de
verdade. O diretor mexia nos fios, conectando-os a um florete e testando se
tinham eletricidade necessária para fazer tocar o sinal e acender a luz que
marcava o ponto.
Mallory sentou-se numa cadeira de metal na ponta
da pista e começou a tirar as coisas de dentro da bolsa.
Chris abaixou-se para falar com Mallory. O outro
time estava reunido no lado oposto. Todos os uniformes eram tão brancos que os
olhos de Jared doíam.
Finalmente, o diretor anunciou que tinha chegado
a hora do primeiro duelo. Ele chamou dois esgrimistas e fez com que cada um
deles prendesse um pequeno receptor na parte de trás da calça, depois ajustou
os fios nos floretes. Tudo parecia muito profissional. Quando os esgrimistas
deram início à luta, Jared tentou lembrar-se do que Mallory havia lhe dito
sobre as luzes que acendiam, mas não se recordava direito das regras.
— Isso é ridículo. Eu prefiro esgrima sem toda
essa parafernália — disse em voz alta Jared.
Duas lutas mais tarde, Jared já tinha percebido
que as luzes coloridas significavam que o toque estava valendo, mas a luz
branca queria dizer que tinha sido anulado. Só valiam os toques no peito. Uma
coisa realmente boba, na opinião de Jared. Ser atingido na perna doía muito, e
Jared tinha treinado com Mallory o suficiente para ter certeza disso.
Finalmente, Mallory foi chamada à pista. Seu
rival - um garoto alto chamado Daniel Alguma-Coisa — deu uma risadinha quando
colocou a máscara. Era óbvio que ele não tinha a menor idéia daquilo que o esperava.
Jared cutucou Simon quando o irmão enfiou um biscoito na boca.
— Ele vai se ferrar.
— Ai — disse Simon. — Pare com isso.
O rabo-de-cavalo de Mallory balançou quando ela avançou.
A espada da garota atingiu Daniel com força, no peito, antes que ele pudesse
desviar. O diretor ergueu uma das mãos, e o placar marcou um ponto para Mallory.
Jared sorriu.
A mãe deles estava inclinando o corpo todo para frente
como se quisesse ouvir algo mais além do ruído das finas lâminas de metal brandindo
quando seguia o padrão do ataque, finta, contra-ataque. Daniel tentou atacar
desesperadamente, nervoso demais para controlar seus movimentos. Mallory
contra-atacou e, fazendo da defesa um ataque, a garota marcou outro ponto.
A irmã deles venceu Daniel sem ser tocada nenhuma
vez. Os adversários se cumprimentaram formalmente, e o garoto tirou a máscara,
o rosto vermelho e a respiração ofegante. Quando a máscara de Mallory foi
retirada, ela sorriu, os olhos brilhando de tanta satisfação.
No caminho de volta às cadeiras de metal, o
capitão do time abraçou Mallory rápida e timidamente. Jared não conseguiu ver
muito bem, mas podia jurar que o rosto de Mallory ficou mais vermelho nessa
hora do que quando ela saiu da pista.
Os duelos prosseguiram e o time de Mallory se
deu muito bem. Quando chegou a hora do capitão lutar, Mallory puxou a torcida.
Infelizmente, não adiantou nada. Ele foi derrotado por poucos pontos. Ao
retirar-se para o seu lugar, o garoto passou por ela sem dizer uma palavra,
afundou na cadeira e ignorou as tentativas de Mallory para falar com ele.
Quando a garota foi novamente chamada à pista, Chris
nem sequer levantou os olhos. Jared observou tudo da arquibancada e ficou
bravo.
A braveza aumentou quando reparou numa garota
loira com uma roupa branca remexendo na bolsa de sua irmã.
— Quem é aquela? — perguntou Jared, apontando.
Simon deu de ombros.
— Sei lá. Ela ainda não lutou.
Será que a garota era amiga de sua irmã? Talvez
ela só quisesse pegar uma coisa emprestada. O jeito dissimulado com que a
garota parava de mexer na bolsa de Mallory quando alguém do time olhava naquela
direção levou Jared a pensar que ela estivesse roubando.
Mas o que será que alguém poderia querer pegar
na bolsa de Mallory que só continha meias sujas e floretes extras?
Jared levantou-se. Ele precisava fazer alguma
coisa.
Será que ninguém mais reparava no que estava acontecendo?
— Aonde você vai? — sua mãe lhe perguntou.
— Ao banheiro — mentiu automaticamente, embora
soubesse que sua mãe poderia vê-lo atravessando o ginásio. Ele queria lhe dizer
a verdade, mas ela teria inventado alguma desculpa para a garota. Sua mãe sempre
pensava o melhor das pessoas, menos dele.
Jared desceu a arquibancada e, mantendo-se perto
da parede, atravessou a quadra até chegar à garota que ainda remexia na bolsa.
Mas, quando se aproximou das cadeiras, o técnico o deteve.
O técnico de esgrima era magro e baixo, com uma barba
curta e branca.
— Desculpe, garoto, mas você não pode entrar
aqui durante a disputa.
— Só que aquela garota está tentando roubar as coisas
da minha irmã!
O técnico se virou:
— Quem?
Mas, quando Jared se virou para apontá-la, percebeu
que a garota já tinha sumido. Ele se atrapalhou ao tentar explicar.
— Eu não sei quem é essa menina. Ela ainda não disputou.
— Todos já disputaram, menino. Acho melhor você
voltar para o seu lugar.
Jared voltou para a arquibancada, envergonhado, depois
pensou melhor. Virou-se e resolveu ir ao banheiro, assim sua mãe lhe faria
menos perguntas quando voltasse. Um pouco antes de passar pelas portas azuis do
ginásio de esportes, ele parou e olhou para trás.
Agora era Simon
que estava mexendo na bolsa de Mallory. Mas
Simon estava usando as roupas dele! Todo mundo ia pensar que fora ele. Jared estreitou os olhos, desejando
que aquilo que via fizesse sentido.
Foi então que uma suspeita horrível se formou em
sua mente. Olhando para a arquibancada, ele avistou o irmão sentado ao lado da
mãe, mastigando biscoitos. Seja lá o que fosse aquela coisa, não era Simon.
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