Capítulo 10 – Carpe Diem
Segunda-Feira, 15 de Julho de 1996
Leytonstone
e Walthamstow
Emma Morley está deitada de barriga para cima no chão do
escritório do diretor, com o vestido amarrotado em torno da cintura e expira
devagar pela boca.
— Ah, a propósito, a nona série precisa de mais exemplares de Cider
With Rosie.
— Vou ver o que posso fazer — responde o diretor, abotoando a
camisa.
— Então, aproveitando que estou deitada no seu carpete, tem mais
alguma coisa que você queira discutir? Questões orçamentárias, alguma inspeção
do Ministério da Educação? Algo que queira analisar outra vez?
— Eu gostaria de analisar você outra vez — ele responde,
deitando-se de novo e cheirando o pescoço dela. É o tipo da insinuação sem
sentido na qual o senhor Godalming (Phil) é especialista.
— O que significa isso? Não significa nada. — Emma estala a
língua, afasta-se dele e se pergunta por que o sexo a deixa tão mal-humorada,
mesmo quando é agradável. Os dois ficam deitados por um momento. São seis e
meia da tarde do último dia do período letivo e o Colégio de Cromwell Road tem
aquela quietude sinistra típica de uma escola depois do expediente. Os
faxineiros já passaram por lá, a porta do escritório está trancada por dentro,
mas ela se sente inquieta e ansiosa. Não deveria existir uma espécie de
comunhão posterior, uma sensação de bem-estar? Nos últimos nove meses, Emma tem
feito amor no carpete daquela instituição, em cadeiras de plástico e sobre
mesas de fórmica. Sempre atencioso com seus funcionários, Phil retirou a
almofada de espuma do armário do escritório, que agora está debaixo de seus
quadris; ainda assim ela gostaria de um dia poder fazer sexo em algum lugar menos
atulhado de móveis.
— Sabe de uma coisa? — pergunta o diretor.
— O quê?
— Eu acho você sensacional — aperta o seio dela para dar ênfase à
afirmação. — Não sei o que vou fazer nessas seis semanas sem você.
— Ao menos o seu carpete vai poder descansar um pouco.
— Seis semanas inteiras sem você. — A barba arranha o pescoço
dela. — Eu vou enlouquecer de desejo...
— Bom, você sempre pode recorrer à senhora Godalming — diz Emma,
ouvindo a própria voz, amarga e maldosa. Senta-se e puxa o vestido até os
joelhos. — Além do mais, achei que férias mais longas eram uma das vantagens de
ser professor. Foi o que você disse quando eu me candidatei...
Magoado, olha para ela do carpete.
— Não faça isso, Em.
— O quê?
— O papel de mulher rejeitada.
— Desculpe.
— Eu também não gosto dessa situação.
— Só que eu acho que gosta.
— Não, não gosto. Não vamos estragar tudo, tá? — Apoia a mão nas
costas dela, como que para animá-la. — Essa é a nossa última vez até setembro.
— Tudo bem, eu já pedi desculpa, certo? — Para enfatizar a mudança
de assunto, gira a cintura e dá um beijo nele. Quando já está se afastando, ele
põe a mão na sua nuca e a beija outra vez, numa atitude delicada e
exploratória.
— Puxa, eu vou sentir sua falta.
— Sabe o que eu acho que devia fazer? — ela pergunta, com a boca
colada na dele. — É bem radical.
Phil olha para ela, ansioso.
— Diga.
— Nesse verão, assim que terminar o período letivo...
— Pode falar.
Emma põe um dedo no queixo dele.
— Acho que você devia raspar essa barba.
Ele se senta.
— De jeito nenhum!
— Imagine só, depois de todo esse tempo ainda não sei como você é!
— Eu sou ASSIM!
— Mas o seu rosto, o seu verdadeiro rosto. Talvez você até
seja muito bonito. — Põe a mão no braço dele e o puxa de novo para baixo. —
Quem está por trás dessa máscara? Me deixa entrar, Phil. Deixa eu saber quem é
você de verdade.
Os dois voltam a rir, mais uma vez à vontade.
— Você ia ficar decepcionada — diz, acariciando a barba como se
fosse um animal de estimação. — De qualquer forma, é isso ou fazer a barba três
vezes por dia. Eu costumava me barbear de manhã, mas na hora do almoço já
estava parecendo um mendigo.
Então resolvi deixar crescer, fazer disso minha marca registrada.
— Ah, sua marca registrada.
— É uma coisa informal. Os garotos adoram. Dá a mim um ar rebelde.
Emma ri outra vez.
— Não estamos mais em 1973, Phil. Hoje em dia barba tem outro
significado.
Phil dá de ombros, na defensiva.
