Capítulo 20

Celaena fechou o livro e suspirou. Que fim terrível. Ela se levantou da cadeira, incerta de para onde ir, e saiu do quarto. Quisera se desculpar com Chaol quando ele a encontrou lutando com Nehemia naquela tarde, mas o comportamento do capitão... A assassina caminhou entre os aposentos. Ele tinha coisas mais importantes para fazer do que vigiar a criminosa mais famosa do mundo, não é? Celaena não gostara de ter sido cruel, mas... Chaol não merecera?
Celaena realmente se fizera de boba ao mencionar os vômitos. E o chamara de todo tipo de coisa ruim. Será que ele confiava nela ou a odiava? Celaena olhou para as mãos e percebeu que as esfregara com tanta força que estava com os dedos vermelhos. Como passara da prisioneira mais temida de Endovier para aquela confusão sentimental?
Tinha coisas mais importantes com que se preocupar, como a prova do dia seguinte. E com aquele campeão morto. Já havia alterado as treliças de todas as portas de modo que rangessem alto quando fossem abertas. Se alguém entrasse em seu quarto, saberia com bastante antecedência. E conseguira prender algumas agulhas de costura roubadas em uma barra de sabão para uma lança em miniatura improvisada. Era melhor do que nada, principalmente se esse assassino tivesse um gosto por sangue de campeões. Celaena forçou as mãos na lateral do corpo, para afastar a inquietude, e caminhou para a sala de música e de jogos. Não podia jogar bilhar ou cartas sozinha, mas...
Celaena olhou para o piano. Costumava tocar – ah, amava tocar, amava música, o modo como a melodia conseguia partir e curar e fazer com que tudo parecesse possível e heroico.
Com cuidado, como se aproximasse de uma pessoa dormindo, Celaena caminhou até o enorme instrumento. Ela pegou o banco de madeira e se encolheu diante do barulho alto que fez quando foi arrastado. Depois de abrir a tampa pesada, pressionou os pedais, para testá-los. Olhou para as teclas demarfim lisas, então para as teclas pretas, que eram como os espaços entre os dentes.
Fora boa um dia – talvez melhor do que boa. Arobynn Hamel fazia Celaena tocar para ele sempre que os dois se encontravam.
Ela imaginou se Arobynn sabia que havia saído das minas. Tentaria libertála se soubesse? Celaena ainda não ousava encarar a possibilidade de quem poderia tê-la traído. Sua captura foi tão confusa – em duas semanas, perdera Sam e a própria liberdade e perdera algo de si mesma naqueles dias embaçados também.
Sam. O que ele acharia daquilo tudo? Se estivesse vivo quando Celaena foi capturada, teria tirado a companheira das masmorras reais antes que o rei sequer soubesse que ela fora presa. Mas Sam, como Celaena, fora traído – e às vezes a ausência dele a atingia com tanta força que Celaena se esquecia de como respirar.
Ela tocou um tom mais grave. Era profundo e pulsante, cheio de mágoa e ódio.
Cuidadosamente, com uma das mãos, ela tamborilou uma melodia simples, lenta, nas notas mais altas. Ecos – retalhos de memórias que emergiam do vazio de sua mente. Os aposentos de Celaena eram tão silenciosos que a música parecia se destacar. Ela moveu a mão direita, tocando sustenidos e bemóis. Era uma peça que costumava tocar repetidas vezes, até que Arobynn gritava para que tocasse outra coisa. Celaena tocou um acorde, então outro, acrescentou algumas notas limpas com a mão direita, pressionou uma vez um dos pedais e prosseguiu no embalo.
