Capítulo 2 – Em que os gêmeos viram trigêmeos

Jared não conseguia se afastar da porta de entrada.
Ele ouvia o ruído das espadas brandindo e da torcida, mas os sons pareciam vir de um lugar bem distante. Ele olhou horrorizado quando o técnico confrontou seu duplo. O homem estava com a cara vermelha e alguns dos atletas olharam para o duplo de Jared, chocados.
— Legal — Jared deu uma risada. Não havia jeito para explicar uma coisa dessas.
O técnico apontou para a porta larga do ginásio, e viu o Não-Jared caminhando na direção dela — e dele. Assim que o Não-Jared se aproximou, Jared percebeu que ele sorria. Jared fechou os punhos para lhe dar um soco.
O Não-Jared passou por ele sem ao menos olhá-lo, batendo com força as mãos nas portas duplas. Jared queria descobrir um jeito de arrancar o sorriso daquele rosto. Decidiu segui-lo, passando por um corredor cheio de armários.
— Quem é você? — perguntou Jared. — O que você quer?
O Não-Jared virou o rosto para ele e algo em seus olhos fez com que Jared sentisse frio no corpo inteiro.
— Você não me conhece? Eu não sou você mesmo? — A boca retorcia-se num sorriso irônico.
Era estranho vê-lo movimentando-se e falando. Diferente de ver Simon e seu cabelo todo arrumado, com uma mancha de creme dental no lábio superior. E o outro também não era exatamente como ele — o cabelo mais despenteado, os olhos mais escuros e... diferentes.
O outro deu um passo na direção de Jared.
Jared deu um passo para trás, desejando qualquer tipo de proteção de seres fantásticos, e então se lembrou do canivete no bolso da calça jeans. Seres fantásticos detestavam ferro, e aço contém uma parte de ferro. Ele abriu o canivete.
— Por que vocês não nos deixam em paz?
A criatura jogou a cabeça para trás e riu:
— É impossível fugir de si mesmo.
— Cale a boca! Você não sou eu! — Jared apontou o canivete contra seu duplo.
— Jogue fora esse brinquedo — disse o Não-Jared, a voz baixa e áspera.
— Eu não sei quem você é ou quem foi que o enviou, mas aposto como sei o que você está procurando — disse Jared. — O Guia. Bem, você nunca irá consegui-lo.
A boca da criatura alargou-se formando algo que não era realmente um sorriso. Depois, repentinamente, ela se encolheu como se tivesse ficado assustada. Jared observou espantado o corpo do Não-Jared diminuir, o cabelo negro clarear até ficar quase ruivo, o olho já azul alargando-se de tanto pavor.
Antes que Jared pudesse entender completamente o que o duplo estava vendo, ele ouviu a voz de uma mulher logo atrás:
— O que é que está acontecendo por aqui? Abaixe esse canivete!
A vice-diretora correu, agarrando o pulso de Jared. O canivete despencou no assoalho de linóleo. Jared ficou olhando para a lâmina enquanto o garoto de cabelos ruivos corria pelo saguão, soluçando de um jeito que lembrava muito uma gargalhada.

