Capítulo 15
Embora jamais fosse admitir, Celaena não sabia o que esperar da
primeira prova. Com todo o treinamento nos últimos cinco dias, a prática com
diversas armas e técnicas, seu corpo doía. Isso era outra coisa que a campeã
também não admitiria, mesmo que mal conseguisse esconder a dor latejante.
Quando entrou com Chaol no salão de treinamento pela manhã, Celaena observou os
outros competidores e lembrou-se de que não era a única que não fazia ideia do
que vinha pela frente. Uma imensa cortina negra fora estendida no meio da sala,
impedindo a visão da outra metade. O que quer que houvesse do outro lado decidiria
o destino de um deles.
A balbúrdia de sempre dera lugar ao chiado uniforme dos sussurros
– e ao invés de espalhados, os competidores permaneceram perto dos treinadores.
Celaena manteve-se junto de Chaol, como fazia todos os dias. A presença dos patrocinadores
no mezanino acima do chão quadriculado era incomum. Um aperto fechou-lhe a
garganta quando o olhar da campeã cruzou com o do príncipe herdeiro. Além do
episódio dos livros, Celaena não o vira nem conversara com ele desde a reunião
com o rei. O príncipe deixou escapar um sorriso, os olhos azuis como safiras
brilhando sob o sol matutino. Ela respondeu com um sorriso discreto e virou-se
rapidamente.
Brullo postava-se ao pé da cortina, a mão coberta de cicatrizes
pousada sobre o cabo da espada. Celaena estudava a cena. Alguém se posicionou
ao seu lado.
Ela sabia quem era antes de ouvir a voz.
– Um pouco dramático, não acha?
Celaena olhou para Nox de soslaio. Chaol se retesou, e ela sentiu
o capitão perscrutar o ladrão, com certeza imaginando se os dois formulavam um
plano de fuga que envolvia a morte de todos os integrantes da família real.
– Depois de cinco dias de treino descerebrado – respondeu a
assassina em voz baixa, ciente de que pouca gente falava no salão naquele
momento –, um pouco de emoção me deixa contente.
Nox abafou uma gargalhada.
– O que acha que vai ser?
Celaena deu de ombros, mantendo a atenção fixa na cortina. Mais e
mais competidores chegavam e logo o relógio marcaria 9 horas – o horário em que
teria início a prova.
– Tomara que seja uma matilha de lobos devoradores de carne que
teremos de enfrentar com as mãos. – Celaena se virou totalmente para Nox e
exibiu um sorriso torto. – Não seria divertido?
Chaol pigarreou com sutileza. Não era hora de conversar. Celaena
enfiou as mãos nos bolsos das calças pretas.
– Boa sorte – disse ela a Nox antes de caminhar para a cortina
seguida por Chaol.
Quando já haviam se afastado, Celaena sussurrou:
– Nem ideia do que está atrás da cortina?
Chaol balançou a cabeça.
Ela ajustou o espesso cinto de couro que trazia à cintura. Um cinto
desenhado para suportar o peso de várias armas. A leveza agora lembrava Celaena
do que perdera – e do que tinha a ganhar. A morte do Devorador de Olhos no dia
anterior fora uma boa coisa em pelo menos um sentido: era um competidor a
menos.
Celaena ergueu o rosto na direção de Dorian. Ele provavelmente
conseguia ver o que estava atrás da cortina. Por que não ajudar a trapacear um
pouco? Os olhos dela percorreram os outros patrocinadores – um grupo de nobres
bem vestidos –, e Celaena mordeu os lábios quando viu Perrington. O homem
sorria maliciosamente enquanto observava Cain, o qual alongava os braços musculosos.
Será que Perrington lhe contara o que havia além da cortina?
Brullo pigarreou.
– Atenção agora! – conclamou. Todos os competidores
tentaram parecer calmos quando ele se dirigiu ao centro da cortina. – A
primeira prova chegou. – Brullo tinha um sorriso largo no rosto, como se o
segredo por trás da cortina fosse atormentá-los profundamente. – Por ordem de
Sua Majestade, um de vocês será eliminado hoje; um de vocês será considerado indigno.
Ande logo, pensou Celaena, trincando os dentes. Como se
tivesse lido seus pensamentos, Brullo estalou os dedos, e um guarda de pé junto
à parede puxou a cortina. Centímetro a centímetro, o tecido deslizou até que...
