Capítulo 1 – O Futuro
Sexta-Feira, 15 de Julho de 1988
Rankeillor
Street, Edimburgo
— Acho que o importante é fazer diferença — disse ela. — Mudar
alguma coisa, sabe?
— Você está falando de “mudar o mundo”?
— Não o mundo inteiro. Só um pouquinho ao nosso redor.
Os dois ficaram em silêncio por um tempo, os corpos entrelaçados
na cama de solteiro, depois começaram a rir em voz baixa, na mesma altura do
amanhecer.
— Nem acredito que eu disse isso — murmurou ela. — Um pouco
batido, não é?
— É, um pouco batido.
— Estou tentando servir de inspiração. Preparar sua alma negra
para a grande aventura à sua frente. — Virou-se e olhou para ele. — Não que
você precise disso. Imagino que já esteja com o futuro bem-planejado, muito
bem-planejado. Deve ter até um fluxograma ou coisa assim guardado em algum
lugar.
— Até parece.
— Então, o que você vai fazer? Qual é o seu grande plano?
— Bom, meus pais vão guardar minhas coisas na casa deles, depois
vou passar uns dias no apartamento de Londres, ver alguns amigos. Depois
França...
— Muito legal...
— Depois talvez China, ver o que acontece por lá, quem sabe ir até
a Índia, viajar um pouco pelo país...
— Viajar — ela suspirou. — Tão previsível.
— O que há de errado em viajar?
— É mais uma forma de fugir da realidade.
— Eu acho que a realidade é algo muito superestimado — contestou,
esperando que a frase soasse cínica e carismática.
Ela fungou.
— É, imagino que sim, para quem pode pagar. Mas por que não dizer
simplesmente: “Vou tirar umas férias de dois anos”? É a mesma coisa.
— Porque viajar amplia os horizontes — respondeu ele, apoiando-se
sobre um cotovelo e dando um beijo nela.
— Ah, acho que os seus horizontes já estão bem ampliados —
comentou ela, virando a cabeça para o outro lado, ao menos naquele momento. Os
dois se ajeitaram outra vez no travesseiro. — De qualquer forma, eu não estava
falando do que você vai fazer no mês que vem, estava falando do futuro mesmo,
sei lá... — Fez uma pausa, como se vislumbrasse uma ideia fantástica, uma
quinta dimensão. — Quando você tiver uns quarenta anos. O que você quer
ser quando tiver quarenta anos?
— Quarenta? — Ele pareceu se debater com aquele conceito. —
Não sei. Será que posso responder “rico”?
— Mas isso é tão superficial.
— Está certo. Então, “famoso”. — Começou a esfregar o nariz no
pescoço dela. — Um pouco mórbido tudo isso, não?
— Não é mórbido, é... fascinante.
— Fascinante! — Agora ele imitava a voz dela, seu leve sotaque de
Yorkshire, fazendo-a parecer bobinha. Isso sempre acontecia com ela, garotos
bacanas falando com voz engraçada, como se um sotaque fosse algo estranho e
incomum, e não pela primeira vez sentiu um estremecimento de aversão em relação
a ele que a tranquilizou. Afastou-se até apoiar as costas na parede fria.
— Sim, fascinante. E não é para menos, é? Com todas essas
possibilidades. Como disse o diretor, “as portas da oportunidade se
abriram...”.
— “Os seus nomes estarão nos jornais de amanhã...”
— Isso é pouco provável.
— Então por que você está tão empolgada?
— Empolgada? Eu estou morrendo de medo.
— Eu também. Saco... — Virou-se de repente e pegou o maço de
cigarros no chão ao lado da cama, como para acalmar os nervos.
— Quarenta anos de idade. Quarenta anos. Puta inferno.
Achando graça na aflição dele, ela resolveu piorar um pouco mais o
cenário.
— Então, o que você vai estar fazendo
quando tiver quarenta anos?
Ele acendeu o cigarro, pensativo.
— Bom, Em, o negócio é...
— “Em”? Quem é “Em”?