— Fiona gosta. Diz que meu queixo fica muito pequeno sem barba. —
Segue-se um silêncio, como sempre acontece quando a esposa é mencionada. Para
aliviar a situação, ele diz, irônico consigo mesmo: — Claro que você sabe que
todos os garotos me chamam de O Barba.
— Não, não sabia. — Phil dá risada e Emma sorri. — E, aliás, não é
“O Barba”, é só “Barba”. Sem o artigo, Homem-macaco.
Ele senta-se bruscamente, franzindo o cenho.
— Homem-macaco?
— É como eles te chamam.
— Quem?
— Os garotos.
— Homem-macaco?
— Você não sabia?
— Não!
— Ops. Desculpe.
Phil se deita de novo no chão, magoado e ressentido.
— Não acredito que eles me chamam de Homem-macaco!
— É só de brincadeira — comenta Emma, para acalmá-lo. — É um
apelido carinhoso.
— Não me parece muito carinhoso. — Esfrega o queixo como se
consolasse um bichinho de estimação. — É que eu tenho muita testosterona, só
isso. — O emprego da palavra “testosterona” é suficiente para excitá-lo, e Phil
puxa Emma para o chão e a beija mais uma vez. Emma sente o gosto do café dos
funcionários e do vinho que guarda no armário.
— Eu vou ficar com a pele marcada.
— E daí?
— Daí que as pessoas vão saber.
— Todo mundo já foi embora. — A mão dele está na coxa dela, quando
o telefone toca sobre a mesa e ele recua como se tivesse levado uma ferroada.
Ergue-se cambaleando.
— Deixa tocar! — diz Emma.
— Eu preciso atender! — Começa a vestir a calça, como se falar com
Fiona nu da cintura para baixo fosse uma traição excessiva, como se de alguma
forma pudesse mostrar que estava com as pernas de fora.
— Alô! Oi, amor! Sim, eu sei! Já estou quase na porta... —
Assuntos domésticos são debatidos (massa ou fritura, TV ou um DVD) e Emma se
distrai da vida doméstica do amante recolhendo suas roupas de baixo enroladas
sob a mesa, junto com clipes de papel e canetas hidrográficas. Enquanto se
veste, vai até a janela. As lâminas da persiana estão empoeiradas, e lá fora
uma luz púrpura ilumina o departamento de ciência, e de repente Emma gostaria
de estar num parque, numa praia ou em alguma praça de uma cidade européia, em
qualquer lugar que não ali naquela sala abafada, com um homem casado. “Como
pode um dia você acordar e perceber que chegou aos trinta anos e é amante de um
homem casado?” A expressão é abjeta, repulsiva, ela não deveria estar pensando
naquilo, mas não consegue encontrar outra definição. Agora ela é a amante do
chefe, e o melhor que pode ser dito nessas circunstâncias é que pelo menos não
há filhos envolvidos.
***
O caso — outra palavra terrível — começou em setembro do ano
anterior, depois daquelas desastrosas férias em Corfu, com o anel de noivado no
meio das lulas.
— Acho que nós queremos coisas diferentes — foi o máximo que
conseguiu dizer, e o resto daquelas longuíssimas duas semanas se passou em meio
a uma névoa de queimaduras de sol, mau humor, autocomiseração e preocupação se
o joalheiro aceitaria ou não o anel de volta. Nada no mundo podia ser mais
melancólico do que a rejeição de um anel de noivado: ficou dentro da mala no quarto
do hotel, emanando tristeza como se fosse uma espécie de radiação.
Emma voltou das férias bronzeada e infeliz. A mãe dela, que sabia
do pedido e praticamente já tinha comprado o vestido da festa de casamento,
reclamou e resmungou durante semanas, até a própria Emma começar a se
questionar sobre sua rejeição da proposta.
Mas responder com um sim seria como ceder por inércia, e Emma
sabia pelos romances que lera que não se deve jamais ceder por inércia a um
casamento.
O caso teve início quando ela começou a chorar no meio de uma
reunião de rotina no escritório de Phil. Ele saiu de trás da mesa, passou o
braço nos ombros dela e encostou os lábios no alto da sua cabeça, quase como se
dissesse “finalmente”. Depois do expediente Phil a levou a um lugar de que
tinha ouvido falar, um “gastropub”, onde se tomava cerveja mas a comida também
era muito boa. Comeram bifes de alcatra e salada de queijo de cabra, e quando
os joelhos dos dois se tocaram debaixo da grande mesa de madeira Emma deixou
acontecer. Depois da segunda garrafa de vinho, tudo era apenas uma questão de
formalidade; o abraço se transformou em beijo no táxi para casa, o envelope
pardo em sua caixa de correio (Sobre a noite de ontem, não consigo deixar de
pensar em você. Faz anos que sinto isso por você, precisamos conversar.
Quando podemos falar?).