Celaena comprimiu os lábios para não rir. Arco e flecha? Um
concurso de arco e flecha?
– As regras são simples – declarou Brullo. Atrás dele, cinco alvos
estavam espalhados pelo salão. – Vocês terão cinco tiros, um por alvo. Quem
tiver a pior mira, volta para casa.
Alguns competidores começaram a balbuciar, mas Celaena se continha
para evitar um sorriso. Infelizmente, Cain nem tentou esconder o sorriso
triunfante. Por que ele não tinha sido encontrado morto?
– Vocês irão um por vez – disse Brullo, e atrás dele, dois
soldados surgiram empurrando um carrinho repleto de arcos e aljavas carregadas
de flechas. – Formem uma fila em frente à mesa para determinar a ordem. A prova
começa agora.
Celaena esperava que todos corressem até a longa mesa abarrotada
de arcos e flechas idênticos, mas, aparentemente, nenhum dos outros 21
competidores tinha pressa de voltar para casa. Celaena fez menção de entrar na
fila, mas Chaol agarrou seu ombro.
– Não se exiba – advertiu ele.
A campeã sorriu com doçura e afastou a mão que a segurava.
– Vou tentar – ronronou ela, juntando-se à fila.
***
Dar-lhes flechas era um grande voto de confiança, mesmo que as
pontas estivessem embotadas. Uma ponta cega não impediria uma das setas de atravessar
a garganta de Perrington – ou de Dorian, se assim quisessem.
Era uma perspectiva interessante, mas Celaena manteve a atenção
nos competidores. Com 22 campeões e cinco disparos para cada um, seria um teste
terrivelmente longo. Graças a Chaol, ela ocupava o fim da fila – não o último lugar,
mas apenas três à frente do último. Para trás o bastante para que assistisse a
todos antes da própria vez, inclusive Cain.
Os outros competidores se saíram suficientemente bem. Os imensos
alvos circulares eram compostos de cinco anéis coloridos – o amarelo marcava o central,
com apenas um pontinho preto indicando o centro do alvo. Quanto mais distante,
menor ficava o alvo e, como era uma sala imensa, o último estava a uns bons 65
metros de distância.
Celaena correu os dedos ao longo da suave curva do arco de teixo.
O arco fora uma das primeiras habilidades que Arobynn lhe ensinara – uma obrigatoriedade
no treinamento de qualquer um em seu ramo. Dois dos assassinos provaram isso
com disparos fáceis, habilidosos. Embora não tivessem atingindo o centro do
alvo e os tiros tivessem perdido qualidade conforme os alvos ficavam mais
distantes, quem os treinara sabia o que estava fazendo.
Pelor, o assassino desengonçado, ainda não estava forte o
suficiente para manusear um arco longo e mal efetuou disparos. Quando terminou,
com os olhos repletos de tristeza, os campeões soltaram risinhos, e Cain
gargalhou ruidosamente.
A expressão de Brullo era sombria.
– Alguém o ensinou a usar um arco, garoto?
Pelor ergueu a cabeça, fitando o mestre de armas com uma
insolência surpreendente.
– Sou melhor com venenos.
– Venenos! – Brullo ergueu as mãos. – O rei quer um campeão, e
você não conseguiria acertar nem uma vaca no pasto! – O mestre de armas fez um
gesto para que Pelor se fosse. Os outros campeões riram de novo, e tudo o que Celaena
queria era rir com eles. Mas Pelor suspirou profundamente e relaxou os ombros,
então se juntou aos outros competidores que haviam terminado. Se ele fosse
eliminado, para onde o levariam? Para a prisão? Para algum outro buraco infernal?
Apesar de tudo, Celaena sentia muito pelo garoto. Suas tentativas não foram tão
ruins.
Foi Nox, na verdade, quem mais a surpreendeu – três flechas
cravadas com precisão no centro dos alvos mais próximos, e as duas últimas
junto à borda do círculo central. Talvez ela devesse considerar uma
aliança com ele. Pela forma como os outros competidores o encaravam enquanto
Nox rumava para o fundo da sala, Celaena soube que pensavam a mesma coisa.
