Capítulo 11
Celaena ainda se sentia como se mal tivesse pregado os olhos
quando a mão de alguém a agarrou-lhe a lateral do corpo. Ela resmungou e se
encolheu quando as cortinas foram abertas para permitir a entrada do sol da
manhã.
– Acorde. – Não era surpresa que fosse Chaol.
O corpo da garota deslizou novamente para baixo do cobertor, e ela
cobriu a cabeça, mas o capitão segurou as roupas de cama e atirou-as ao chão. A
camisola de Celaena estava enroscada nas coxas. A assassina estremeceu.
– Está frio – gemeu ela, apertando os joelhos contra o corpo.
Pouco importava se restassem apenas alguns meses para vencer os outros
campeões, ela precisava dormir. Teria sido ótimo se o príncipe herdeiro
a tivesse arrancado de Endovier mais cedo; pelo menos ela teria algum tempo
para recuperar as forças.
Aliás, há quanto tempo ele sabia da competição?
– Levante-se. – Chaol arrancou os travesseiros de debaixo da
cabeça de Celaena. – Você está me fazendo perder tempo. – Se o capitão havia
notado o quanto do corpo de Celaena estava à mostra, não demonstrou. Celaena,
resmungando, se arrastou até a beirada da cama e pendurou uma das mãos para
tocar o chão.
– Meus chinelos – balbuciou ela. – O chão parece gelo.
Chaol resmungou, mas a assassina o ignorou enquanto se colocava de
pé. Ela cambaleou e se arrastou até a sala de jantar, onde um lauto café da
manhã aguardava sobre a mesa. O capitão fez um gesto com o queixo na direção da
comida.
– Coma. A competição começa em uma hora.
O que quer que tenha sentido, Celaena escondeu dele, deu um
suspiro ríspido e exagerado e se jogou na cadeira mais próxima com a sutileza
de uma fera gigantesca. Seus olhos percorreram a mesa. Outra vez, nenhuma faca.
Com um garfo, serviu-se de um pedaço de salsicha.
Da porta, Chaol perguntou:
– Por que está tão cansada, se é que posso perguntar?
Celaena engoliu o restante do suco de romã e limpou os lábios com
um guardanapo.
– Fiquei acordada até as 4 horas, lendo. Escrevi uma carta para o
seu pequeno principezinho, pedindo permissão para pegar livros emprestados da biblioteca.
Ele permitiu e mandou sete livros da biblioteca pessoal dele com uma
ordem para que eu os lesse.
Chaol meneou a cabeça, sem acreditar.
– Você não deve escrever para o príncipe herdeiro.
A resposta foi um sorriso afetado, seguido de uma garfada de
presunto.
– Ele poderia ter ignorado a carta, se quisesse. Além disso, eu
sou a campeã dele. Nem todo mundo sente a obrigação de me tratar tão mal
quanto você.
– Você é uma assassina.
– Se eu disser que sou ladra de joias, você me tratará com mais
cortesia? – Antes que Chaol pudesse responder, Celaena fez um gesto com a mão.
– Melhor deixar pra lá. – A campeã enfiou uma colherada de mingau de aveia na
boca, viu que estava insípido e jogou quatro porções de açúcar mascavo, sem
cerimônia, à gororoba cinzenta.
Será que os competidores eram mesmo oponentes à altura? Antes de começar
a se preocupar, Celaena examinou os trajes negros que cobriam o capitão.
– Você nunca usa roupas normais?
– Rápido. – Foi tudo o que ele disse. A competição esperava.
De súbito, Celaena perdeu a fome e empurrou a tigela de mingau
para o outro lado da mesa.
– Então vou me vestir. – Ela se virou para chamar Philippa, mas se
deteve. – Que tipo de atividades devo esperar para o torneio de hoje? Para me
vestir de acordo, é claro.
– Não sei. Eles não dão nenhum detalhe antes de chegarmos.
O capitão se levantou tamborilando no cabo da espada e, enquanto
Celaena voltava para o quarto, chamou uma serva. Atrás da campeã, Chaol falou
com a criada.
– Vista-a com calças e uma camisa, algo solto. Nada empetecado ou
curto demais. E faça-a levar um manto.
A garota desapareceu para dentro do quarto. Celaena a seguiu e
despiu-se desembaraçadamente, divertindo-se com as bochechas enrubescidas de
Chaol ao vê-la em roupas de baixo antes de dar a volta e sumir.
Alguns minutos depois, Celaena corria pelo saguão atrás dele com
uma carranca.
– Eu estou ridícula! Estas calças são absurdas, e esta camisa é
péssima.
– Pare de choramingar. Ninguém dá a mínima para as suas roupas. –
Chaol abriu a porta do corredor bruscamente; os guardas do outro lado imediatamente
entraram em formação. – Além disso, você pode tirá-las na caserna. Tenho
certeza de que todos adorarão vê-la em trajes íntimos.
Celaena soltou um palavrão cabeludo por baixo da respiração
ofegante, cobriu-se o melhor que pôde com o manto verde e seguiu Chaol.