Tudo o que Emma sabia sobre adultério era o que tinha visto em
novelas da TV dos anos 1970. Associava aquilo a Cinzano e motos Triumph TR7, a
festas com queijos e vinho, pensava ser algo que pessoas de meia-idade faziam,
principalmente da classe média: golfe, iates e adultério. Agora que estava
envolvida num caso — com sua parafernália de olhares secretos, mãos dadas
embaixo da mesa, trocas de carinhos no escritório —, Emma se surpreendia com a
familiaridade de tudo aquilo, como a luxúria podia ser uma emoção forte quando
combinada com culpa e baixa autoestima.
Uma noite, depois de fazer sexo no cenário de sua produção
natalina de Nos tempos da brilhantina, Phil entregou-lhe uma caixa embrulhada
para presente de um jeito solene.
— Um telefone celular!
— Para quando eu precisar ouvir a sua voz.
Sentada no capô lustroso do carro, Emma olhou para a caixa e
suspirou.
— É, acho que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde.
— Como assim? Você não gostou?
— Não, é ótimo. — Sorriu ao se recordar da conversa com Dexter. —
É que acabo de perder uma aposta com uma pessoa, só isso.
Em algumas ocasiões, caminhando e conversando numa radiante noite
de outono em uma região pouco conhecida de Hackney Marshes, ou dando risadinhas
no meio de um hino natalino na escola, bêbada de vinho quente e com os quadris
se tocando, chegou a pensar que estava apaixonada por Phillip Godalming. Ele
era um bom professor, íntegro e dedicado, ainda que às vezes um tanto pretensioso.
Tinha olhos bonitos, conseguia ser engraçado. Pela primeira vez na vida ela era
objeto de uma paixão sexual quase obsessiva. Claro que, com quarenta e quatro
anos, Phil era velho demais, e seu corpo já tinha aquela característica flácida
e escorregadia abaixo da pele, mas era um amante sincero e intenso, às vezes
intenso até demais para o seu gosto: ele gostava de falar obscenidades. Era
difícil de acreditar que o mesmo homem que discursava nas reuniões sobre fundos
de caridade usasse aquele tipo de linguagem. De vez em quando tinha vontade de
interromper tudo e dizer:
— Senhor Godalming... o senhor falou um palavrão!
***
Mas agora nove meses já haviam se passado, o encantamento diminuía
e Emma achava difícil entender o que estava fazendo ali, perdendo seu tempo no
corredor de uma escola naquela linda tarde de verão. Deveria estar com amigos,
ou com um namorado de quem se orgulhasse e pudesse mencionar na frente de
outras pessoas. Triste, sentindo-se culpada e envergonhada, fica esperando do lado
de fora do banheiro masculino enquanto Phil se lava com sabonete do governo.
Sua Senhoria, o Diretor de Inglês e de Dramaturgia, e sua amante. Oh, Deus, meu
Deus.
— Tudo pronto! — anuncia Phil, saindo do banheiro. Acolhe a mão
dela entre as suas, ainda úmidas da torneira da pia, mas afasta-se
discretamente quando saem ao ar livre. Fecha a porta principal, liga o alarme e
os dois caminham até o carro sob a luz do final da tarde, mantendo uma
distância profissional, a pasta de couro dele às vezes esbarrando na
panturrilha dela.
— Eu levaria você até o metrô, mas...
— ...é melhor não arriscar.
Andam um pouco mais.
— Daqui a quatro dias! — ele diz de repente, quebrando o silêncio.
— Aonde você vai mesmo? — pergunta Emma, embora já saiba.
— Córsega. Fazer caminhadas. Fiona adora caminhadas. Caminhar,
caminhar, caminhar, sempre caminhando. Ela parece o Gandhi. Depois, à noite,
tiram-se as botas, apagam-se as luzes...
— Phil, por favor... não.
— Desculpe. Desculpe. — Mudando assunto, ele pergunta: — E você?
— Talvez eu visite minha família em Yorkshire. Vou ficar por aqui,
trabalhando.
— Trabalhando?
— Escrevendo, sabe.
— Ah, sim, escrevendo. — Assim como todos os outros, Phil
diz aquilo como se não acreditasse nela. — Não é sobre nós dois esse seu famoso
livro, é?
— Não, não é. — Agora eles chegaram ao carro e Emma está ansiosa
para ir embora. — Além do mais, não sei se nós dois somos tão interessantes
assim.
Phil está encostado em seu Ford Sierra azul, preparando-se para a
grande despedida, mas agora ela estragou tudo. Franze o cenho, o lábio inferior
se mostrando rosado por entre a barba.
— O que você quer dizer com isso?
— Sei lá, é que...
— Pode falar.
— Phil, isso... nós dois. Isso não me faz feliz.
— Você se sente infeliz?
— Bom, não é uma situação ideal, é? Uma vez por semana, no carpete
de uma instituição pública.