As notas irrompiam dos dedos de Celaena, a princípio cambaleantes, mas então mais confiantes conforme a emoção da música tomava conta. Era uma peça lúgubre, mas transformava a própria assassina em algo mais limpo e novo. Ela ficou surpresa porque as mãos não haviam esquecido, porque em algum lugar em sua mente, depois de anos de escuridão e escravidão, a música ainda estava viva e respirava. Em algum lugar, entre as notas, estava Sam. Celaena se esqueceu do tempo conforme flutuava entre as peças, dava voz ao impronunciável, abria velhas feridas, tocava e tocava enquanto o som a perdoava e a salvava.

***

Recostado contra o portal, Dorian permanecia completamente espantado.
Celaena estava tocando havia algum tempo, com as costas para ele. O príncipe imaginou quando a assassina o notaria ou se algum dia pararia. Dorian não se importaria de ouvir para sempre. Tinha ido até lá com a intenção de envergonhar uma assassina arrogante, em vez disso, encontrara uma jovem derramando seus segredos em um piano.
Dorian se afastou da parede. Apesar de toda a experiência com assassinatos, Celaena não o havia notado, até que o príncipe se sentou no banco ao lado dela.
– Você toca linda...
Os dedos de Celaena escorregaram nas teclas, que emitiram um alto e terrível CLANK, e ela estava a meio caminho da estante de tacos de bilhar quando o viu. Dorian poderia jurar que os olhos da jovem estavam cheios de lágrimas.
– O que está fazendo aqui? – Celaena olhou para a porta. Estava planejando usar um daqueles tacos contra ele?
– Chaol não está comigo – disse Dorian, com um sorriso rápido. – Se é isso que está se perguntando. Peço desculpas se a interrompi. – Ele se maravilhou com o desconforto de Celaena quando ela ficou vermelha. Parecia uma emoção humana demais para a Assassina de Adarlan. Talvez o plano anterior de envergonhá-la ainda não estivesse arruinado. – Mas estava tocando tão lindamente que eu...
– Tudo bem. – Celaena caminhou até uma das cadeiras. Dorian se levantou e bloqueou o caminho dela. A assassina tinha estatura surpreendentemente mediana. O príncipe abaixou os olhos para a silhueta de Celaena. Estatura mediana à parte, as curvas da jovem eram convidativas. – O que está fazendo aqui? – repetiu ela.
Dorian sorriu de modo malicioso.
– Nós decidimos nos encontrar esta noite. Não se lembra?
– Achei que fosse brincadeira.
– Sou o príncipe herdeiro de Adarlan. – Ele se afundou em uma cadeira diante da lareira. – Jamais brinco.
– Tem permissão para estar aqui?
– Permissão? Repito: sou um príncipe. Posso fazer o que quiser.
– Sim, mas eu sou a Assassina de Adarlan.
Dorian não se deixaria intimidar, mesmo que Celaena pudesse pegar aquele taco de bilhar para derrubá-lo em questão de segundos.
– Pelo modo como toca, parece que é muito mais do que isso.
– O que quer dizer?
– Bem – falou Dorian, tentando não se perder nos olhos estranhos e adoráveis de Celaena –, acho que ninguém que toca dessa forma pode ser apenas um criminoso. Parece que você tem alma – provocou ele.
– É claro que tenho uma alma. Todos têm alma.
Celaena ainda estava vermelha. Ele a deixara tão desconfortável assim?
Dorian lutou contra o sorriso. Aquilo era divertido demais.
– Gostou dos livros?
– Eram muito bons – respondeu Celaena, baixinho. – Eram maravilhosos, na verdade.
– Fico feliz. – Os olhos dos dois se encontraram, e Celaena recuou para trás do encosto da cadeira. Se Dorian já não soubesse, diria que ele era o assassino na verdade! – Como vai o treinamento? Algum competidor está lhe causando problemas?
– Excelente – falou Celaena, mas os cantos da boca da jovem deslizaram para baixo. – E não. Depois de hoje, acho que nenhum de nós causará problemas para ninguém. – Dorian levou um tempo para perceber que a assassina falava do competidor que fora morto tentando escapar. Ela mordeu o lábio inferior, silenciosa por um segundo, então perguntou: – Chaol deu ordens para matar Sven?
