Capítulo 2 – De Volta À Vida

Sábado, 15 de Julho de 1989

Wolverhampton e Roma

Vestiário feminino
Colégio de Stoke Park
Wolverhampton
15 de julho de 1989

Ciao, Bella!
Como estão as coisas? E como está Roma? A Cidade Eterna vai muito bem, mas estou aqui em Wolverhampton h dois dias e isso parec uma eternidade (embora eu deva admitir que a Pizza Hut daqui é excelente, excelente mesmo).
Desde a última vez que nos vimos resolvi aceitar aquele trabalho na Cooperativa de Teatro Sledgehammer qu mencionei, e nesses últimoquatro meses estive planejando, ensaiando e fazendo turnês com Carga cruel, espetácul patrocinado pelo Conselho das Artes e que fal sobre o mercado de escravos através de histórias, canções folclóricas e algumas mímicas bem chocantes. Estou anexando uma cópia malfeit de um folheto para você ver como se trata mesmo de coisa fina.
Carga cruel é uma peça do TE (Teatro na Educação, para sua informação) destinada a garotos de onze a treze anos com uma visa provocativa da escravidão como Coisa Ruim. Faço o papel de Lydia, a... bem... sim, na verdade é  PAPEL PRINCIPAL, a filha mimad e vaidosa do malvado senhor Obadiah Grimm (pelo nome já dá para perceber qu ele não é muito boa gente, não é?), e no momento mai intenso do espetáculo eu de repente percebo que todas as minhas coisas lindas, todos os meus vestidos (vestidos exclusivos) e joias (també exclusivas) foram comprados com o sangue de outros seres humanos como eu (snif, snif) e me sinto suja (olho para minhas mãos como s estivesse VENDO SANGUE), suja até a AAAALMA. É uma cena muito forte, embora ontem à noite tenha sido arruinada por algun garotos atirando bombons na minha cabeça.
Falando sério, na verdade não é tão ruim assim, não no contexto, e não sei por que estou sendo tão sarcástica, provavelmente por conta de algum mecanismo de defesa. Na verdade a resposta dos garotos que assistem ao espetáculo, os que não jogam coisas na gente, é muito boa, e nós fazemos umas oficinas bastante animadas em escolas. É incrível como esses garotos sabem pouco de sua herança cultural, de onde eles vêm, mesmo os jovens do Caribe. Gostei de escrever a peça também, me deu um monte de ideias para outros espetáculos e coisas do gênero. Então, acho que vale a pena, mesmo que você considere que estou perdendo o meu tempo. Eu continuo achando que a gente pode mudar as coisas, Dexter, de verdade. Lembro que eles tinham muito teatro radical na Alemanha nos anos 1930, e veja só que diferença isso fez. Nós vamos acabar com o preconceito racial aqui em West Midlands, nem que tenhamos que fazer isso com uma criança de cada vez.
Somos quatro no elenco. Kwame é o Escravo Nobre e nós nos damos muito bem, apesar de fazermos o papel de senhora e serviçal (embora outro dia eu tenha pedido para ele comprar um pacote de batata frita para mim e ele tenha me olhado como se eu o estivesse OPRIMINDO ou algo assim). Ele é legal e faz um trabalho sério, só que chora muito nos ensaios, o que considero um pouco demais. Ele é meio chorão, se você entende o que estou dizendo. Na peça deveria haver uma poderosa tensão sexual entre nós dois, porém mais uma vez a vida não consegue imitar a arte.
Depois tem o Sid, que faz o papel do meu pai malvado, o Obadiah. Sei que você passou toda sua infância jogando críquete num grande campo de camomila e nunca fez nada tão vulgar quanto assistir à TV, mas Sid já foi bem famoso num seriado policial chamado City Beat, e o desgosto que sente por ter sido reduzido a ISSO transparece em tudo. Ele se recusa terminantemente a fazer mímica, como se estivesse abaixo dele ser visto com um objeto que na verdade não está ali, e todas as frases dele começam com “quando eu trabalhava na TV”, que é a maneira de ele dizer “quando eu era feliz”. Sid faz xixi em pias, usa uma dessas medonhas calças de poliéster que a gente LIMPA em vez de lavar e vive de tortas de carne compradas em postos de gasolina. Eu e Kwame achamos que no fundo ele é racista, mas fora isso é um homem adorável, muito adorável.
E depois tem a Candy. Ah, Candy. Você ia gostar da Candy, ela é exatamente o que o nome diz, doce. Faz o papel de Cheeky Maid, uma mistura de latifundiária com Sir William Wilberforce; é muito bonita e mística e, mesmo que eu não aprove o termo, uma vaca total. Vive me perguntando qual é mesmo a minha idade e dizendo que pareço cansada e que se usasse lentes de contato eu seria bem mais bonita, coisa que eu ADORO, óbvio. Faz questão de deixar claro que só está fazendo isso para conseguir o registro de atriz e se distrair até ser descoberta por algum produtor de Hollywood que por acaso esteja passando por Dudley numa tarde chuvosa de terça-feira, à procura de um talento do TE. Ser atriz é um lixo, né? Quando começamos o CTS (Cooperativa de Teatro Sledgehammer), nós estávamos muito a fim de montar uma comunidade teatral progressista, sem essa bobagem de “ego e fama e aparecer na TV para mostrar o ego”, e só fazer trabalhos políticos originais e instigantes. Isso tudo pode parecer bobinho para você, mas é o que queríamos fazer. O problema é que nesses coletivos democráticos igualitários a gente tem de conviver com imbecis como Sid e Candy. Eu nem me incomodaria se ela fosse uma boa atriz, mas seu sotaque de Newcastle é inacreditável, parece um derrame ou coisa assim, e ainda por cima tem mania de se alongar fazendo posições de ioga vestida só de lingerie. Pronto, isso chamou sua atenção, não foi? É a primeira vez que vejo alguém fazer Saudação ao Sol de cinta-liga e corpete. Isso não pode estar certo, pode? O coitado do Sid mal consegue mastigar sua torta de carne com curry, mal consegue encontrar a própria boca.
Quando afinal chega a hora de ela vestir uma roupa e subir no palco, um dos garotos dá um assobio de lobo ou coisa do gênero, e depois no micro-ônibus ela finge se sentir ofendida e ser feminista. “Odeio ser julgada pela aparência, toda a minha vida eu tenho sido julgada pelo meu rosto exótico e o meu corpo firme e jovem”, diz enquanto ajusta a alça do sutiã, como se fosse um grande tema POLÍTICO e devêssemos estar fazendo um teatro de rua ativista, sobre reivindicações de mulheres que foram amaldiçoadas com peitos grandes. Será que estou falando demais? Já está apaixonado por ela? Talvez eu a apresente a você quando voltar. Já estou até vendo você apertando a mandíbula, fazendo um trejeito com os lábios e lançando aquele olhar ao perguntar sobre a carreeeeira dela. Acho que não vou apresentar vocês dois...

