Capítulo 16

Embora tentasse controlar a respiração, Celaena ofegava, correndo ao lado de Chaol no parque de caça. A não ser pelo brilho de suor no rosto e a camisa um pouco úmida, ele não demonstrava cansaço.
Corriam na direção de uma colina, cujo cume ainda estava envolto na neblina matinal. As pernas de Celaena fraquejaram diante da subida, e ela sentiu o estômago subir-lhe à garganta. A jovem deu um suspiro alto para chamar a atenção de Chaol, parando para se apoiar em uma árvore.
Celaena estremeceu, agarrada à árvore, enquanto vomitava. Ela odiava as lágrimas mornas que desciam de seus olhos, mas não conseguia limpá-las enquanto vomitava mais uma vez. Chaol, ao lado, apenas observava. Celaena apoiou a testa no antebraço, acalmou a respiração, desejou que o corpo se tranquilizasse. Fazia três dias desde a primeira prova, o décimo dia desde a chegada em Forte da Fenda, e ela ainda estava completamente fora de forma. A próxima eliminação seria em quatro dias e apesar de o treinamento ter sido retomado da maneira costumeira, Celaena estava acordando mais cedo do que o normal. Não podia perder para Cain, nem para Renault, nem para nenhum dos outros.
– Acabou? – perguntou Chaol.
Ela levantou a cabeça e dirigiu-lhe um olhar cansado. Mas tudo começou a girar e Celaena teve um novo espasmo de vômito.
– Eu avisei para não comer nada antes de partirmos.
– Já parou de ser presunçoso?
– Já parou de colocar as tripas para fora?
– Por enquanto – disparou ela. – Da próxima vez, não vou ser tão educada, vou vomitar em cima de você.
– Só se conseguir me pegar – respondeu ele, com um sorrisinho.
A vontade de Celaena era arrancar aquele sorriso do rosto de Chaol a socos.
Mas ao dar um passo sentiu os joelhos tremendo e apoiou-se novamente na árvore, esperando por novos espasmos. De soslaio, viu que o capitão olhava para suas costas, visíveis por baixo da camisa branca molhada. Celaena endireitou o corpo.
– Está gostando de ver minhas cicatrizes?
Ele mordeu o lábio inferior.
– Quando as conseguiu?
Celaena sabia que Chaol se referia às três grandes linhas que lhe atravessavam as costas.
– Quando acha?
Ele não respondeu. Celaena olhou para as copas das árvores frondosas. A brisa da manhã fazia as folhas tremerem e arrancava algumas dos galhos nus aos quais se agarravam.
– Essas três eu recebi no meu primeiro dia em Endovier.
– O que fez para merecê-las?
– Merecê-las? – A assassina riu rispidamente. – Ninguém merece ser açoitado como um animal. – Chaol abriu a boca para falar algo, mas ela o interrompeu: – Assim que cheguei a Endovier, fui arrastada para o centro do acampamento e amarrada entre os postes de açoitamento. Vinte e uma chicotadas. – Celaena olhava para Chaol, mas sem vê-lo realmente. O céu cinzento transformara-se na desolação de Endovier, e o vento gemia como os suspiros dos escravos. – Isso ocorreu antes que eu fizesse contato com outros escravos. Passei a primeira noite sem saber se sobreviveria até a manhã, se as feridas nas costas infeccionariam, se sangraria até a morte sem nem ter ideia do que estava acontecendo.
– Ninguém ajudou você?
– Só pela manhã. Uma jovem me deu uma tigela de sálvia quando estávamos na fila do desjejum. Nem pude agradecer a ela. Mais tarde, no mesmo dia, três capatazes a estupraram e mataram. – Celaena fechou as mãos em punho enquanto seus olhos ardiam. – No dia em que perdi o controle, passei pela área das minas em que eles ficavam, para fazê-los pagar pelo que fizeram a ela. – A assassina sentiu algo gelado percorrer-lhe as veias. – Morreram rápido demais.
– Mas você era uma mulher em Endovier – disse Chaol. – Ninguém nunca... – E então Chaol parou, incapaz de dizer a palavra.
Celaena dirigiu-lhe um sorriso amargo.
– Tiveram medo de mim desde o princípio. Depois do dia em que quase toquei a muralha, ninguém ousou se aproximar. Mas se algum guarda tivesse tentado se aproximar... Bom, ele teria virado um exemplo para os outros de que eu poderia facilmente surtar de novo, se assim quisesse.
O vento ao redor deles se agitou, desprendendo fios de cabelo das tranças de Celaena. Ela não precisava dizer qual era a outra suspeita – de que talvez Arobynn tivesse subornado os guardas em Endovier para mantê-la protegida.
– Cada um faz o que pode para sobreviver.
Celaena não entendeu direito a suavidade do olhar que Chaol lhe dirigiu enquanto concordava com a cabeça. Depois de encará-lo mais uns segundos, ela disparou colina acima, onde os primeiros raios de sol já se insinuavam.