***

— Eu não acredito que você trouxe seu canivete para a escola — sussurrou Simon para Jared quando se sentaram juntos do lado de fora da sala da vice-diretora.
Jared fuzilou-o com o olhar. Ele tinha explicado muitas vezes — até mesmo para a polícia — que só estava mostrando o canivete para o menino, mas eles nunca encontraram o outro garoto para confirmar a história. Então, a vice-diretora pediu para que Jared aguardasse do lado de fora da sala. A mãe deles ficou conversando com ela por bastante tempo, mas Jared não conseguia ouvir o que estava acontecendo lá dentro.
— Que tipo de ser fantástico você acha que era aquele? — perguntou Simon.
Jared deu de ombros.
— Eu queria ter o Guia para conseguirmos descobrir isso.
— Você não se lembra de nenhuma criatura que fosse capaz de mudar de forma desse jeito?
— Eu não sei — Jared esfregou a mão no rosto.
— Olha, eu disse à mamãe que não foi culpa sua. Você só vai ter que explicar.
Jared deu uma risadinha.
— Sim, como se fosse possível contar para mamãe o que aconteceu.
— Eu diria que o garoto roubou uma coisa da bolsa de Mallory — quando Jared não respondeu, Simon tentou de novo. — Posso fingir que eu roubei. A gente troca de camisa e finge que um é o outro.
Jared fez que não com a cabeça. Finalmente, a mãe deles saiu da sala da vice-diretora. Ela parecia cansada.
— Desculpe — disse Jared.
Ele se surpreendeu pelo tom calmo da voz dela.
— Eu não quero falar desse assunto, Jared. Chame sua irmã e vamos embora.
Jared concordou com a cabeça e seguiu Simon, olhando para trás a tempo de ver sua mãe afundar na cadeira que ele havia desocupado. O que será que ela estava pensando? Por que será que ela não estava gritando? Ele até preferia que ela estivesse zangada — ao menos isso ele conseguiria compreender. Sua tristeza silenciosa era mais assustadora. Era como se ela esperasse esse tipo de problema da parte dele.
Simon e Jared caminharam pela escola, parando diante da equipe de esgrima para perguntar se eles tinham visto Mallory. Ninguém a vira. Eles perguntaram por ela até a Chris, o capitão. Ele ficou sem jeito quando o indagaram sobre Mallory, mas fez que não com a cabeça. O ginásio de esportes estava vazio, os únicos ruídos eram o eco dos passos sobre o assoalho brilhante de madeira. O tapete preto tinha sido retirado, bem como os outros itens que faziam parte da disputa.
Finalmente, uma garota de longos cabelos castanhos lhes disse que Mallory estivera chorando no banheiro das meninas.
Simon fez que não com a cabeça.
— A Mallory? Chorando? Mas ela venceu!
A garota deu de ombros.
— Eu lhe perguntei se ela estava bem, mas ela disse que estava ótima.
— Você acha que era mesmo a Mallory? — perguntou Simon enquanto caminhavam em direção ao banheiro feminino.
— Você quer dizer que poderia ser algo que a representasse? Por que um ser fantástico se transformaria na Mallory para depois ficar chorando no banheiro das meninas?
— Sei lá — disse Simon. — Se eu me transformasse na Mallory, com certeza ia chorar.
Jared sugeriu:
— Então, você quer entrar e procurar por ela?
— Eu não vou entrar no banheiro feminino — disse Simon. — Além disso, você já está bem encrencado, não dá pra arranjar mais confusão.
— Eu sempre consigo arranjar mais confusão — disse Jared, com um suspiro. Ele abriu a porta. O banheiro feminino era quase idêntico ao masculino, mas não havia mictórios.
— Mallory? — chamou ele.
Ninguém respondeu. Jared espiou por debaixo das portas, mas não viu pés. Abriu uma das portas, devagarzinho. Mesmo sem encontrar ninguém, ele se sentia esquisito, assustado e envergonhado. Depois de um minuto, voltou correndo para o saguão.
— Ela não está lá dentro? — perguntou Simon.
— Está vazio — Jared deu uma olhada no corredor de armários, na esperança de que ninguém o tivesse visto.
— Talvez ela tenha ido até a sala da vice-diretora para nos procurar — disse Simon. — Não a vi em lugar nenhum.
Uma sensação de pavor bateu no estômago de Jared. Depois que a vice-diretora o pegara ele não tinha parado para pensar em nada além das encrencas em que estava metido. Mas aquela coisa ainda estava correndo pela escola. Ele se lembrou de como a criatura tinha revirado a bolsa de Mallory na hora da disputa.
— E se ela foi lá fora? — disse Jared, esperando que eles a encontrassem antes do duplo. — Vai ver ela saiu para ver se estávamos esperando no carro.
— Vamos dar uma olhada. — Simon deu de ombros. Jared percebia que ele não estava convencido, mas ambos foram para fora de qualquer jeito.
O céu já estava se escurecendo em tons de violeta e dourado. Sob a luz tênue eles passaram pela pista de corrida e pelo campo de beisebol.
— Eu não estou vendo a Mallory — disse Simon.
Jared concordou com a cabeça. O estômago dele revirava de tanto nervosismo.
Onde será que ela foi parar? — ele se perguntava.
— Ei — disse Simon. — O que é aquilo? — Ele deu alguns passos e abaixou-se para apanhar uma coisa brilhante na grama.
— A medalha de esgrima da Mallory — disse Jared. — E olhe!
Na grama grandes pedaços de pedra formavam um círculo em torno da medalha. Jared ajoelhou-se ao lado da maior pedra. A palavra TROCA estava gravada na pedra.
— As pedras — disse Simon. — Igualzinho na mina.
Jared olhou para cima, surpreso.
— Você se lembra do mapa que encontramos? Ele dizia que existem anões vivendo na mina, mas eu não acho que anão mude de forma.
— Vai ver a Mallory ainda está lá dentro com a mamãe. Ela pode estar na sala da vice-diretora, esperando por nós.
Jared queria acreditar nisso.
— Então, por que a medalha dela está aqui?
— Talvez ela a tenha deixado cair. Talvez isso seja uma armadilha.
Simon começou a caminhar de volta à escola.
— Anda — disse ele. — Vamos voltar e ver se ela está com a mamãe.
Jared concordou passivamente.
Quando eles entraram, encontraram a mãe na porta da escola, falando ao telefone celular. Ela estava sozinha, de costas para eles.
Embora a mãe deles falasse baixinho, dava para ouvi-la nitidamente de onde eles estavam.
— É, eu também pensei que as coisas estivessem melhorando. Mas, você sabe, o Jared nunca aceitou o que aconteceu quando nos mudamos para cá... e, bom, isso pode soar estranho, mas Mallory e Simon o protegem.
Jared congelou. Ao mesmo tempo que temia aquilo que ela ia dizer, sentia-se incapaz de fazer qualquer coisa que a impedisse de continuar a falar.
— Não, não. Eles negam ter feito essas coisas todas. E estão escondendo algo de mim. Eu sei disso por causa do jeito com que param de falar quando entram em um cômodo da casa, pelo jeito que um encoberta o outro, especialmente, o Jared. Você devia ter ouvido o Simon hoje à noite, inventando desculpas para o irmão que mostrou o canivete para aquele garotinho — ela soluçou e começou a chorar. — Eu já não sei se consigo mais lidar com essa situação. Ele está tão bravo, Richard. Talvez ele tenha que passar um tempo com você.
O pai. Ela estava falando com o pai deles.
Simon cutucou Jared.
— Venha. A Mallory não está aqui.
Jared virou-se, tonto, e seguiu o irmão pela porta. Ele não saberia dizer o que sentia naquele momento — talvez um vazio.

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