Emma Morley virou a folha de papel para baixo quando Gary Nutkin entrou, magro e ansioso: era o momento da preleção do diretor e cofundador da Cooperativa de Teatro Sledgehammer antes do espetáculo. O camarim unissex não era um camarim de jeito nenhum; era apenas um vestiário feminino de uma escola no centro, que mesmo nos fins de semana conservava aquele cheiro de escola de que ela se lembrava: hormônios, sabonete líquido cor-de-rosa e toalhas emboloradas.
Na porta, Gary Nutkin pigarreou, pálido e bem-barbeado, o botão do colarinho da camisa preta abotoado, um homem cujo ícone estilístico pessoal era George Orwell.
— Belo público esta noite, gente! Quase a metade da lotação, o que não é ruim, se pensarmos um pouco! — Não chegou a mencionar o que deveria ser considerado, talvez porque estivesse distraído com Candy rebolando num macacão de bolinhas. — Vamos fazer um grande espetáculo, pessoal. Vamos mostrar para eles!
— Eu sei o que eu gostaria de mostrar para eles — grunhiu Sid, olhando para Candy enquanto catava migalhas do bolinho. — Um taco de críquete com pregos na ponta, seus canalhinhas.
— Não seja tão negativo, Sid, por favor — implorou Candy num longo e controlado suspiro.
Gary continuou:
— Lembrem-se, mantenham o frescor da novidade, fiquem ligados e espertos, digam as falas como se fosse a primeira vez e, o mais importante, não deixem a plateia intimidar ou conduzir vocês de jeito nenhum. Interação é ótimo. Retaliação não. Não se deixem irritar. Não deem esse prazer a eles. Quinze minutos, por favor! — e com isso fechou a porta do camarim deixando todos lá dentro, como se fosse um carcereiro.
Sid começou o seu aquecimento de todas as noites, um murmúrio entoado de “eu odeio esse trabalho, eu odeio esse trabalho”.
Ao lado dele estava Kwame, de peito nu e desamparado em calças esfarrapadas, mãos enfiadas nas axilas, cabeça caída para trás, meditando ou talvez tentando não chorar. À esquerda de Emma, Candy entoava canções de Les Miserables num soprano fraco e suave, erguendo-se na ponta dos pés como havia aprendido em dezoito anos de balé. Emma observou seu reflexo no espelho trincado, ajeitou as mangas bufantes do vestido imperial, tirou os óculos e deu um suspiro de Jane Austen.
O último ano havia sido marcado por uma série de caminhos errados, más escolhas e projetos abandonados. Houve a banda só de garotas em que Emma tocava contrabaixo, que teve nomes que variaram de Throat a Slaughterhouse Six, passando por Bad Biscuit; se já tinha sido difícil escolher um nome, imagine então uma direção musical. Depois foi o clube noturno alternativo ao qual ninguém foi, o primeiro romance abandonado, o segundo romance abandonado, vários empregos infelizes e temporários vendendo caxemira e lã xadrez para turistas. Na fase mais baixa da maré, Emma tentou fazer um curso de técnicas circenses, mas percebeu que não tinha nenhum talento para aquilo. Trapézio não era a solução.
O tão alardeado Segundo Verão do Amor foi melancólico, um desperdício de energias. Até mesmo sua amada Edimburgo começava a deixá-la entediada e deprimida. Morar na cidade universitária era o mesmo que continuar numa festa da qual todo mundo tinha ido embora, e por isso em outubro ela desistiu do apartamento da Rankeillor Street e voltou para a casa dos pais por um longo e úmido inverno, cheio de recriminações, portas batendo com violência e televisão durante as tardes numa casa que agora parecia inacreditavelmente pequena. “Mas você tem um diploma com primeiro lugar em duas matérias! O que aconteceu com ele?”, a mãe perguntava todos os dias, como se o diploma de Emma fosse um superpoder que ela se recusasse a usar. Sua irmã mais nova,
Marianne, uma enfermeira feliz no casamento e com um filho recém-nascido, aparecia à noite só para tripudiar na agora rebaixada filha perfeita do papai e da mamãe. Mas de vez em quando havia Dexter Mayhew. Nos últimos dias quentes do verão, depois da formatura, Emma ficou hospedada na linda casa da família dele em Oxfordshire: casa não, aos olhos dela era uma mansão. Ampla, dos anos 1920, com tapetes desbotados, grandes telas abstratas e gelo nos drinques. No enorme jardim que cheirava a ervas, os dois passaram um longo e lânguido dia entre a piscina e a quadra de tênis, a primeira que ela via que não fora construída pela prefeitura. Tomar gim-tônica em cadeiras de vime olhando a paisagem fez com que Emma se lembrasse de O grande Gatsby. Claro que ela havia estragado tudo: bebeu demais, ficou nervosa durante o jantar e discutiu sobre a Nicarágua com o pai de Dexter — um homem gentil, modesto e perfeitamente razoável — enquanto Dexter a olhava com uma expressão carinhosa e decepcionada, como se fosse um cachorrinho que tivesse sujado o tapete. Será que tinha mesmo sentado à mesa da família para jantar e chamado o pai dele de fascista? Naquela noite Emma voltou para o quarto de hóspedes arrependida e atordoada, esperando por uma batida na porta que sem dúvida não ouviria: esperanças românticas sacrificadas em favor dos sandinistas, que provavelmente eram uns ingratos.