– Não – respondeu ele. – Meu pai ordenou que todos os guardas atirassem para matar se qualquer um de vocês tentasse escapar. Não acho que Chaol teria dado essa ordem – acrescentou o príncipe, embora não tivesse certeza do por quê. Mas a quietude enervante nos olhos de Celaena sumiu, finalmente. Quando a jovem não falou mais, Dorian perguntou o mais casualmente possível: – Falando nisso, você e Chaol estão se dando bem? – É claro que era uma pergunta completamente inocente.
Celaena deu de ombros e o príncipe tentou não interpretar demais o gesto.
– Sim. Acho que ele me odeia um pouco, mas considerando a posição em que está, não me surpreende.
– Por que acha que ele a odeia? – Por algum motivo, Dorian não conseguiu negar.
– Porque sou uma assassina e ele é o capitão da guarda, forçado a se rebaixar para atender à campeã do futuro rei.
– Gostaria que fosse de outro jeito? – Dorian exibiu um sorriso preguiçoso. Essa pergunta não era tão inocente.
Celaena deu a volta na cadeira e se aproximou dele, então o coração do príncipe deu um salto.
– Bem, quem quer ser odiado? Embora eu preferisse ser odiada a ser invisível. Mas isso não faz diferença. – Ela não foi convincente.
– Sente-se sozinha? – perguntou Dorian, antes que conseguisse se impedir.
– Sozinha? – Celaena balançou a cabeça e, finalmente, depois de um gesto tão convincente, sentou-se. Dorian lutou contra a vontade de esticar o braço no espaço entre os dois para ver se os cabelos dela eram tão sedosos quanto pareciam. – Não. Posso sobreviver muito bem sozinha, se receber o material apropriado para leitura.
O príncipe olhou para o fogo, tentando não pensar em onde ela estivera apenas semanas antes – e que sentimentos aquele tipo de solidão podia provocar. Não havia livros em Endovier.
– Mesmo assim, não deve ser agradável ser sua própria companhia o tempo todo.
– E o que você faria? – Celaena gargalhou. – Eu preferiria não ser vista como uma de suas amantes.
– Qual o problema disso?
– Já sou famosa como assassina, não gostaria de ser famosa por compartilhar sua cama. – Dorian comprimiu uma risada, mas Celaena continuou: – Você gostaria que eu explicasse por que ou basta dizer que não aceito joias e enfeites como pagamento pelo meu afeto?
Dorian grunhiu.
– Não vou debater moralidade com uma assassina. Você mata pessoas por dinheiro, sabe.
A expressão de Celaena ficou séria, e ela apontou para a porta.
– Você pode se retirar agora.
– Está me dispensando? – O príncipe não sabia se ria ou gritava.
– Devo mandar chamar Chaol para ver o que ele acha? – A assassina cruzou os braços, ciente de que havia ganhado. Talvez também tivesse percebido que podia ser divertido provocar Dorian também.
– Por que eu deveria ser expulso dos seus aposentos por dizer a verdade? Acaba de me chamar de pouco mais do que mulherengo. – O príncipe não se divertia tanto há anos. – Conte-me sobre sua vida, como aprendeu a tocar o piano tão habilidosamente. E que peça era aquela? Era tão triste; estava pensando em um amante secreto? – Dorian piscou um olho.
– Eu pratiquei. – Celaena se levantou e caminhou até a porta. – E sim – disparou a assassina. – Estava.
– Você está bastante arisca esta noite – disse ele, seguindo-a. Então parou, a 30 centímetros de distância, mas o espaço entre os dois parecia estranhamente íntimo, ainda mais quando Dorian falou, ronronando: – Não está nem perto da tagarela desta tarde.