— Todo mundo chama você de Em. Eu ouvi.
— É, os meus amigos me chamam de Em.
— Então, posso te chamar de Em?
— Vai nessa, Dex.
— Bom, eu já andei pensando nessa história de “ficar velho” e
decidi que vou continuar exatamente como sou no momento.
Dexter Mayhew. Ela o observou por entre a franja, recostado na
cabeceira acolchoada da cama barata, e, mesmo sem óculos, entendeu muito bem
por que ele queria continuar exatamente daquele jeito. Olhos fechados, o
cigarro colado languidamente no lábio inferior, a luz da manhã filtrada pelo
tom avermelhado das cortinas aquecendo um lado do rosto, ele parecia estar
sempre posando para uma fotografia. Emma Morley considerava “bonitão” um termo
banal, do século XIX, mas na verdade não havia outra palavra que o descrevesse,
a não ser talvez “lindo”. O rosto era daqueles em que você enxerga os ossos por
baixo da pele, como se até a caveira fosse bonita. Um nariz afilado brilhava um
pouco com a oleosidade, olheiras tão carregadas que pareciam hematomas,
medalhas de honra por todos os cigarros e noites em claro perdendo
deliberadamente para colegiais de Bedales no strip poker. Havia algo de
felino em suas feições: sobrancelhas finas, a boca intencionalmente amuada,
lábios um tanto sombrios e grossos, mas agora secos e rachados, arroxeados pelo
vinho tinto búlgaro. Ainda bem que o cabelo era horrível, curto na nuca e nos
lados, com um topetinho ridículo na frente. Fosse qual fosse o gel que usava,
já tinha perdido o efeito e agora o topete parecia fofo e atrevido, como um
chapeuzinho idiota.
Ainda com os olhos fechados, ele exalou a fumaça pelo nariz. Sabia
muito bem que estava sendo observado, porque enfiou a mão debaixo da axila,
inflando os bíceps e os peitorais. De onde vinham aqueles músculos? Por certo
de nenhuma atividade esportiva, a não ser que nadar nu ou jogar sinuca fossem
considerados esporte. Provavelmente era a boa saúde herdada da família, junto
com ações, participações nos lucros e móveis finos. Então ele era bonitão,
lindo até, com uma cueca samba-canção estampada na altura dos ossos do quadril,
e por alguma razão estava ali em sua cama de solteira naquele pequeno quarto
alugado ao término de quatro anos de faculdade. “Bonitão”! Quem você pensa que
é? Jane Eyre? Hora de crescer. Seja razoável. Não se deixe iludir.
Emma tirou o cigarro dos lábios dele.
— Eu posso imaginar como você vai ser aos quarenta anos — falou,
um tom de malícia na voz. — Sei muito bem o que vai acontecer.
Dexter sorriu sem abrir os olhos.
— Então, diga.
— Tudo bem... — Ela se mexeu na cama, o edredom preso nas axilas.
— Você vai estar num carro esporte com a capota arriada em Kensington ou
Chelsea, num desses lugares, e o mais incrível nesse carro é o fato de ser
silencioso, porque todos os carros vão ser silenciosos em... sei lá quando...
2006?
Ele apertou os olhos, fazendo a conta.
— 2004...
— E o carro está na King’s Road a dez centímetros do chão, sua
barriguinha está espremida embaixo do volante de couro como uma almofadinha e
você está com aquelas luvas sem dedos, já com cabelo rareando e sem queixo.
Você é um homem grandão num carro pequeno, com um bronzeado de peru assado...
— Vamos mudar de assunto?
— E tem uma mulher ao seu lado, de óculos escuros, sua terceira...
não, quarta esposa, muito bonita, modelo... não, ex-modelo, vinte e três
anos, que você conheceu enquanto ela posava no capô de um carro num salão do
automóvel em Nice ou coisa assim, muito bonita e burra como uma porta...
— Bom, isso é legal. Algum filho?