Os dois se encontraram de novo em Londres em abril, na festa de aniversário de vinte e três anos de Callum, um amigo em comum, e passaram o dia seguinte em Kensington Gardens, conversando e tomando vinho no gargalo. É claro que ela tinha sido perdoada, mas àquela altura os dois já haviam caído na frustrante familiaridade da amizade; frustrante para ela, deitada na grama verde fresca da primavera, as mãos quase se tocando, enquanto Dexter falava sobre Lola, a incrível espanhola que tinha conhecido esquiando nos Pireneus.
Depois foi viajar outra vez, para ampliar ainda mais os seus horizontes. A China se revelou estranha e ideológica demais para o gosto de Dexter, que por isso preferiu embarcar numa viagem de um ano por aquilo que os livros de viagem chamavam de “Cidades Festivas”. Então, agora eles se comunicavam por missivas, Emma escrevendo longas e intensas cartas repletas de piadas e indiretas forçadas e implícitas que mal escondiam sua saudade: gestos de amor de duas mil palavras em papel de carta. Assim como fitas gravadas reunindo vários artistas, cartas também eram veículos para emoções não expressas, e Emma estava investindo tempo e energia demais nisso. Dexter respondia com cartões-postais que economizavam palavras: “Amsterdã é uma LOUCURA”, “Barcelona é INSANA”, “Dublin é DEMAIS. Vomitando SEM PARAR hoje de manhã”. Como escritor de viagem ele não era nenhum Bruce Chatwin, mas ainda assim Emma levava os cartões-postais no bolso de um casaco pesado em longas caminhadas sentimentais por Ilkley Moor, em busca de algum significado oculto em “VENEZA COMPLETAMENTE INUNDADA!!!”.
— Mas afinal quem é esse Dexter? — perguntou sua mãe, olhando o verso dos cartões-postais. — É seu namorado? — Depois, com uma expressão preocupada: — Você já pensou em trabalhar para a companhia de gás?
Emma arranjou emprego servindo cerveja num pub local e o tempo passou, e ela sentia o cérebro murchar, como se fosse algo esquecido no fundo da geladeira.
Foi então que Gary Nutkin ligou. O trotskista magricelo fora seu diretor numa despojada e descomprometida montagem da peça Terror e miséria no Terceiro Reich, de Brecht, em 1986, e na festa de encerramento do espetáculo ficou beijando Emma durante três horas seguidas, mas sem compromisso. Pouco depois levou-a a uma sessão dupla de Peter Greenaway e esperou quase quatro horas para estender o braço e botar a mão no seio esquerdo dela de uma forma distraída, como se estivesse ajustando a iluminação num dimmer. Naquela noite os dois fizeram amor de uma forma brechtiana, numa cama de solteiro pouco asseada sob um cartaz de A batalha da Argélia, com Gary tomando todo o cuidado para deixar bem claro que não a estava tratando como objeto. Depois disso, nada, nem uma palavra, até aquele telefonema tarde da noite no mês de maio, com hesitantes palavras expressas num tom delicado:
— Você gostaria de participar da minha cooperativa de teatro?
Emma não tinha ambições de ser atriz nem sentia grande paixão pelo teatro, a não ser como um meio de reunir ideias e palavras. Mas a Sledgehammer se propunha a ser um novo tipo de cooperativa de teatro progressista, com intenções compartilhadas, entusiasmo em comum, um manifesto por escrito e o compromisso de mudar a vida de jovens através da arte. “Talvez houvesse algum romance também”, pensou Emma, “ou ao menos um pouco de sexo”. Arrumou a mochila, despediu-se de seus céticos pais e embarcou no micro-ônibus como se estivesse partindo para uma grande epopeia, uma espécie de Guerra Civil Espanhola teatral financiada pelo Conselho das Artes.
Porém, três meses depois, onde tinham ido parar todo o afeto, toda a camaradagem, a noção de valor social e de grandes ideais combinados com diversão? Eles deveriam ser uma cooperativa. Era o que estava escrito na lateral da caminhonete, como ela mesma havia gravado. “Eu odeio esse trabalho, eu odeio esse trabalho”, dizia Sid. Emma apertou as mãos nos ouvidos e se fez algumas perguntas fundamentais.
Por que eu estou aqui?
Será que estou mesmo fazendo alguma coisa?
Por que ela não veste uma roupa?
Que cheiro é esse?
Ela queria estar em Roma, com Dexter Mayhew. Na cama.