***

Na tarde seguinte os campeões estavam de pé formando um círculo em torno de Brullo, que lhes ensinava a respeito de diversos tipos de armas e outras bobagens que Celaena aprendera há anos e não precisava ouvir de novo. Ela já se perguntava se conseguiria dormir em pé ali quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento súbito nas portas da sacada. Virou-se no exato instante em que um dos maiores campeões, um dos soldados expulsos do exército, empurrou um guarda próximo, atirando-o ao chão. A cabeça do guarda estalou ao bater contra o piso de mármore, e ele ficou lá mesmo, desmaiado. Celaena não ousou se mexer, assim como os demais campeões, enquanto o homem corria em direção à porta a fim de atravessar os jardins e então escapar.
Mas Chaol e seus homens agiram tão rápido que o campeão em fuga teve a garganta atravessada por uma flecha antes mesmo de chegar à porta.
Fez-se silêncio e metade dos guardas, com as mãos nas espadas, cercou os campeões, enquanto os demais, Chaol inclusive, correram para o campeão morto e o guarda caído. Arcos gemeram quando os arqueiros no mezanino tensionaram as cordas. Celaena permaneceu imóvel, assim como Nox, que estava ao seu lado, também. Um movimento errado e um guarda assustadiço poderia matá-la.
Mesmo Cain evitava respirar ruidosamente.
Através da muralha de campeões, guardas e armas, Celaena conseguiu ver Chaol ajoelhando-se junto ao guarda desmaiado. Ninguém tocava no campeão morto, caído de bruços, o braço ainda esticado na direção da porta de vidro. Ele se chamava Sven, mas Celaena não sabia por que fora expulso do exército.
– Deuses acima – suspirou Nox, e tão baixinho que os lábios mal se mexeram. – Eles simplesmente... o mataram. Celaena pensou em mandá-lo calar a boca, mas mesmo isso era arriscado. Alguns dos campeões cochichavam entre si, mas ninguém ousava dar um passo sequer. – Sabia que falavam sério quando diziam que não nos deixariam ir embora, mas... – Nox falou um palavrão, e Celaena sentiu que ele a olhava de esguelha. – Meu patrocinador me garantiu imunidade. Ele me procurou e disse que eu não iria para a prisão se perdesse.
Celaena entendeu que Nox estava falando mais consigo mesmo, e, quando ela não o respondeu, ele parou de falar. Celaena não conseguia parar de olhar para o corpo do campeão.
Por que Sven resolvera arriscar tudo? E por que ali e naquela hora? Ainda faltavam três dias para a segunda prova; por que escolhera justo aquele momento? Quando perdera o controle em Endovier, Celaena não estava pensando em liberdade. Não, ela apenas escolhera o lugar e a hora e começara a atacar. Nunca tivera intenção de fugir.
A luz do Sol passava pelas portas e iluminava o sangue derramado do campeão como se fosse um vitral.
Talvez ele tivesse consciência de que suas chances eram nulas, mas avaliou que morrer daquele jeito era melhor do que voltar para sabe-se lá de onde tinha vindo. Se quisesse fugir mesmo, teria esperado anoitecer, quando estivesse sozinho, longe de todos da competição. Sven queria provar algo, compreendera Celaena, e só compreendera por causa daquele dia em que ficara a centímetros de tocar a muralha de Endovier.
Adarlan podia privá-los de liberdade, podia destruir-lhes as vidas, surrá-los, torturá-los e obrigá-los a participarem das disputas mais grotescas, mas, criminosos ou não, eram ainda humanos. Morrer, e não participar mais do jogo do rei, fora a única saída para ele.
Ainda olhando para o braço esticado do campeão, a mão apontada eternamente para um horizonte inalcançável, Celaena fez uma oração silenciosa pelo homem e desejou que ele ficasse bem.

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