— Não, sem filhos, só três divórcios. É uma sexta-feira de julho,
vocês estão a caminho de uma casa de campo e no minúsculo porta-malas do seu
carro voador tem raquetes de tênis, tacos de críquete e um cesto cheio de
vinhos e uvas sul-africanas, aspargos e umas pobres codornas. O vento bate no
seu para-brisa e você se sente bem, muito bem consigo mesmo, e a esposa número
três, ou quatro, sei lá, sorri para você com duzentos dentes brancos e
brilhantes, e você sorri de volta e tenta não pensar no fato de vocês dois não
terem nada, absolutamente nada, a dizer um ao outro.
Emma parou de repente. “Você está falando como uma doida”, disse
para si mesma. “Tente não falar como uma doida.”
— Se serve de consolo, é claro que todos já teremos morrido numa
guerra nuclear bem antes disso! — observou com leveza, mas ele continuou com o
cenho franzido.
— Então acho melhor eu ir embora. Já que sou tão superficial e
depravado...
— Não. Não vai, não — ela pediu, talvez um pouco ansiosa demais. —
São quatro da manhã.
Ele se ajeitou na cama até ficar com o rosto a poucos centímetros
do dela.
— Não sei de onde você tirou essa ideia a meu respeito, você mal
me conhece.
— Eu conheço o seu tipo.
— Meu tipo?
— Eu já vi você com a sua turma depois das aulas de literatura
moderna, gritando uns com os outros, organizando festas blacktie...
— Eu nem tenho um smoking. E muito menos sou de gritar...
— Passeando de iate no Mediterrâneo em feriados prolongados, rá,
rá, rá...
— Então, se eu sou assim tão canalha... — Agora a mão dele estava
no quadril dela.
— E é mesmo.
— ...por que você está dormindo comigo? — A mão alojou-se na pele
quente e macia da coxa.
— Na verdade acho que eu não dormi com você, dormi?
— Bem, isso depende. — Inclinou-se e beijou-a. — Defina os seus
termos. — A mão tateava a base da coluna, uma perna enfiada entre as pernas
dela.
— A propósito — murmurou ela, a boca colada na dele.
— O quê? — Sentiu a perna dela enlaçar a sua e puxá-lo mais para
perto.
— Você precisa escovar os dentes.
— Eu não ligo se você não escovar.
— Mas está horrível — ela riu. — Sua boca está com gosto de vinho
e cigarro.
— Tudo bem. A sua também está.
A cabeça dela se afastou num tranco, interrompendo o beijo.
— É mesmo?
— Eu não ligo. Eu gosto de vinho e de cigarro.
— Só um segundo. — Ela empurrou o edredom, passando por cima dele.
— Aonde você vai? — Encostou a mão nas costas nuas que se
afastavam.
— Só vou até o trono — respondeu, pegando os óculos de cima da
pilha de livros ao lado da cama: óculos grandes, armação preta, modelo comum.
— “Trono”, “trono”... Desculpe, não sei do que se trata...
Emma se levantou com um braço atravessado sobre o peito, tomando o
cuidado de ficar de costas para ele.
— Não vá embora — falou enquanto se afastava, enganchando dois
dedos no elástico para ajeitar a calcinha no alto das coxas.
— E não vale se masturbar enquanto eu estiver fora.
Dexter expirou pelo nariz e se ajeitou na cama, examinando o
mal-ajambrado quarto que ela aluga, sabendo com absoluta certeza que em algum
lugar entre aqueles cartões-postais de arte e cartazes de peças de teatro
alternativo haveria uma fotografia do Nelson Mandela, como uma espécie de
namorado ideal que só existe no mundo dos sonhos. Já tinha visto muitos quartos
como aquele nesses últimos quatro anos, espalhados pela cidade como a cena de
um crime, quartos onde nunca se estava a mais de dois metros de um disco da
Nina Simone. Embora raramente tivesse visitado duas vezes o mesmo quarto, tudo
era muito familiar. Os velhos abajures e os vasos de plantas desolados, o cheiro
de sabão em pó em lençóis baratos que mal cabiam nas camas. Ela também tinha
aquela paixão artística por fotomontagens, tão comum nas garotas: fotos de
colegas da faculdade e da família misturando-se com desenhos de Chagall,
Vermeer e Kandinsky, os Che Guevaras, os Woody Allens e os Samuel Becketts.