***

— Shaf-tes-bury Avenue.
— Não. Shafts-bury. Três sílabas.
— Lychester Square.
— Leicester Square, duas sílabas.
— Por que não Ly-chester?
— Não faço ideia.
— Mas você é o meu professor, devia saber.
— Sinto muito. — Dexter deu de ombros.
— Bom, eu acho que é uma língua idiota — disse Tove Angstrom, dando um soquinho no ombro dele.
— Sim, é uma língua idiota. Concordo plenamente. Mas não precisa me bater.
— Desculpe — disse Tove, beijando o ombro dele, depois o pescoço e a boca, e Dexter mais uma vez percebeu o quanto ensinar podia ser gratificante.
Os dois estavam deitados num amontoado de almofadas no piso de terracota do minúsculo quarto dele, depois de desistirem da cama de solteiro por ser inadequada às suas necessidades. No folheto da Escola Internacional de Inglês Percy Shelley, as acomodações dos professores eram descritas como “com algum conforto e muitos aspectos compensadores”, e era um resumo perfeito. O quarto no Centro Storico era insípido e institucional, mas ao menos havia uma sacada, um peitoril de trinta centímetros dando para uma praça pitoresca que, bem ao estilo romano, também funcionava como estacionamento. Todas as manhãs ele acordava ao som de funcionários dos escritórios brigando por uma vaga para seus veículos.
Mas, no meio daquela tarde úmida de julho, o único som vinha das rodinhas das malas dos turistas que ressoavam nas pedras que pavimentavam a rua, e os dois estavam com as janelas escancaradas, beijando-se preguiçosamente, o rosto no cabelo dela, grosso, escuro e cheirando a alguma marca de xampu dinamarquês: pinheiro artificial e fumaça de cigarro. Ela estendeu o braço por cima da cintura dele, pegou o maço no chão, acendeu dois cigarros e passou um para ele, que se ajeitou nas almofadas, o cigarro pendurado nos lábios como Belmondo ou algum personagem de Fellini. Ele nunca tinha assistido a um filme com Belmondo ou de Fellini, mas conhecia os cartões-postais: estilosos e em preto e branco. Dexter não gostava de se sentir vaidoso, mas havia ocasiões em que gostaria que houvesse alguém por perto para tirar uma foto dele.
Eles se beijaram mais uma vez, e Dexter distraidamente considerou se aquela situação implicava alguma questão ética ou moral. É claro que a hora certa de se preocupar com os prós e contras de dormir com uma aluna teria sido depois da festa da faculdade, quando Tove se empoleirou desequilibrada na beira da cama e abriu o zíper das botas que iam até os joelhos. Mesmo naquele momento, em meio ao torpor do vinho tinto e ao desejo, Dexter se surpreendeu pensando no que Emma Morley diria. E, enquanto Tove enrolava a língua no seu ouvido, ele já elaborava sua defesa: ela tem dezenove anos, é adulta, e, de qualquer forma, eu não sou um professor de verdade. Além disso, Emma estava muito longe naquele momento, tentando mudar o mundo num micro-ônibus na estrada vicinal de alguma cidade provinciana, e afinal o que tudo aquilo tinha a ver com Emma? Agora as botas de Tove amontoavam-se no canto do quarto, no albergue onde era estritamente proibida a permanência de visitas durante a noite.
Ele mudou de posição em busca de uma parte mais fresca da terracota e olhou pela janela, tentando calcular a hora a partir do pequeno quadrado de céu azul brilhante. O ritmo da respiração de Tove mudava, ela começava a pegar no sono, mas Dexter tinha um encontro importante. Largou os últimos centímetros do cigarro numa taça de vinho e alcançou o relógio, em cima de um exemplar nunca lido de É isto um homem?, de Primo Levi.
— Tove, eu preciso sair.
Ela grunhiu em protesto.
— Tenho um encontro com os meus pais, eu preciso ir embora.
— Posso ir também?
Ele deu risada.
— Melhor não, Tove. Além do mais você tem prova de gramática na segunda. É melhor estudar um pouco.
— Você pode me avaliar. Me avalie agora.
— Tudo bem: verbos. Presente do indicativo.
Enrolou uma perna ao redor dele e usou o impulso para subir no seu corpo.
— Eu beijo, tu beijas, ele beija, nós beijamos...
Dexter se ergueu sobre os cotovelos.
— É sério, Tove...
— Mais dez minutos — suspirou no ouvido dele, e Dexter deitou-se outra vez no chão. “Por que não?”, pensou. Afinal, estou em Roma, está um lindo dia. Tenho vinte e quatro anos, sou saudável e financeiramente estável. Sinto que estou fazendo uma coisa que não deveria, mas sou um cara de sorte, de muita sorte.
Aquele fascínio por uma vida dedicada às sensações, ao prazer e a si próprio provavelmente se dissiparia algum dia, mas ainda havia muito tempo para isso.