— Você me pareceu bem feliz.
— Não estou falando de satisfação. Meu Deus, não tem nada a
ver com sexo, são... as circunstâncias.
— Bem, eu me sinto feliz...
— É mesmo? Mas de verdade?
— Se me lembro bem, você também se sentia feliz.
— Empolgada, acho, por um tempo.
— Pelo amor de Deus, Emma! — Olha para ela como se tivesse sido
pega fumando no toalete feminino. — Eu preciso ir! Por que tocar nesse assunto
logo agora que estou indo embora?
— Desculpe, eu...
— Mas que merda, Emma!
— Ei! Não fale assim comigo!
— Não é isso, eu só, só... Vamos esperar o fim das férias de
verão, está certo? Depois pensamos no que fazer.
— Acho que não há nada que a gente possa fazer, não é? Só podemos
parar ou continuar, e acho que não deveríamos continuar...
Ele abaixa a voz.
— Tem uma coisa que podemos fazer... que eu posso fazer. — Olha em
volta e, ao perceber que estão em segurança, segura a mão dela. — Eu poderia
contar para Fiona neste verão.
— Eu não quero que você conte nada para ela, Phil...
— Enquanto estivermos viajando, ou até antes, na semana que vem...
— Não quero que você conte nada para ela. Não há razão para
isso...
— Não há razão?
— Não!
— Porque eu acho que há uma razão, acho que pode haver.
— Ótimo! Então vamos conversar depois das férias, vamos, sei lá...
agendar uma reunião.
Mais animado, ele lambe os lábios e verifica de novo se alguém
está vendo.
— Eu te amo, Emma Morley.
— Não ama, não — ela suspira. — Não de verdade.
Phil abaixa a cabeça, como se olhasse para ela por cima de uns
óculos imaginários.
— Acho que sou eu quem deve saber isso, não? — Emma odeia aquele
olhar e o tom de voz de autoridade. Sente vontade de chutar a canela dele.
— É melhor você ir agora — sugere.
— Vou sentir saudade, Em...
— Boas férias, se não nos falarmos mais...
— Você não faz ideia do quanto vou sentir sua falta...
— A Córsega deve ser linda...
— Todos os dias...
— Então a gente se vê. Tchau...
— Espera... — Erguendo a pasta como um escudo, ele dá um beijo
nela. Muito discretamente, ela acha, e continua impassível.
Phil abre a porta do carro e entra. Um Sierra azul-marinho, carro
típico de um diretor de escola, o porta-luvas atulhado de mapas de viagem. —
Ainda não consigo acreditar que eles me chamam de Homem-macaco... — resmunga,
meneando a cabeça.
Emma continua no estacionamento vazio por um tempo, observando
enquanto ele se afasta. Trinta anos de idade, quase apaixonada por um homem
casado, mas pelo menos não há filhos envolvidos.
***
Vinte minutos depois ela está embaixo da janela do edifício maciço
de tijolos vermelhos onde fica o seu apartamento e avista uma luz acesa na
sala. Ian apareceu outra vez.
Considera voltar e se esconder em algum pub ou, quem sabe,
visitar alguns amigos naquela noite, mas sabe que Ian vai simplesmente se
sentar na poltrona, apagar a luz e esperar como um assassino. Respira fundo e
procura a chave.
O apartamento parece muito maior desde que Ian saiu de lá. Sem
caixas de vídeo e transformadores, sem cabos e adaptadores, sem álbuns duplos
de vinil, a impressão é de que o local foi assaltado há pouco tempo, e mais uma
vez Emma se dá conta de como tem pouco a mostrar dos seus últimos oito anos.
Logo ao entrar, ouve ruídos no quarto. Larga a bolsa e anda em silêncio em
direção à porta.
O conteúdo das gavetas da cômoda está espalhado pelo chão: cartas,
comunicados bancários, envelopes rasgados de fotografias e negativos. Fica
observando em silêncio da porta e percebe que Ian está ofegante, esforçando-se
para explorar o fundo de uma gaveta. Está com os tênis desamarrados, calça de
moletom e uma camisa amassada. Uma roupa cuidadosamente escolhida para indicar
o máximo de desleixo. Tudo para que ela se sinta culpada.
— O que está fazendo, Ian?
Vira-se sobressaltado, mas só por um instante, depois olha para
ela com indignação, como um arrombador ultrajado.
— Isso são horas? — pergunta, acusador.
— Não é da sua conta.
— Só queria saber por onde você tem andado, só isso.
— Eu estava ensaiando, Ian, e acho que já combinamos que você não
pode aparecer aqui desse jeito.
— Por quê, você está acompanhada, é isso?
— Ian, eu não estou a fim de entrar nessa... — Larga a bolsa e
tira o casaco. — Se está atrás de algum diário ou coisa parecida, está perdendo
o seu tempo. Faz anos que eu não tenho um diário...