Nada era neutro, tudo afirmava um ponto de vista. O quarto era um manifesto, e
com um suspiro Dexter identificou-a como uma daquelas garotas que usavam
“burguês” como um termo ofensivo. Ele entendia que “fascista” pudesse ter
conotações negativas, mas gostava da palavra “burguês” e de tudo que tal termo
implicava. Segurança, viagens, boa comida, boas maneiras, ambição; por que
deveria se sentir culpado por isso?
Observou as nuvens de fumaça saindo da própria boca. Tateando em
busca de um cinzeiro, encontrou um livro ao lado da cama. A insustentável
leveza do ser, com a lombada bem vincada nas partes “eróticas”. O problema
dessas garotas rebeldes e individualistas é que todas eram exatamente iguais.
Outro livro: O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. “Que
imbecil”, pensou, certo de que jamais cometeria aquele erro.
Com vinte e três anos, a visão que Dexter Mayhew tinha do próprio
futuro não era mais nítida que a de Emma Morley. Queria ser bem-sucedido, que
os pais se orgulhassem dele e que tivesse a oportunidade de dormir com mais de
uma mulher ao mesmo tempo, mas como tornar todas essas coisas compatíveis?
Queria ser citado em revistas e esperava um dia ver uma retrospectiva do seu
trabalho, sem ter uma clara noção do que seria esse trabalho. Queria aproveitar
a vida ao máximo, mas sem confusões nem complicações. Queria viver de forma
que, se fosse fotografado casualmente, a foto saísse bonita. As coisas deveriam
estar certas.
Diversão; devia haver bastante diversão e pouca tristeza, não mais
que o absolutamente necessário. Não era um grande plano, e já tinha havido
alguns tropeços. Esta noite, por exemplo, poderia ter repercussões: lágrimas,
telefonemas desagradáveis e acusações. Talvez o melhor fosse ir embora o quanto
antes. Olhou para as roupas jogadas ao lado, preparando-se para uma fuga. Foi
alertado por um solavanco e o estampido de uma antiga descarga vindos do
banheiro e logo recolocou o livro no lugar, encontrando embaixo da cama uma
latinha amarela de mostarda Colman’s, que abriu e confirmou que, sim,
continha camisinhas e pequenos restos acinzentados de um baseado que pareciam
fezes de rato. Com a possibilidade de sexo e drogas que aquela pequena
lata amarela continha ficou mais animado, e afinal decidiu que poderia ficar um
pouco mais.
No banheiro, Emma Morley limpava manchas de pasta de dente nos
cantos da boca e pensava se tudo aquilo não seria um grande equívoco. Lá estava
ela, depois de quatro anos vagando em um deserto romântico, finalmente,
finalmente na cama com alguém de quem gostava, de quem gostara desde que o
tinha visto pela primeira vez numa festa em 1984, e que em poucas horas estaria
indo embora. Provavelmente para sempre. Era quase certo que não a convidaria
para ir à China, sem falar que ela estava boicotando a China. E ele estava
certo, não estava? Dexter Mayhew. Na verdade desconfiava que ele nem fosse
assim tão brilhante, quem sabe até um pouco cheio de si, mas era popular.
Engraçado e — não havia como negar — muito atraente. Então, por que estava
sendo tão indelicada e sarcástica? Por que não conseguia se mostrar divertida e
autoconfiante como as garotas exuberantes e artificiais com quem ele costumava
andar? Viu a luz da manhã pela minúscula janela do banheiro. Sobriedade. Penteou
o cabelo desgrenhado com a ponta dos dedos fazendo careta, depois puxou a
corrente da antiga caixa de descarga e voltou para o quarto.