O capitão da guarda atravessou a passos largos o castelo, o qual
ainda estava gélido com a bruma da manhã, e os dois logo entraram no quartel.
Guardas em vários tipos de armaduras os saudaram. Por uma porta aberta era
possível ver um grande refeitório, onde muitos soldados faziam o desjejum.
Chaol enfim se deteve. O enorme salão retangular no qual entraram
era do tamanho do salão de baile. Pilares alinhados pelo chão quadriculado em
preto e branco sustentavam um mezanino, e imensas portas de vidro, que tomavam
uma parede inteira, permaneciam abertas, permitindo que uma brisa suave vinda
do jardim agitasse o cortinado translúcido. A maioria dos outros 23 campeões já
estava na sala, aquecendo-se com o que só poderiam ser os treinadores dos patrocinadores.
Todo o ambiente era atentamente observado por guardas vigilantes. Ainda assim,
ninguém se incomodava em olhar para Celaena, exceto um belo jovem de olhos
cinzentos e feições agradáveis que sorriu com o canto da boca antes de voltar a
atirar flechas num alvo que, mesmo do outro lado da sala, era atingido com uma
precisão enervante. Erguendo o queixo, Celaena começou a averiguar uma estante
de armas.
– Você espera que eu use uma clava uma hora depois de o sol
nascer?
Seis guardas surgiram na porta atrás deles, unindo-se às dezenas
que já se encontravam na câmara com as espadas em punho.
– Se tentar algo idiota – disse Chaol, bem baixinho –, eles
estarão aqui.
– Sou só uma ladra de joias, lembra-se?
Celaena deu um passo e se aproximou do cavalete. Decisão muito,
muito idiota a de deixar todas aquelas armas ali expostas. Espadas, adagas para
quebrar espadas, machados, arcos, piques, facas de caça, clavas, lanças, adagas
de arremesso, bastões de madeira… Embora em geral preferisse a furtividade das adagas,
Celaena conhecia todas as armas ali. Seus olhos percorreram a sala de treinamento,
e ela tentou esconder uma careta. Todos os competidores também pareciam
conhecê-las, ao que parecia. Enquanto estudava os demais, Celaena percebeu um
movimento no canto do olho.
Cain irrompeu na sala, flanqueado por dois guardas e um homem
corpulento coberto de cicatrizes, provavelmente o treinador. Quando o
competidor se virou e começou a avançar na direção de Celaena, abrindo os
lábios num sorriso largo, a jovem se endireitou.
– Bom dia – disse Cain, com a voz gutural e áspera, serpenteando
os olhos negros pelo corpo de Celaena antes de encará-la de novo. – Achei que
você já estaria correndo para casa a esta altura.
A resposta veio acompanhada de um sorriso discreto.
– A diversão está apenas começando, não é?
Teria sido tão, tão fácil. Tão fácil saltar girando o corpo
e agarrá-lo pelo pescoço, então atirá-lo de cara no chão. Ela nem percebeu que
tremia de raiva até que Chaol entrou em seu campo de visão e disse com firmeza,
mas suavemente:
– Guarde para a competição.
– Vou acabar com a raça dele – falava Celaena, respirando
asperamente.
– Não, não vai. Se quiser calá-lo, vença-o. Ele é só um bruto do
exército do rei, não gaste sua força ódio.
A discussão fez Celaena revirar os olhos.
– Muito obrigada por interferir a meu favor.
– Você não precisa que eu a salve.
– Ainda assim teria sido legal da sua parte.
– Você pode lutar as próprias batalhas. – Chaol apontou com a
espada para a estante. – Escolha uma. – Os olhos dele brilhavam diante do
desafio enquanto a garota desamarrava o manto verde e atirava-o para trás. –
Vamos ver se sua espada é tão habilidosa quanto sua língua.
Celaena calaria a grande boca de Cain... em um túmulo sem lápide
por toda a eternidade. Mas não agora… Não, agora era hora de fazer Chaol
engolir as próprias palavras.
Todas as armas tinham um acabamento de altíssima qualidade, e o
metal de que eram feitas cintilava à luz do sol. Celaena as eliminava uma a
uma, avaliando cada arma de acordo com o dano que causaria ao rosto do capitão.
Com o coração acelerado, o dedo de Celaena corria lentamente pelas
lâminas e manoplas. Ela se viu dividida entre as facas de caça e uma rapieira
com guardamão ornada – com ela seria possível arrancar um coração de uma
distância segura.
A espada assobiou quando foi puxada do suporte e parou em riste na
mão de Celaena. Era um arma excelente: firme, suave, leve. A assassina não
tinha permissão nem para usar facas de pão, como podiam permitir que pusesse as
mãos naquilo?
Por que não cansá-lo um pouco antes?
Chaol atirou a capa sobre a de Celaena, flexionou os músculos por
trás da malha negra da camisa e sacou a espada.
– Em guarda! – O capitão assumiu uma posição defensiva, e a garota
o encarou entediada.
Quem você pensa que é? Que tipo de gente diz “Em guarda”?