– Não sou uma mercadoria velha que você pode simplesmente admirar! – Celaena se aproximou. – Não sou uma atração de circo, e você não vai me usar como parte de algum desejo não satisfeito por aventura e agitação! Motivo, sem dúvida, pelo qual me escolheu para ser sua campeã.
Dorian ficou boquiaberto e recuou um passo.
– O quê? – Foi a única coisa que conseguiu dizer.
Celaena passou por ele e se jogou na poltrona. Pelo menos não estava indo embora.
– Achou mesmo que eu não perceberia por que veio aqui esta noite? Como alguém que me deu A coroa de um herói para ler, o que sugere que tem a mente fantasiosa e anseia por aventura?
– Não acho que você seja uma aventura – murmurou Dorian.
– Ah? O castelo oferece tanta agitação que a presença da Assassina de Adarlan não é nada incomum? Nada que atraísse um jovem príncipe que passou a vida confinado à corte? E o que sugere essa competição, por falar nisso? Já estou à disposição do pai. Não serei a diversão do filho também.
Foi a vez de Dorian corar. Será que jamais recebera um sermão daquele tipo de alguém? Dos pais e dos tutores, talvez, mas certamente não de uma jovem mulher.
– Não sabe com quem está falando?
– Meu querido príncipe – disse Celaena, devagar, verificando as unhas –, está sozinho em meus aposentos. A porta do corredor está muito distante. Posso dizer o que eu quiser.
Ele caiu em gargalhadas. Celaena se sentou reta e o observou, a cabeça inclinada para o lado. As bochechas dela estavam vermelhas, o que deixava os olhos azuis da moça ainda mais brilhantes. Será que sabia o que ele poderia querer ter feito com ela, caso não fosse uma assassina?
– Irei embora – disse o príncipe, enfim, impedindo-se de imaginar se poderia, de fato, arriscar... arriscar a ira do pai e de Chaol, e o que poderia acontecer se decidisse mandar as consequências para o inferno. – Mas voltarei em breve.
– Tenho certeza – respondeu ela, com sarcasmo.
– Boa noite, Sardothien. – Dorian olhou ao redor, para os aposentos dela, e sorriu. – Diga-me algo, antes que eu vá: esse seu amante misterioso... não mora no castelo, mora?
O príncipe soube instantaneamente que dissera a coisa errada quando parte da luz desapareceu dos olhos dela.
– Boa noite – respondeu Celaena, um pouco fria.
Dorian balançou a cabeça.
– Eu não quis...
A assassina apenas gesticulou para que ele se fosse, com o rosto virado para o fogo. Ao compreender a dispensa, Dorian caminhou até a porta, cada um de seus passos ecoava pelo agora silencioso quarto. Ele estava quase no portal quando Celaena falou, com a voz distante:
– O nome dele era Sam.
A jovem ainda encarava o fogo. Era Sam...
– O que aconteceu?
Celaena olhou para Dorian com um sorriso triste.
– Ele morreu.
– Quando? – disparou o príncipe. Jamais a teria provocado daquela forma, jamais diria uma coisa sequer se soubesse...
As palavras de Celaena estavam embargadas quando ela respondeu:
– Há 13 meses.
Um brilho de dor passou pelo rosto dela, tão real e tão interminável que
Dorian o sentiu dentro de si.
– Sinto muito – disse ele, exalando.
Celaena deu de ombros, como se isso, de alguma forma, diminuísse o luto que o príncipe ainda via em seus olhos, que brilhavam tão forte à luz do fogo.
– Eu também – sussurrou ela, e olhou novamente para o fogo.
Ao perceber que ela havia realmente terminado de falar dessa vez, Dorian pigarreou.
– Boa sorte com a prova amanhã. – Celaena não disse nada conforme ele saía do quarto.
Dorian não conseguia tirar da mente a música de partir o coração da assassina, mesmo enquanto queimava a lista de damas elegíveis feita pela rainha, mesmo enquanto lia um livro noite afora, mesmo quando finalmente caiu no sono.

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