Na cama, Dexter viu quando ela apareceu na porta, vestindo a beca
e o barrete que todos foram obrigados a alugar para a cerimônia de formatura, a
perna enganchada no batente da porta de forma jocosa e sedutora, o canudo do
diploma na mão. Emma espiou por cima dos óculos e cobriu um olho com o barrete.
— Que tal?
— Fica bem em você. Gostei da pose sedutora. Agora tire isso e
volte para a cama.
— De jeito nenhum. Isso me custou trinta pratas. Esse dinheiro vai
ter que valer alguma coisa. — Abriu a beca como se fosse uma capa de vampiro.
Dexter tentou segurar uma das pontas, mas ela desfechou um golpe com o diploma
enrolado e sentou na beira da cama, dobrando as hastes dos óculos e tirando a
beca. Ele deu uma última olhada nas costas nuas e na curva dos seios dela, e
logo tudo desapareceu debaixo de uma camiseta preta, que exigia desarmamento
nuclear unilateral já. “É isso aí”, pensou. “Nada melhor que uma longa camiseta
preta com dizeres políticos para acabar com o desejo sexual, a não ser talvez
um disco da Tracy Chapman.”
Resignado, pegou o diploma do chão, deslizou o elástico até o
final do tubo e anunciou: “Inglês e história, com louvor, primeira classe.”
— Morra de inveja, garotão — tentando pegar o diploma. — Ei,
cuidado com isso.
— Vai mandar enquadrar, é?
— Minha mãe e meu pai vão transformar isso em papel de parede. —
Enrolou o diploma bem apertado, ajeitando as extremidades.
— Vão mandar fazer descansos de pratos. Minha mãe vai tatuar isso
nas costas.
— Aliás, onde estão os seus pais?
— Ah, estão logo aí no quarto ao lado.
Ele vacilou.
— Como assim, é mesmo?
Ela gargalhou.
— Claro que não. Já voltaram para Leeds. Papai acha que hotel é
coisa de bacana. — Escondeu o diploma embaixo da cama.
— Chega para lá — falou, empurrando-o para o lado frio do colchão.
Dexter deixou que ela se deitasse e procurou uma posição, passando um braço ao
redor dos ombros da garota meio sem jeito e beijando seu pescoço de forma
especulativa. Emma virou-se para ele, o queixo encolhido.
— Dex?
— Hum.
— Tudo bem se a gente só ficar abraçadinho?
— Claro. Se é isso o que você quer — respondeu, galante, embora na
verdade nunca tivesse entendido muito bem o sentido daquilo.
Dormir abraçado era para tias-avós e ursinhos de pelúcia. Dava
cãibras. O melhor mesmo seria admitir logo a derrota e ir para casa o mais
rápido possível, mas ela estava deitando a cabeça em seu ombro, ocupando
território, e os dois ficaram assim por algum tempo, rígidos e pouco à vontade,
antes de ela dizer:
— Nem acredito que eu falei “ficar abraçadinho”. Que coisa
horrível... Desculpe.
Ele sorriu.
— Tudo bem. Pelo menos não foi aconchegado.
— Aconchegado é bem ruim.
— Ou juntinhos.
— Juntinhos é terrível. Vamos prometer nunca ficar juntinhos
— sugeriu ela, arrependendo-se imediatamente de ter falado aquilo.
Os dois juntos? Parecia pouco provável. Ficaram em silêncio outra
vez. Durante as últimas oito horas eles tinham conversado e se beijado, e agora
sentiam aquela fadiga corporal profunda que chega junto com a alvorada. Melros
cantavam no jardim dos fundos mal cuidado.
— Adoro esse som — ele falou com a boca nos cabelos dela. — Melros
ao amanhecer.
— Eu odeio. Dá a impressão de que vou me arrepender de ter feito
alguma coisa.
— É por isso que eu adoro — observou Dex, mais uma vez buscando um
efeito cínico e carismático. Logo depois acrescentou: — Mas por que isso?
— Por que o quê?
— Você vai se arrepender de ter feito alguma coisa?
— Você está falando disso? — Apertou a mão dele. — Ah, espero que
sim. Ainda não sei. Pergunte isso de manhã. E você?