***

Como está Roma? Como vai La Dolce Vita? Vá pesquisar. Imagino que neste momento você esteja na mesa de um café, tomando um desses cappuccinos de que a gente tanto ouve falar e dando em cima de tudo. Provavelmente está lendo esta carta de óculos escuros. Ei, tira esses óculos, você está ridículo. Recebeu os livros que eu mandei? Primo Levi é um ótimo escritor italiano. É para lembrar que a vida não é só gelati e espadrilles. Nem sempre a vida pode ser como a abertura do filme Betty Blue. E como vão as aulas? Por favor, diga que não está dormindo com as suas alunas. Isso seria tão... decepcionante.
Agora eu preciso parar. O fim da página está se aproximando e já estou ouvindo na sala ao lado o excitante murmúrio dos espectadores na plateia atirando cadeiras uns nos outros. Termino esse trabalho em duas semanas, GRAÇAS A DEUS. Depois Gary Nutkin, nosso diretor, quer que eu crie um espetáculo para crianças em idade escolar sobre o apartheid. Com FANTOCHES. Que merda. Seis meses no trânsito da rodovia M6 com uma marionete do Desmond Tutu no meu colo. Acho que essa eu não vou topar. Além disso, escrevi uma peça sobre duas mulheres, inspirada em Virginia Woolf e em Emily Dickinson, chamada Duas vidas (isso ou Duas lésbicas deprimidas). Talvez eu encene isso em um teatro-pub em algum lugar. Uma vez expliquei a Candy quem era Virginia Woolf e ela disse que adoraria fazer o papel, mas só se pudesse tirar o sutiã. Então o elenco está montado. Eu vou ser Emily Dickinson e vou ficar de sutiã. Vou reservar o seu ingresso.
Enquanto isso, preciso decidir se vou morar em Leeds ou em Londres. Escolhas, escolhas. Estou resistindo à ideia de mudar para Londres — mudar para Londres é tão PREVISÍVEL —, mas Tilly Killick, minha ex-companheira de apartamento (lembra-se dela? Grandes óculos vermelhos, opiniões estridentes e costeletas?) tem um quarto vago em Clapton. Ela diz que é o “cubículo” dela, o que não parece muito bom. O que você acha de Clapton? Pretende voltar a Londres em breve? Ei! Quem sabe não podemos dividir um apartamento?

“Dividir um apartamento?” Emma hesitou, meneou a cabeça e soltou um gemido, depois escreveu: “Brincadeirinha!!!!”, e gemeu outra vez. “Brincadeirinha” era exatamente o tipo de coisa que as pessoas escreviam quando estavam falando sério. Agora era tarde demais para apagar, mas como encerrar aquela carta? “Tudo de bom” era muito formal, “tout mon amour” era afetado demais, “com amor” era muito brega, e Gary Nutkin já estava de novo à porta.
— Muito bem, todos a postos! — Infelizmente ele mantinha a porta aberta, como se quisesse conduzir todos a um pelotão de fuzilamento, e ela teve de se decidir rápido e escreveu...

Sinto muita saudade de você, Dex

...depois assinou e carimbou um beijo no papel de carta azul-claro.