— Na verdade, só estou pegando as minhas coisas. Essas
coisas são minhas, sabe? Eu sou o dono delas.
— Você já levou todas as suas coisas.
— Meu passaporte. Eu não peguei o meu passaporte!
— Tenho certeza de que seu passaporte não está na minha gaveta de
calcinhas. — Claro que ele está blefando. Emma sabe que
Ian levou o passaporte, só quer fuçar suas coisas e lhe mostrar o
quanto está mal. — Por que você precisa do passaporte? Está indo viajar? Vai
morar fora, talvez?
— Ah, você adoraria, não é? — zombou ele.
— Bom, não importa — diz ela passando por cima da bagunça para
sentar na cama.
Ian adota uma voz de detetive particular.
— Ora, pode ir se acostumando, querida, porque eu não vou a
lugar nenhum. — Como namorado rejeitado, Ian tem mostrado uma firmeza e
uma agressividade que nunca teve como humorista, e com certeza está fazendo um
belo show esta noite. — De qualquer forma, eu não teria dinheiro para isso.
Emma sente vontade de gritar.
— Então imagino que não esteja fazendo muitos shows no momento,
certo, Ian?
— O que você acha, querida? — responde abrindo os braços,
mostrando a barba por fazer, o cabelo sem lavar, a pele macilenta: sua postura
típica de “olha só o que você fez comigo”. Ian está fazendo um espetáculo de
autopiedade, o show de mágoa e rejeição que vem elaborando nos últimos seis
meses. Mas esta noite Emma não está com paciência para aquilo.
— De onde você tirou esse “querida”, Ian? Não sei se estou
gostando disso.
Ele volta às suas explorações, murmurando alguma coisa dentro da
gaveta, talvez “vai se foder, Em”. Será que está bêbado?
Emma vê uma lata de cerveja forte e barata aberta sobre a
penteadeira. “Beber — eis uma boa ideia.” Sente vontade de se embebedar o
mais rápido possível. Por que não? Parece funcionar com todo mundo. Animada com
o projeto, vai até a cozinha para dar a partida.
Ian vai atrás.
— Então, onde você estava?
— Eu já falei. Na escola, ensaiando.
— E o que você estava ensaiando?
— Bugsy Malone. É uma grande comédia. Por quê, quer alguns
ingressos?
— Não, obrigado.
— Tem armas à beça.
— Imagino que estava com alguém.
— Ah, não, por favor... lá vamos nós outra vez. — Abre a
geladeira. Meia garrafa de vinho, mas nesses momentos só destilados funcionam.
— Ian, por que essa obsessão pelo fato de eu estar com alguém? Por que
não pensa simplesmente que eu e você não somos a pessoa certa um para o outro?
— Com um puxão forte, consegue abrir o congelador empedrado. O gelo se espalha
no chão.
— Mas nós somos a pessoa certa um para o outro!
— Tudo bem, se você pensa assim, vamos voltar a ficar juntos! —
Atrás de umas velhas panquecas de carne congeladas ela encontra uma garrafa de
vodca. — Maravilha! — Empurra as panquecas para Ian. — Olha... pode ficar com
isso. Faz de conta que estou pagando a sua pensão alimentícia. — Bate a porta
da geladeira com força e sai em busca de um copo. — De qualquer forma, e se eu estivesse
com alguém, Ian? E daí? Nós terminamos, lembra?
— Faz sentido, faz sentido. Então, quem é ele?
Emma despeja a vodca no copo, cinco centímetros.
— Quem é quem?
— O seu novo namorado? Vai, pode contar, eu não me importo
— abre um esgar. — Afinal, nós ainda somos amigos.
Emma dá um gole e inclina-se para a frente, cotovelos apoiados no
balcão, as palmas das mãos apertando os olhos e sentindo o líquido gelado
descer pela garganta. Passa-se um tempo.
— É o senhor Godalming. O diretor. Nós estamos tendo um caso há
nove meses, cheio de idas e vindas, mas acho que é mais uma questão de sexo.
Para ser sincera, a coisa toda é meio degradante para nós dois. Eu me sinto um
pouco envergonhada. Um pouco triste. Mas, como costumo dizer, pelo menos não há
filhos envolvidos. Pronto... — ela fala dentro do copo. — Agora você já sabe.
A cozinha fica em silêncio. Até que afinal...
— Você está brincando comigo.
— Olhe pela janela, dê uma olhada, veja por si mesmo. Ele está
esperando no carro. Um Sierra azul-marinho...
Ian dá uma fungada, incrédulo.
— Porra, isso não tem graça nenhuma, Emma.
Emma larga o copo vazio no balcão e solta o ar devagar.