– Você não vai nem me mostrar o básico antes? – perguntou
ela, baixo o suficiente para que apenas Chaol ouvisse, segurando a espada com
displicência. Os dedos de Celaena percorreram o cabo e contraíram-se na
superfície fria. – Eu fiquei um ano inteiro em Endovier, entende. Poderia muito
bem ter esquecido tudo.
– Pela quantidade de mortes que houve na sua seção das minas,
duvido muito que tenha esquecido algo.
– Aquelas foram com uma picareta – respondeu ela, com um sorriso selvagem
se alargando lentamente. – Tudo o que precisei fazer foi abrir a cabeça de
alguém ou perfurar um estômago com a arma. – Felizmente nenhum dos outros
campeões prestava atenção aos dois. – Se considera essa coisa sem graça equivalente
à esgrima… que tipo de luta você pratica, capitão Westfall? – Celaena
levou a mão livre ao peito e fechou os olhos, enfatizando a mensagem.
O capitão da Guarda avançou rosnando.
Como já esperava por isso, os olhos de Celaena se abriram assim
que as botas dele roçaram no chão. Com um giro do braço, ela posicionou a
espada para bloquear o ataque e preparou as pernas para o impacto quando as
laminas se chocassem. O ruído era estranho, quase mais doloroso do que o golpe,
mas Celaena nem pensou nisso quando o capitão investiu pela segunda vez e ela bloqueou
a arma dele com facilidade. Os braços de Celaena doeram ao serem acordados do
torpor, mas ela continuou a desviar e bloquear.
Um duelo de espadas é como uma dança – determinados passos devem
ser respeitados ou tudo desmorona. Depois de ouvir a batida, tudo voltava à
mente.
Os outros competidores desvaneceram em sombras e luz solar.
– Bom – disse o capitão entredentes, bloqueando um ataque que o
forçou a assumir uma posição defensiva. As pernas de Celaena latejavam. – Muito
bom – exclamou ele, com um suspiro. Chaol era muito bom, mais do que bom, na verdade.
Não que Celaena fosse dizer isso em voz alta, claro.
As duas espadas encontraram-se outra vez com um tinido, e os dois
forçaram as lâminas uma contra a outra. Ele era mais forte, e Celaena gemeu com
o esforço necessário para segurar a espada contra a de Chaol. Por mais forte
que fosse o capitão, no entanto, não era rápido o bastante.
Celaena recuou e fez uma finta, flexionando as pernas, os pés
presos ao chão com a graça de um pássaro. Desprevenido, o capitão só teve tempo
de desviar, o bloqueio foi inútil devido a sua altura.
Celaena impulsionou o corpo para a frente, desceu o braço
repetidas vezes, girando-o e virando-o; ela amava a dor sutil no ombro conforme
a lâmina se chocava contra a de Chaol. Celaena se movia rapidamente, como uma
dançarina em um ritual, como uma serpente do deserto Vermelho, como a água que
desce a encosta de uma montanha.
O capitão se manteve de pé, e Celaena permitiu que ele avançasse
antes de retomar a posição. Ele tentou pegá-la desprevenida com um golpe no
rosto, mas a fúria da jovem despertou e ela ergueu o cotovelo e desviou,
acertando o punho do capitão e obrigando-o a baixá-lo.
– Algo que deve se lembrar quando lutar comigo, Sardothien – disse
Chaol, ofegante. A luz do sol atingia os olhos castanhos-dourados dele.
– Hmm? – murmurou Celaena, esforçando-se para defender o último
ataque.
– Eu nunca perco. – O capitão abriu um sorriso largo, e, antes que
ela desvendasse o que ele dissera, algo lhe deu uma rasteira nos pés e… Celaena
teve a sensação nauseante de queda. Ela arquejou quando as costas colidiram com
o mármore e a rapieira voou de suas mãos. Chaol apontou a espada para o peito
de Celaena.
– Venci – suspirou ele.
A jovem apoiou o corpo sobre os cotovelos.
– Você teve de apelar para uma rasteira. Isso dificilmente é
vencer.
– Não sou eu quem está com uma espada apontada para o coração.
O ar estava saturado com o ruído de armas se chocando e
respirações ofegantes. Celaena piscou e virou-se para os outros campeões, todos
envolvidos em combates. Todos, claro, exceto Cain, que abriu um sorriso que fez
com que
Celaena trincasse os dentes.
– Você tem a habilidade – disse Chaol –, mas alguns dos seus
movimentos ainda são indisciplinados.
Os olhos dela pararam de encarar Cain e miraram o treinador.
– Isso nunca me impediu de matar – disparou Celaena.
Chaol gargalhou diante da agitação dela e apontou a espada para a
estante uma vez mais.
– Escolha outra. Algo diferente. E interessante também. Algo que vá
me fazer suar, por favor.
– Você estará suando quando eu o esfolar vivo e esmagar seus olhos
com os pés – murmurou ela, empunhando a rapieira outra vez.
– Esse é o espírito.
Celaena praticamente jogou a espada de volta na estante e sacou as
facas de caça resoluta.
Minhas velhas amigas.
Um
sorriso sinistro abriu-se em seu rosto.
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