***

Na Piazza della Rotunda, a mãe de Dexter sentava-se à mesa de um café, um romance pendendo da mão, olhos fechados e a cabeça inclinada para trás e para o lado, como um pássaro aproveitando os últimos raios do sol da tarde. Em vez de se aproximar logo,
Dexter ficou um tempo entre os turistas nos degraus do Panteão e viu um garçom se aproximar e pegar o cinzeiro, assustando-a. Os dois riram, e pelo movimento dramático da boca e dos braços da mãe conseguiu perceber que estava falando seu terrível italiano, dando tapinhas no braço do garçom como se fosse um flerte. Mesmo sem ter noção do que havia sido dito, o garçom sorriu e correspondeu ao flerte antes de se afastar, olhando por cima do ombro para a linda mulher inglesa que tinha tocado seu braço e falado algo incompreensível.
Dexter observou tudo aquilo, sorrindo. O velho conceito freudiano de que os garotos são apaixonados pelas mães e odeiam os pais, insinuado pela primeira vez na escola, parecia perfeitamente plausível. Todo mundo que ele conhecia era apaixonado por Alison Mayhew, e o melhor de tudo é que Dexter também gostava muito do pai: como acontecia em várias outras coisas, ele também tinha muita sorte nisso.
Muitas vezes, durante o jantar, no grande e exuberante jardim da casa de Oxfordshire ou em férias na França, quando ela dormia sob o sol, Dexter tinha visto o pai observando Alison com seus olhos de cão de caça, numa expressão de pura adoração. Quinze anos mais velho que ela, alto, o rosto comprido e introvertido, parecia que Stephen Mayhew não conseguia acreditar naquela incrível sorte. Nas frequentes festas que ela organizava, se ficasse bem quieto a ponto de não ser mandado para a cama, Dexter via os homens formando um círculo dedicado e obediente ao redor da sua mãe: homens inteligentes, realizados, médicos e advogados, pessoas que falavam no rádio, todos eram reduzidos a adolescentes ingênuos. Observava quando ela dançava ao som dos primeiros álbuns da Roxy Music, um coquetel na mão, inebriada, embora sob controle, ao lado das outras esposas, baixinhas e lerdas se comparadas a ela. Seus colegas de escola também, mesmo os mais indiferentes e complicados, viravam personagens de desenho animado diante de Alison Mayhew, flertando com ela e sendo correspondidos, envolvendo-a em guerras de água, elogiando sua péssima comida — os ovos mexidos violentamente, a pimenta preta que na verdade eram cinzas de cigarro.
Alison tinha estudado moda em Londres, mas agora dirigia uma pequena loja de antiguidades que vendia castiçais e tapetes caros para distintos cavalheiros de Oxford, com grande sucesso. Ainda mantinha aquela aura dos anos 1960 — Dexter havia visto as fotografias, os recortes de suplementos de jornais desbotados —, mas, sem mostrar tristeza ou arrependimento, tinha trocado tudo aquilo por uma vida familiar resolvida e respeitável, segura e confortável. Era como se tivesse sentido o momento exato de sair da festa. Dexter desconfiava que, às vezes, ela tinha seus desentendimentos com os médicos, com os advogados e com as pessoas que falavam no rádio, mas achava difícil ficar zangado com ela. E as pessoas sempre diziam a mesma coisa — que Dexter tinha puxado à mãe. Ninguém especificava “o que” tinha puxado, mas todos pareciam saber: a aparência, é claro, a energia e a boa saúde, mas também uma certa autoconfiança indiferente, o direito de ser o centro das atenções, de estar no time vencedor.
Mesmo agora, em seu desbotado vestido azul de verão, fuçando a imensa bolsa em busca de fósforos, a vida na Piazza parecia gravitar em torno dela. Olhos castanhos penetrantes e um rosto em forma de coração, os cabelos negros desgrenhados por um cabeleireiro caro, o vestido amassado com um botão desabotoado, uma displicência impecável. Quando viu Dexter se aproximar, a expressão dela se abriu num largo sorriso.
— Quarenta e cinco minutos de atraso, meu jovem. Onde você estava?
— Logo ali, vendo você conversar com os garçons.
— Não conte nada para o seu pai. — Esbarrou o quadril na mesa ao se levantar para abraçá-lo. — Mas onde você estava?
— Preparando umas aulas. — O cabelo ainda estava molhado da ducha partilhada com Tove Angstrom, e, quando Alison afastou uma mecha da sua testa, acariciando o rosto do filho com orgulho, Dexter percebeu que ela já estava um pouco bêbada.
— Cabelo despenteado. Quem está despenteando você? O que andou aprontando?
— Já falei, eu estava preparando umas aulas.
Ela fez um bico, sem acreditar no que ouvia.
— E onde você se meteu ontem à noite? Nós ficamos esperando no restaurante.
— Desculpe, eu me atrasei. Estava numa discoteca da faculdade.
— Numa discoteca. Que coisa mais 1977. E como estava?
— Duzentas garotas escandinavas flanando bêbadas pelo salão.
— “Flanando”. Tenho o prazer de dizer que não faço a menor ideia do que se trata. Foi divertido?
— Foi um inferno.
Deu um tapinha no joelho dele.
— Coitadinho de você.
— Onde está o papai?
— Voltou para o hotel para tirar uma de suas sonecas. O calor, as sandálias machucando. Você sabe como é o seu pai, é tão galês.
— E o que vocês têm feito?
— Passeamos pelo Fórum. Eu achei bonito, mas Stephen morreu de tédio. Toda aquela confusão, colunas caídas por toda parte.
Imagino que ele acha que deviam demolir tudo e construir um belo conservatório ou algo assim.
— Vocês deviam visitar o Palatino. Fica no alto daquela colina...
— Eu sei onde fica o Palatino, Dexter. Eu conheci Roma antes de você nascer.
— Sei, e quem era o imperador naquela época?