— Não, eu sei que não tem. De forma alguma essa situação poderia
ser definida como engraçada. — Vira-se e olha para ele. — Eu já disse, Ian, eu
não estou saindo com ninguém. Não estou apaixonada por ninguém nem quero me
apaixonar. Só quero que me deixe em paz...
— Eu tenho uma teoria! — diz Ian, orgulhoso.
— Que teoria?
— Eu sei quem é ele.
Emma suspira.
— Certo, quem é ele, Sherlock?
— Dexter! — responde, triunfante.
— Ah, pelo amor de Deus... — Bebe o resto de vodca do copo.
— Eu estou certo, não estou?
Emma dá uma risada amarga.
— Meu Deus, antes estivesse...
— O que você quer dizer com isso?
— Nada, Ian. Como você sabe muito bem, eu não falo com Dexter há
meses...
— Isso é o que você diz!
— Você está sendo ridículo, Ian. O que você acha, que estamos
tendo um caso de amor secreto, sem ninguém saber?
— É o que as provas parecem sugerir.
— Provas? Que provas?
E pela primeira vez Ian parece um pouco encabulado.
— Os seus cadernos.
Emma larga o copo num local fora do alcance da mão, para não se
sentir tentada a atirá-lo em Ian.
— Você tem lido os meus cadernos?
— Dei uma olhada. Uma ou duas vezes. Ao longo desses anos.
— Seu canalha...
— As partes de poesia, aqueles dez dias mágicos na Grécia, todos
os anseios, aquele desejo...
— Como você teve coragem! Como teve o desplante de fazer
isso comigo!
— Você deixava esses cadernos por aí! O que queria?
— Queria que você confiasse em mim, e esperava que tivesse
um pouco de dignidade...
— De qualquer forma, eu nem precisava ler nada, era tão óbvio,
vocês dois...
— Minha paciência está se esgotando, Ian! Há meses você anda
gemendo e choramingando e ganindo por aqui como um cachorro abandonado. Da
próxima vez que aparecer aqui de repente e começar a fuçar as minhas gavetas,
eu juro que chamo a polícia, porra...
— Vai em frente! Vai, pode chamar a polícia! — e avança em direção
a ela, os braços estendidos abrangendo a pequena cozinha.
— Este apartamento também é meu, lembra?
— É mesmo? Como assim? Você nunca pagou as prestações! Fui eu que
paguei! Você nunca fez nada a não ser ficar por aí com pena de si mesmo...
— Isso não é verdade!
— E todo dinheiro que ganhava era gasto em vídeos estúpidos e em
refeições prontas para comer em casa...
— Eu colaborava! Quando podia...
— Bom, não era o suficiente! Meu Deus, como eu odeio esse
apartamento, odeio a minha vida aqui. Preciso sair desse lugar antes que eu
enlouqueça...
— Esse era o nosso lar! — protesta Ian, em desespero.
— Eu nunca fui feliz aqui, Ian. Como você não conseguia perceber?
Eu só acabei ficando... presa aqui, nós dois ficamos. Você deve saber disso.
Ian nunca a havia visto daquele jeito, nem jamais tinha ouvido
Emma falar assim. Chocado, os olhos arregalados como os de uma criança em
pânico, ele cambaleia na direção dela.
— Calma! — segura o braço dela. — Não diga essas coisas...
— Sai de perto de mim, Ian! É sério, Ian! Vai embora daqui! —
Agora eles estão gritando um com o outro e Emma pensa: “Meu Deus, nós nos
transformamos num desses casais malucos que as pessoas ouvem através das
paredes à noite. Em algum lugar alguém deve estar pensando: ‘Será que devo
chamar a polícia?’ Como a situação chegou a esse ponto?” — Vai embora! — grita
outra vez quando ele tenta abraçá-la, desesperado. — Devolva as minhas chaves e
saia daqui, eu nunca mais quero ver você...
E de repente os dois estão chorando, caídos no chão do estreito
corredor do apartamento que compraram juntos com tantas esperanças.
Ian cobre o rosto com as mãos e luta para falar entre soluços e
golfadas de ar.
— Eu não aguento mais. Por que isso está acontecendo comigo? Isso
é um inferno. Eu estou no inferno, Em!
— Eu sei. Desculpe. — Passa os braços ao redor do ombro dele.
— Por que você não consegue me amar? Por que não consegue se
apaixonar por mim? Você estava apaixonada antes, não estava? No começo.
— Claro que estava.
— Então por que não consegue me amar outra vez?
— Ah, Ian, não consigo. Eu tentei, mas não consigo. Sinto muito.
Sinto muito, mesmo.
Algum tempo depois eles ainda estão deitados no chão no mesmo
lugar, como se tivessem sido jogados pela maré. A cabeça de
Emma está no ombro dele, o braço apoiado no peito de Ian, sentindo
o seu cheiro, o aroma cálido e confortável com que tanto tinha se acostumado.
