Capítulo 1 – Em que muitas coisas viram do avesso

Jared Grace tirou uma camisa vermelha, virou-a do avesso e a vestiu de trás para a frente. Tentou fazer a mesma coisa com suas calças jeans, mas não conseguiu. O guia de campo de Artur Spiderwick para o mundo fan-tástico ao nosso redor ficou em cima do travesseiro, a-berto na página das dicas de proteção. Jared tinha consul-tado o livro cuidadosamente, sem muita certeza de que ele o ajudaria muito.
Desde a manhã em que os irmãos Grace voltaram com o grifo, Tibério começara a perseguir Jared. Muitas vezes ele conseguia ouvir o pequeno gnomo na parede. Em outras ocasiões, Jared achava que o avistara com o canto do olho. Geralmente, Jared acabava sendo vítima de alguma brincadeira nova. Até aquele momento, seus cílios tinham sido cortados, os sapatos foram encontra-dos cheios de lama e algo tinha urinado no travesseiro dele. Sua mãe achava que o novo gatinho de Simon tinha feito o xixi, mas Jared sabia da verdade.
Mallory foi totalmente indiferente.
— Agora você está vendo como é — ficava ela dizendo.
Só Simon demonstrava preocupação. E ele realmente precisava preocupar-se. Se Jared não tivesse forçado Tibério a desistir da pedra da visão, Simon teria virado churrasquinho em um acampamento de goblin.
Jared amarrou o cadarço de seu sapato cheio de la-ma e o calçou sobre uma meia do avesso. Ele queria dar um jeito de pedir desculpas a Tibério. Tentara devolver-lhe a pedra, mas o gnomo não a quis. O problema era que ele sabia que se tudo acontecesse de novo, faria exatamente o que tinha feito. Só de imaginar Simon preso pelos goblins — enquanto Tibério ficava ao lado falando por meio de enigmas —, Jared ficava com tanta raiva que quase arrebentava os cadarços na hora de dar o nó.
— Jared — gritou Mallory do andar de baixo. — Jared, venha cá um minutinho.
Ele se levantou, enfiou o Guia debaixo do braço e deu um passo em direção às escadas. Caiu imediatamente, batendo a mão e o joelho no assoalho de madeira. De algum modo, as pontas do cadarço dos sapatos de Jared tinham sido amarradas.