— Ah. Escuta, me ajude com esse vinho, não me deixe tomar a garrafa toda. — Ela já tinha bebido quase tudo, mas Dexter despejou os últimos centímetros num copo de água e pegou um cigarro do maço dela. Alison fez uma expressão de reprovação. — Sabe que às vezes acho que levamos essa atitude de pais liberais um pouco longe demais?
— Concordo totalmente. Vocês me estragaram. Passa o fósforo.
— Fumar não é uma coisa inteligente, sabe. Sei que você acha que fica parecendo um artista de cinema, mas não é verdade, fica horrível.
— Então por que você fuma?
— Porque eu fico sensacional. — Pôs um cigarro entre os lábios e Dexter acendeu com o fósforo. — Mas eu vou parar. Este é o meu último. Agora, rápido, enquanto seu pai não está aqui... — Aproximou-se do filho, numa atitude conspiratória. — Fale da sua vida amorosa.
— Não!
— Vamos lá, Dex! Você sabe que eu preciso viver a vida dos meus filhos indiretamente, e a sua irmã é tão virgem...
— Está bêbada, minha senhora?
— Nunca vou saber como ela conseguiu ter dois filhos...
— Você está bêbada.
— Eu não bebo, lembra? — Uma noite, quando Dexter tinha doze anos, Alison o levou até a cozinha e o ensinou, em voz baixa, a fazer um dry martíni, como se fosse um ritual solene. — Vamos lá, desembucha, com todos os detalhes apimentados.
— Eu não tenho nada a dizer.
— Ninguém em Roma? Nenhuma garota católica e simpática?
— Não.
— Nenhuma de suas alunas, espero.
— É claro que não.
— E em casa? Quem anda escrevendo as longas cartas molhadas de lágrimas que sempre remetemos a você?
— Não é da sua conta.
— Conte logo, não me obrigue a abrir os envelopes no vapor!
— Não há nada a contar.
Recostou-se na cadeira.
— Puxa, você me decepciona. E aquela garota simpática que ficou na nossa casa uma vez?
— Que garota?
— Bonita, sincera, nortista. A que ficou bêbada e brigou com seu pai por causa dos sandinistas.
— Aquela era Emma Morley.
— Emma Morley. Gostei dela. Seu pai também gostou, apesar de ter sido chamado de fascista burguês. — Aquela lembrança fez o rosto de Dexter se contrair. — Eu não ligo, pelo menos ela tinha um pouco de paixão, um pouco de impetuosidade. Diferente das bonequinhas sensuais que encontramos às vezes no café da manhã. “Sim, senhora Mayhew, não, senhora Mayhew.” Eu sempre ouço você andando na ponta dos pés para ir até o quarto de hóspedes no meio da noite...
— Você está mesmo bêbada, não está?
— Então, e essa Emma?
— Emma é só uma amiga.
— Ah, é? Não sei, não. Na verdade, acho que ela gosta de você.
— Todo mundo gosta de mim. É a minha maldição.
Na cabeça de Dexter aquela frase soou bonita: rebelde e irônica, mas quando ficaram em silêncio sentiu-se mais uma vez um tolo, como nas festas em que a mãe o deixava ficar com os adultos e ele se comportava mal, desapontando-a. Alison sorriu complacente, apertando a mão dele em cima da mesa.
— Seja uma boa pessoa, está bem?
— Eu sou uma boa pessoa, sempre.
— Mas não seja muito bonzinho. Quer dizer, não faça disso uma religião, ser bonzinho.
— Pode deixar. — Sentindo-se desconfortável, Dexter começou a olhar em volta da Piazza.
A mãe cutucou o braço dele.
— Então, você quer outra garrafa de vinho ou vamos voltar ao hotel e cuidar das bolhas do seu pai?
Começaram a caminhar para o norte, pelas ruas menos movimentadas que corriam paralelas à Via del Corso em direção à Piazza del Popolo, com a rota sendo ajustada para tornar o passeio o mais cênico possível. Dexter sentiu-se um pouco melhor ao saborear a satisfação de conhecer bem uma cidade. Alison o seguia apoiada em seu braço.
— Então, quanto tempo você pretende ficar por aqui?
— Não sei. Talvez até outubro.
— Mas depois vai voltar para casa e arranjar o que fazer, não é?
— Claro.
— Não estou dizendo para vir morar com a gente. Eu não pediria isso a você. Mas nós podemos ajudá-lo a alugar um apartamento.
— Mas não há tanta pressa, não é?
— Bom, já faz um ano, Dexter. De quanto tempo de férias você precisa? Você não deu tanto duro assim na faculdade...
— Eu não estou de férias, estou trabalhando!
— E o jornalismo? Você não tinha falado de jornalismo?
Dexter havia mencionado isso de passagem, mas só como um álibi, para despistar. A impressão era de que, ao se aproximar dos vinte anos, suas possibilidades tinham começado a se reduzir gradualmente. Já não tinha mais chances nas carreiras mais promissoras e que o interessavam — cirurgião cardíaco, arquiteto —, e o jornalismo parecia seguir o mesmo caminho. Não era um bom redator, não sabia quase nada de política, falava um francês limitado a restaurantes e não tinha formação nem qualificações, só um passaporte e uma imagem vívida de si mesmo fumando debaixo de um ventilador em algum país tropical, uma velha Nikon e uma garrafa de uísque ao lado da cama.
Na verdade, o que realmente queria era ser fotógrafo. Aos dezesseis anos tinha concluído um projeto fotográfico chamado “Textura”, cheio de closes em preto e branco de cascas de árvores e conchas, que parecia ter “fundido” a cabeça do seu professor de arte. Nada do que fez depois proporcionou mais satisfação que “Textura”, aquelas imagens em alto contraste de geada nas janelas ou do cascalho na garagem. Jornalismo implicava travar uma árdua batalha com coisas difíceis, como palavras e ideias, mas Dexter achava que poderia ser um bom fotógrafo, nem que fosse por seu talento para perceber quando as coisas impressionaram. Nesse estágio da vida, seu principal critério para escolher uma carreira era que soasse bem quando gritada no ouvido de alguma garota num bar. E não havia como negar que “sou fotógrafo profissional” era uma ótima frase, quase no nível de “trabalho como correspondente de guerra” ou “na verdade, eu faço documentários”.