Afinal ele fala.
— Eu devia ir embora.
— Acho que devia mesmo.
Escondendo o rosto vermelho e inchado, Ian senta e aponta com a
cabeça para a bagunça de papéis, cadernos e fotografias no chão do quarto.
— Sabe o que me deixa mais triste?
— Diga.
— Que não temos mais fotos de nós. Quer dizer, juntos. Há milhares
de fotos suas com Dex, mas quase nenhuma de nós dois.
Pelo menos não recentes. É como se tivéssemos parado de tirar
fotos.
— É que não tínhamos uma câmera boa — diz Emma sem convicção, mas
ele prefere aceitar a desculpa.
— Desculpe por... sabe, aparecer desse jeito, remexer nas suas
coisas. Um comportamento totalmente inaceitável.
— Tudo bem. Só não faça mais isso.
— Alguns dos seus contos são muito bons, aliás.
— Obrigada. Mas eram coisas só minhas.
— Mas qual é o sentido disso? Você vai ter que mostrar a alguém um
dia. Vai ter que se mostrar.
— Sim, talvez eu faça isso. Um dia.
— Não os poemas. Não mostre os poemas, mas os contos. São bons.
Você escreve bem. É inteligente.
— Obrigada, Ian.
O rosto dele começa a ficar crispado.
— Não foi tão mau, foi? Morar aqui comigo?
— Foi ótimo. Só estou descontando em você, é isso.
— Você quer conversar a respeito?
— Não há nada para conversar.
— Certo.
— Certo.
Os dois sorriem um para o outro. Agora ele está perto da porta,
uma das mãos na maçaneta, ainda sem forças para sair.
— Só uma última coisa.
— Diga.
— Você não está saindo com ele, está? Com Dexter. Eu só estou
sendo paranoico.
Emma suspira e balança a cabeça.
— Ian, juro pela minha vida. Eu não estou saindo com o Dexter.
— Porque eu vi no jornal que ele se separou da namorada e pensei:
agora que estamos separados, e com ele sozinho de novo...
— Eu não vejo Dexter, sei lá, há séculos.
— Mas aconteceu alguma coisa enquanto estávamos juntos? Entre você
e Dexter, sem eu saber? Porque eu não suportaria a ideia...
— Ian... não aconteceu nada — responde, esperando que ele saia sem
fazer a pergunta seguinte.
— Mas você queria que acontecesse?
Será que queria? Sim, algumas vezes. Com frequência.
— Não. Não, não queria. Nós somos apenas amigos, só isso.
— Tudo bem. Ótimo. — Olha para ela, tentando sorrir. — Eu sinto
muito a sua falta, Em.
— Eu sei que sente.
Ian leva a mão ao estômago.
— E me sinto doente por isso.
— Vai passar.
— Será? Porque acho que estou ficando meio maluco.
— Eu sei. Mas não posso fazer nada por você, Ian.
— Você poderia... mudar de ideia.
— Não posso. Não vou. Sinto muito.
— Tudo bem. — Dá de ombros e sorri com os lábios contraídos, seu
sorriso de Stan Laurel. — Mesmo assim, perguntar não ofende, certo?
— Acho que não.
— Eu continuo achando você maravilhosa, sabia?
Emma sorri porque ele quer que ela sorria.
— Não, você que é maravilhoso, Ian.
— Bom, eu não vou ficar aqui discutindo isso! — Suspira, incapaz
de manter a conversa, e caminha até a porta. — Então tá.
Mande lembranças aos seus pais. A gente se vê por aí.
— A gente se vê.
— Tchau.
— Tchau.
Ian vira-se e abre a porta com um puxão, chutando o batente de
forma a dar a impressão de ter batido o rosto. Emma ri por obrigação, ele
respira fundo e vai embora. Ela fica no chão por mais um minuto, depois se
levanta de repente e, com uma renovada determinação, pega as chaves e sai do
apartamento.
Sons de uma noite de verão, gritos e ruídos ecoando dos edifícios,
algumas bandeiras de São Jorge ainda penduradas. Emma atravessa o pátio na
frente do prédio. Bem que ela poderia ter um círculo de amigos interessantes
para ajudar numa situação dessas.
Poderia estar recostada num sofá enorme com umas seis ou sete
pessoas legais e divertidas, afinal não era isso a vida na cidade? Mas eles
moram a duas horas de distância, ou estão com as famílias ou namorados; ainda
bem que, na ausência de grandes amigos, ela pode contar com uma loja de bebidas
chamada Booze’R’Us, um nome confuso e deprimente.