Cova, o assassino repulsivo, saiu-se bem, imaginou ela. Quatro
flechas no centro e o último tiro na borda do anel central do alvo. Então foi a
vez de Cain caminhar até a linha branca pintada no fundo da sala, sacar o arco
de teixo, exibindo o anel negro e reluzente no dedo, e disparar.
Outra vez, e outra, e mais uma, num intervalo de apenas alguns
segundos. Quando o choque da última flecha no suporte de madeira parou de ecoar
pela câmara em silêncio, Celaena sentiu o estômago revirar. Cinco flechas no
centro do alvo.
O único consolo era que nenhum dos outros competidores atingira o
ponto negro – o centro perfeito. Só um passou bem perto.
Por alguma razão, a fila começou a se mover rapidamente. Tudo em
que Celaena conseguia pensar era em Cain – Cain sendo aplaudido por Perrington,
Cain recebendo tapinhas nas costas de Brullo, Cain recebendo toda a glória e atenção.
Não porque era uma montanha de músculos, mas porque de fato merecera.
Subitamente, Celaena viu-se diante da linha branca, estudando o
amplo salão à frente. Alguns dos homens riram – em silêncio –, e ela manteve a
cabeça erguida enquanto alcançava uma flecha no ombro e preparava o arco.
O grupo treinara arco e flecha alguns dias antes, e ela se saíra
muito bem. Tão bem quanto era possível sem chamar atenção. Celaena havia matado
homens de distâncias maiores que o alvo mais distante. Tiros perfeitos, direto na
garganta.
A jovem tentava engolir, mas sua boca estava seca.
Sou Celaena Sardothien, Assassina de Adarlan. Se estes homens
soubessem quem sou, parariam de rir. Sou Celaena Sardothien. Vencerei. Não
sentirei medo.
Celaena puxou a corda do arco e sentiu os músculos do braço
arderem com o esforço. Ela ignorou todos os ruídos, os movimentos, tudo o que
não fosse o som da própria respiração, concentrando-se exclusivamente no
primeiro alvo. A campeã inspirou suavemente. Ao soltar o ar, soltou a flecha.
No centro do alvo.
O nó em seu estômago afrouxou, e Celaena exalou o ar pelas
narinas. Não fora um tiro perfeito, mas ela não queria que fosse.
Alguns homens pararam de rir, mas Celaena sequer tomou
conhecimento da presença deles quando preparou outra flecha, disparando-a no
segundo alvo. A jovem mirou no limite do anel interior e o acertou com precisão
letal. Se quisesse, poderia ter feito um círculo de flechas. E se houvesse
munição.
No terceiro alvo, novamente o centro – mirando a linha divisória,
mas atingindo a área interna. Celaena fez o mesmo com o quarto alvo, mais direcionou
a seta para a outra extremidade do anel interior. Onde a assassinava mirava, a
flecha atingia.
Quando esticou o braço para armar a última flecha, Celaena ouviu
um dos competidores, um mercenário ruivo chamado Renault, rir com escárnio. Ela
segurou o arco com firmeza o suficiente para que a madeira gemesse, então preparou
o último disparo.
O alvo era pouco mais que um borrão colorido. Àquela distância, o
centro não passava de um grão de areia na vastidão da sala. Celaena mal
conseguia distinguir o pequeno ponto que marcava o centro – o ponto que ninguém
conseguira acertar, nem mesmo Cain. O braço da assassina tremeu quando ela se esforçou
para retesar um pouco mais a corda. Ela disparou.
A flecha pousou exatamente no centro do alvo, fazendo sumir o
ponto negro.
Todas as risadas cessaram.
Ninguém dirigiu-lhe a palavra, quando Celaena se afastou da linha
branca e atirou o arco de volta no carrinho. Chaol fez uma expressão de
irritação – ela obviamente não fora tão discreta quando deveria –, mas
Dorian sorria. Celaena suspirou e reuniu-se com os campeões que esperavam o fim
da competição, mantendo-se afastada de todos.
Quando os resultados foram comparados pelo próprio Brullo, um dos soldados
do exército, e não o jovem Pelor, foi eliminado. Mesmo passando longe da
derrota, Celaena não aguentava – simplesmente não aguentava – o sentimento
de que, na verdade, não ganhara coisa alguma.
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