— Jornalismo é uma possibilidade.
— Ou algum negócio. Você e Callum não iam abrir uma empresa?
— Estamos pensando no assunto.
— Tudo isso soa muito vago, “empresa”.
— Como eu disse, estamos pensando.
Na verdade, Callum, seu ex-companheiro de apartamento, já havia começado o negócio sem ele, alguma coisa relacionada a manutenção de computadores, que Dexter não teve energia para tentar entender. Eles iriam ficar milionários até os vinte e cinco anos, insistia Callum, mas como isso soaria num bar? “Na verdade, eu trabalho com manutenção de computadores.” Não, fotógrafo profissional era sua melhor aposta. Resolveu expressar aquilo em voz alta.
— Na verdade, eu ando pensando em fotografia.
— Fotografia? — A mãe dele deu uma risada impertinente.
— Ei, eu sou um bom fotógrafo!
— ...quando não esquece de tirar o dedão da lente.
— Você não devia me dar uma força?
— Que espécie de fotógrafo? Glamour? — Deu uma risada rouca. — Ou vai continuar o seu trabalho de “Textura”? — E os dois tiveram de parar para ela gargalhar por um tempo no meio da rua, apoiando-se no braço dele. — Todas aquelas fotos de cascalho.
— Quando finalmente parou, Alison se endireitou e ficou com o rosto sério. — Dexter, mil desculpas...
— Na verdade eu estou muito melhor agora.
— Eu sei que está, desculpe. Peço perdão. — Retomaram a caminhada. — Você deveria tentar, Dexter, se é o que deseja. — Apertou o braço dele com o cotovelo, mas o filho estava amuado. — Nós sempre dissemos que você pode fazer qualquer coisa que desejar, desde que se esforce para tal.
— Foi só uma ideia — ele comentou, petulante. — Estou pesando as possibilidades, só isso.
— Bem, espero que sim, porque ensinar é uma bela profissão, mas na verdade não é a sua vocação, é? Ensinar letras dos Beatles para garotas nórdicas deslumbradas.
— É um trabalho difícil, mãe. Além disso, é algo com que posso contar.
— É, às vezes fico pensando se você não conta com coisas demais. — Falou isso olhando para baixo, e a observação pareceu ecoar no pavimento. Os dois andaram um pouco mais antes de ele falar.
— E o que você quis dizer com isso?
— Ah, só que... — Alison suspirou e descansou a cabeça no ombro dele. — Só quis dizer que em algum momento você vai ter que levar a vida a sério, só isso. Você é jovem, saudável e bonito, ao menos à meia-luz. Parece que as pessoas gostam da sua companhia, você é inteligente, talvez não em termos acadêmicos, mas sabe das coisas. E teve sorte, muita sorte, Dexter, e foi protegido de certas coisas como responsabilidade, falta de dinheiro. Mas agora é um adulto, e um dia as coisas podem não ser mais assim... — Olhou ao redor, indicando a ruazinha cinematográfica por onde ele a havia conduzido. — ...tão serenas. Seria bom estar preparado para isso, estar mais bem-equipado.
Dexter franziu o cenho.
— Você quer dizer ter uma carreira?
— Em parte.
— Você está falando como o papai.
— Meu Deus, como assim?
— Um bom emprego, ter garantias, motivação.
— Não é só isso, não é só um emprego. Uma direção. Um objetivo. Uma motivação, alguma ambição. Quando tinha a sua idade eu queria mudar o mundo.
Dexter fungou.
— Por isso a loja de antiguidades — e a mãe deu uma cotovelada nos rins dele.
— Isso é passado, estamos falando do agora. E não banque o espertinho comigo. — Segurou no braço dele e os dois começaram a andar devagar outra vez. — Eu quero me sentir orgulhosa de você, só isso. Quer dizer, eu já me sinto orgulhosa de você, da sua irmã, mas você sabe o que estou dizendo. Estou um pouco bêbada. Vamos mudar de assunto. Eu queria falar sobre outra coisa.
— Que coisa?
— Ah, tarde demais. — Agora já estavam vendo o hotel três estrelas, elegante mas sem ostentação. Através do vidro fumê, Dexter viu o pai afundado numa poltrona no saguão, uma perna comprida e fina dobrada por cima do joelho, a meia embolada na mão enquanto examinava a sola do pé.
— Meu Deus, ele está cutucando os calos no saguão do hotel. Um pedaço do País de Gales na Via del Corso. Encantador, simplesmente encantador. — Alison soltou o braço e pegou na mão do filho. — Leve-me para almoçar amanhã, tá? Enquanto seu pai fica num quarto escuro cutucando os calos. Vamos sair, só nós dois, ir a algum lugar na calçada de uma praça bonita. Com toalhas de
 mesa brancas. Algum lugar caro, eu convido. Você pode até me mostrar algumas fotos de pedrinhas interessantes.
— Tudo bem — ele respondeu, de mau humor. Sua mãe estava sorrindo, mas franzindo o cenho também, apertando a mão dele um pouco demais, e Dexter sentiu uma súbita pontada de angústia. — Mas por que esse almoço?
— Porque eu quero conversar com meu filho bonitão, e no momento estou um pouco bêbada, acho.
— Qual é o assunto? Diga alguma coisa!
— Não é nada, nada.
— Você não vai se divorciar, vai?
Alison deu uma risada grave.
— Não seja ridículo, é claro que não. — No saguão do hotel o pai já tinha visto os dois e estava de pé, puxando a porta, que abria para dentro. — Como eu posso me separar de um homem que usa a camisa para dentro das cuecas?
— Então me diga qual é o assunto.
— Nada de ruim, querido, nada de ruim. — Ainda na rua, Alison deu um sorriso animador e passou a mão nos cabelos curtos da nuca do filho, puxando-o até a sua altura de forma que a testa dos dois se tocassem. — Não se preocupe com nada. Amanhã. Amanhã a gente conversa.

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