Garotos mal-encarados fazem uma ronda preguiçosa perto da entrada,
mas ela não tem medo e passa bem no meio deles, sem olhar de lado. Dentro da loja,
escolhe a garrafa de vinho menos duvidosa que encontra e entra na fila. O homem
à sua frente tem uma teia de aranha tatuada no rosto, e, enquanto ele conta
seus trocados para comprar dois litros de sidra forte, Emma vê uma garrafa de
champanhe trancada num armário de vidro. Empoeirada, uma relíquia de um
inimaginável e suntuoso passado.
— Eu quero esse champanhe também, por favor — diz. — O balconista
olha com desconfiança, mas é claro que ela tem dinheiro suficiente, dobrado na
mão fechada.
— Uma comemoração, é?
— Exatamente. Grande comemoração, grande. — Depois, num suspiro: —
E um maço de Marlboro também.
Com as garrafas balançando numa frágil sacola de plástico apoiada
no quadril, Emma sai da loja enfiando um cigarro na boca como se fosse um
antídoto contra alguma coisa. Logo em seguida ouve uma voz.
— Professora?
Olha em volta, com uma expressão de culpa.
— Professora? Aqui!
Caminhando a largos passos em sua direção vem se aproximando Sonya
Richards, sua protegida, o seu projeto. A garotinha magricela de cabelos
cacheados que fez o papel do Raposa Esperta se transformou, Sonya está
surpreendente: alta, cabelo penteado para trás, autoconfiante. Emma tem uma
clara noção de como está sendo vista por Sonya: cabisbaixa e com os olhos
vermelhos, cigarro na boca, na porta da Booze’R’Us. Um modelo, uma inspiração.
Numa reação absurda, esconde o cigarro aceso atrás das costas.
— Como vai, professora? — De repente Sonya parece pouco à vontade,
os olhos revirando de um lado para o outro, como se se arrependesse daquela
abordagem.
— Estou ótima! Ótima? E você, Sonya?
— Tudo bem, professora.
— Como vão os estudos? Tudo bem?
— Tudo bem, tudo bem.
— Você se forma no ano que vem, certo?
— Isso mesmo. — Sonya lança olhares furtivos para a sacola
plástica tilintando ao lado de Emma, a nuvem de fumaça sinuosa subindo pelas
costas.
— Universidade no ano que vem?
— Em Nottingham, espero. Se eu conseguir boas notas.
— Vai conseguir. Vai conseguir.
— Graças a você — diz Sonya, sem muita convicção.
Faz-se um silêncio. Em desespero, Emma segura as garrafas em uma
das mãos, o maço de cigarro na outra e dá uma sacudidela.
— MINHA COMPRA SEMANAL!
Sonya parece confusa.
— Bom, é melhor eu ir andando.
— Certo, Sonya, foi muito bom ver você. Sonya? Boa sorte, tá? Boa
sorte mesmo. — Mas Sonya já está se afastando, sem olhar para trás, enquanto
Emma, uma daquelas professoras carpe diem, fica parada no meio da rua,
olhando.
Mais tarde naquela mesma noite, acontece uma coisa estranha. Meio
adormecida, deitada no sofá com a TV ligada e uma garrafa vazia no chão, Emma é
despertada pela voz de Dexter Mayhew. Não entende bem o que ele está dizendo —
algo sobre atiradores em primeira pessoa e opções para diversos jogadores e
ação ininterrupta. Confusa e apreensiva, faz força para abrir os olhos, e
Dexter está bem à sua frente.
Emma se levanta e sorri. Já viu aquele programa antes. Game On é
um programa de TV que vai ao ar tarde da noite, com as notícias do dia e as
novidades do mundo dos jogos de computador. O cenário é uma masmorra iluminada
de vermelho feita de rochas de isopor, como se o ambiente dos jogos de
computador fosse uma espécie de purgatório. Jogadores pálidos sentam-se
curvados diante de uma tela gigantesca enquanto Dexter Mayhew os incentiva a
apertar os botões mais depressa, mais depressa, fogo, fogo.
Os jogos, ou torneios, são intercalados por resenhas sérias
em que Dexter e uma mulher compenetrada de cabelos alaranjados discutem os
últimos lançamentos da semana. Talvez seja a minúscula televisão de Emma, mas
Dexter está parecendo um pouco balofo nos últimos tempos, meio velho. Deve ser
a tela pequena, mas está faltando alguma coisa. A ginga de que ela se lembra
tão bem não existe mais. Agora está falando sobre o Duke Nukem 3D e
parece inseguro, até um pouco envergonhado. Mesmo assim,
Emma sente uma grande onda de afeto por Dexter Mayhew. Em oito
anos, não se passou um dia sem que pensasse nele. Ela sente saudade e quer
Dexter de volta. “Eu quero meu melhor amigo de volta, porque sem ele nada é bom
e nada está certo. Vou ligar para ele”, pensa antes de pegar no sono.
“Amanhã. Logo cedo, eu ligo para ele.”
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