Ele pressionou a boca contra o topo da cabeça de Emma.
— Claro que não — respondeu e pensou: “Isso nunca, nunca mais pode
acontecer.”
Satisfeita com a resposta, Emma chegou um pouco mais perto.
— A gente precisa dormir um pouco.
— Por quê? Não tem nada para fazer amanhã. Nenhum prazo, nenhum
trabalho...
— Só o resto das nossas vidas se abrindo à nossa frente — comentou
ela sonolenta, sentindo o cheiro dele morno, fresco e maravilhoso, e ao mesmo
tempo com um arrepio de ansiedade percorrendo seu corpo ao pensar no que estava
por vir: uma vida adulta e independente. Mas ela não se sentia adulta. Não
estava preparada, de jeito nenhum. Era como se um alarme de incêndio tivesse
disparado de madrugada e ela se encontrasse no meio da rua com as roupas
emboladas no braço. Se não tinha aprendido nada, o que iria fazer? Como
preencheria os próximos dias? Não tinha a menor ideia.
“O negócio era ser corajosa e ousada e realizar alguma coisa”,
pensou consigo mesma. Não exatamente mudar o mundo, só um pouco à sua volta.
Sair por aí com o diploma com honras de primeiro lugar em duas matérias, muita
paixão e a nova máquina de escrever elétrica Smith Corona e trabalhar duro
em... alguma coisa. Mudar a vida das pessoas através da arte, talvez. Escrever
coisas bonitas. Agradar aos amigos, continuar fiel aos próprios princípios,
viver plenamente, bem e com paixão. Experimentar coisas novas. Amar e ser
amada, se possível. Comer com moderação. Coisas assim.
Não era exatamente uma linha filosófica, nem algo que pudesse ser
compartilhado, menos ainda com aquele homem, mas era no que acreditava. E até
agora as primeiras poucas horas de vida adulta independente tinham sido
razoáveis. Talvez de manhã, depois de um chá com aspirina, ela conseguisse até
reunir coragem para chamá-lo de volta para a cama. Eles estariam sóbrios então,
o que não facilitaria muito as coisas, mas talvez fosse bom. Nas poucas vezes
em que tinha ido para a cama com meninos ela sempre acabara gargalhando ou
chorando, e seria bom tentar algo que não fosse nem uma coisa nem outra. Ficou
imaginando se ainda tinha camisinhas na lata de mostarda. Não havia razão para
não ter, pois estavam lá da última vez em que verificou: fevereiro de 1987.
Vince, um engenheiro químico cheio de pelos nas costas e que tinha assoado o
nariz na fronha dela. Bons tempos aqueles, bons tempos...
Lá fora, começava a clarear. Dexter podia ver o tom rosado do novo
dia filtrado pelas pesadas cortinas de inverno que vinham junto com aqueles
quartos alugados. Tomando cuidado para não acordá-la, passou o braço por cima
da garota, jogou a ponta de cigarro na caneca de vinho e olhou para o teto.
Seria difícil dormir agora. Melhor desvendar o estampado da toalha cinza até
ela estar completamente adormecida e então se esgueirar e sair em silêncio.
Claro que sair desse jeito significaria nunca mais voltar a ver
Emma. Ele se perguntou se ela ficaria chateada e achou que sim: em geral elas achavam
essas coisas importantes. Mas por que ele se importaria? Tinha passado muito
bem sem ela durante quatro anos. Até a noite passada achava que seu nome era
Anna, mas na festa não tinha conseguido desviar o olhar. Por que não a notara
até então? Examinou o rosto adormecido ao seu lado.
Era bonita, mas parecia constrangida por isso. O cabelo tingido de
ruivo era mal cortado quase de propósito, talvez por ela mesma em frente ao
espelho ou pela garota grandona e barulhenta com quem dividia o apartamento, Tilly
sei lá o quê. A pele pálida e com acne indicava muito tempo passado em
bibliotecas ou tomando cerveja em bares, e os óculos faziam com que parecesse
uma coruja afetada. O queixo era suave e gorducho, embora talvez fosse só um
pouco de papada (ou será que “gorducho” e “papada” eram coisas que não se
podiam dizer naquele momento? Assim como não se podia dizer que tinha uns
peitos incríveis, mesmo que fosse verdade, sem que ela ficasse toda ofendida).