***

No andar de baixo Mallory estava parada, de pé, na cozinha, levantando um copo contra a janela para que a água refletisse a luz do sol e produzisse um arco-íris na parede. Simon sentou-se perto dela. Os dois irmãos de Jared pareciam hipnotizados.
— O que foi? — perguntou Jared. Ele estava irrita-do e o joelho doía. Se só queriam lhe mostrar como a-quele copo estúpido estava lindo, ele ia arrebentar alguma coisa.
— Tome um gole — disse Mallory, entregando-lhe o copo.
Jared olhou para o copo desconfiado. Será que eles tinham cuspido dentro dele? Por que será que Mallory queria que ele bebesse a água?
— Anda, Jared — disse Simon —, nós já experimentamos.
O forno microondas apitou e Simon levantou-se para retirar um bolo enorme de carne moída de dentro dele. A parte de cima estava com uma cor acinzentada e esquisita, mas o resto da carne ainda parecia congelada.
— O que é isso? — perguntou Jared, espiando a carne.
— É para o Byron — disse Simon, despejando a carne numa vasilha grande e acrescentando cereais. — Ele deve estar melhorando. Está sempre com fome.
Jared sorriu. Qualquer outra pessoa estaria cautelosa ao ajudar um grifo semi-esfomeado que se recuperava na casinha da carruagem. Menos o Simon.
— Anda — disse Mallory. — Beba a água.
Jared tomou um gole e engasgou. O líquido quei-mou sua boca e ele cuspiu metade no chão de ladrilhos. O restante escorreu por sua garganta, queimando feito fogo.
— Vocês ficaram loucos? — gritou ele no meio de um acesso de tosse. — O que é isso?
— Água da torneira — disse Mallory. — Está com esse gosto.
— Então, por que vocês me fizeram beber essa água? — perguntou Jared.
Mallory cruzou os braços.
— Por que você acha que essas coisas todas estão acontecendo?
— O que você quer dizer? — perguntou Jared.
— Quero dizer que as coisas esquisitas começaram a acontecer depois que encontramos aquele livro, e não vão parar enquanto não nos livrarmos dele.
— Muita coisa esquisita já estava acontecendo an-tes! — protestou Jared.
— Não interessa — disse Mallory. — Aqueles go-blins queriam o Guia. Eu acho que devíamos entregá-lo a eles.
A sala ficou em silêncio por alguns minutos. Finalmente, Jared conseguiu sussurrar:
— O quê?
— Nós devíamos nos livrar desse livro estúpido — repetiu Mallory — antes que alguém se machuque... ou coisa pior.
— Nós nem sabemos o que essa água tem de erra-do. — Jared olhou para a pia, a ira se enroscando no seu estômago.
— E daí? — disse Mallory. — Lembram daquilo que o Tibério nos disse? Que o Guia de campo de Artur é perigoso demais!
Jared não queria pensar em Tibério.
— Precisamos do Guia — disse ele. — Nós não te-ríamos descoberto que havia um gnomo na casa sem ele. Nós não saberíamos sobre o troll ou os goblins, nem nada.
— E eles não saberiam sobre nós — disse Mallory.
— O livro é meu — disse Jared.
— Pare de ser tão egoísta! — gritou Mallory.
Jared cerrou os dentes. Como ela se atrevia a cha-má-lo de egoísta? Era medrosa demais para guardar o Guia.
— Sou eu quem decide o que vai acontecer com este livro e ponto final!
— Eu vou te mostrar o que é ponto final. — Mallory deu um passo na direção dele. — Se não fosse por mim, você estaria morto!
— E daí? — disse Jared. — Se não fosse por mim, você estaria morta antes.
Mallory respirou fundo. Jared quase conseguia ima-ginar a fumaça saindo das narinas dela.
— É isso mesmo. Todos nós teríamos morrido por causa do tal do livro — disse ela.
Os três olharam para o “tal do livro” que balançava na mão esquerda de Jared. Ele se virou para Simon, furioso:
— Imagino que você concorde com ela.
Simon ergueu os ombros, desconfortável.
— O Guia realmente nos ajudou a descobrir a verdade sobre o Tibério e sobre a pedra que permite enxergar os seres fantásticos.
Jared sorriu triunfante.
— Mas — continuou Simon e a expressão de Jared mudou — e se houver mais goblins por aí? Eu não sei se conseguiríamos detê-los. E se eles entrarem na casa? E se eles pegarem nossa mãe?
Jared fez que não com a cabeça. Se Mallory e Simon destruíssem o Guia, então teriam feito tudo a troco de nada!
— E se devolvermos o Guia e mesmo assim eles continuarem a nos perseguir?
— Por que eles fariam uma coisa dessas? — perguntou Mallory.
— Porque nós ainda saberíamos da existência do livro — disse Jared. — E continuaríamos sabendo que os seres fantásticos são reais. Eles poderiam achar que nós escreveríamos outro Guia.
— Eu daria um jeito para que isso não acontecesse — disse Mallory.
Jared virou-se para Simon, que estava enfiando uma colher de pau dentro da meleca de carne semicongelada misturada com cereais:
— E o grifo? Os goblins queriam o Byron, não é? Nós vamos devolvê-lo também?
— Não — disse Simon, entreabrindo as cortinas desbotadas para olhar o jardim. — Não podemos permitir que o Byron vá embora. Ele ainda não se recuperou totalmente.
— Ninguém está procurando o Byron — disse Mal-lory. — Isso não é a mesma coisa, de jeito nenhum.
Jared tentou pensar num argumento que os convencesse, algo que provasse o quanto eles precisavam do Guia. Ele não compreendia os seres fantásticos mais do que Simon ou Mallory. Nem sequer sabia por que os se-res queriam o Guia, já que ele só falava deles mesmos. Será que os seres fantásticos não queriam que as pessoas os enxergassem? A única pessoa que poderia saber a res-posta era Artur e ele já tinha morrido há muito tempo. Jared parou para pensar nisso.
— Existe alguém que poderíamos perguntar, alguém que realmente sabe o que precisamos fazer — disse Jared.
— Quem? — perguntaram Simon e Mallory ao mesmo tempo.
Jared tinha vencido. O livro estava salvo — pelo menos por enquanto. Ele sorriu.
— Lucinda Spiderwick, a nossa tia Lúcia. Afinal, ela é filha do Artur.

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