Deixa para lá, vamos voltar ao rosto. Havia um pequeno quisto
sebáceo na ponta do nariz pequeno e bem feito e um borrifo de minúsculas
manchas vermelhas na testa, mas fora isso era inegável que aquele rosto... bem,
o rosto dela era uma maravilha. Os olhos estavam fechados e ele percebeu que
não se lembrava bem da cor deles, apenas que eram grandes, brilhantes e
irônicos, assim como os dois vincos nos cantos da boca rasgada, parênteses
marcantes que se aprofundavam quando ela sorria, o que acontecia com
frequência. Bochechas macias com sardas rosadas, almofadas de carne que
pareciam quentes ao toque. Sem batom, os lábios cor de morango estavam sempre
apertados, mesmo quando sorriam, como se ela não quisesse mostrar os dentes, um
pouco grandes para a boca, os da frente meio lascados, tudo isso dando a
impressão de estar sempre escondendo alguma coisa, uma risada, uma observação
inteligente ou uma piada secreta fantástica.
Se fosse embora agora, provavelmente nunca mais veria aquele
rosto, a não ser talvez em alguma terrível reunião dali a dez anos. Ela estaria
mais gorda e se diria decepcionada, reclamaria por ele ter ido embora sem se
despedir. Melhor sair em silêncio, e nada de reuniões comemorativas. Seguir em
frente, olhar para o futuro. Haveria muitos outros rostos bonitos à frente.
Mas, assim que tomou a decisão, a boca da moça se abriu num
sorriso largo e ela falou, sem abrir os olhos:
— Então, qual é a sua conclusão, Dex?
— Sobre o quê, Em?
— Sobre eu e você. Você acha que é amor? — deu uma risada grave,
os lábios bem apertados.
— Vê se dorme, tá?
— Então pare de olhar para o meu nariz. — Abriu os olhos,
azul-esverdeados, brilhantes e astutos. — Que dia é amanhã? — resmungou.
— Você quer dizer hoje?
— Hoje. Esse dia novo e radiante que nos espera.
— É uma sexta. Sexta o dia inteiro. Aliás, é o Dia de São Swithin.*
— E o que isso quer dizer?
— É uma tradição. Se chover hoje, vai chover pelos próximos
quarenta dias, ou durante todo o verão, algo assim.
Emma franziu o cenho.
— Isso não faz sentido.
— Nem é para fazer. É uma superstição.
— Vai chover onde? Sempre está chovendo em algum lugar.
— No túmulo de São Swithin. Ele está enterrado perto da catedral
de Winchester.
— Como você sabe tudo isso?
— Eu estudei lá.
— Uau — ela falou baixinho no travesseiro.
— “Se chover no Dia de São Swithin / Por quarenta dias permanecerá
assim.”
— Que belo poema.
— Bom, eu só estava parafraseando.
Ela riu mais uma vez, depois ergueu a cabeça, sonolenta.
— Escuta, Dex?
— Em?
— E se não chover hoje?
— Hu-hum.
— O que você vai fazer mais tarde?
“Diga que vai estar ocupado.”
— Nada especial — respondeu.
— Então vamos fazer alguma coisa? Quer dizer, nós dois?
“Espere ela dormir e saia de fininho.”
— Sim. Tudo bem — concordou. — Vamos fazer alguma coisa.
Emma deixou a cabeça cair no travesseiro outra vez.
— Um dia novinho em folha — murmurou.
— É, um dia novinho em folha.
*Segundo a tradição inglesa, as condições meteorológicas do dia 15
de julho, o Dia de São Swithin (o bispo de Winchester, aclamado por duas
doações para caridade e construção de igrejas), permanecerão por quarenta dias.
(N. da E.)
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