Capítulo 22
O vento a cortava, mas Celaena manteve a concentração em Nox, que
caía tão rápido e tão longe das mãos esticadas da assassina.
As pessoas gritavam abaixo, e a luz refletida do castelo de vidro
a cegava.
Mas lá estava ele, à distância de apenas uma palma dos dedos de
Celaena, os olhos cinzentos arregalados, os braços agitados como se pudessem
ser transformados em asas.
Em um piscar de olhos, os braços da assassina envolveram o tronco
de Nox, e ela se chocou contra ele com tanta força que perdeu o fôlego. Juntos,
os dois mergulharam como uma pedra, para baixo, bem abaixo, na direção do chão
que parecia se erguer.
Nox agarrou a corda, mas nem mesmo isso foi o suficiente para
amenizar o impacto ofuscante no torso de Celaena quando a corda se esticou. Ela
se agarrou ao ladrão com cada gota de força que tinha, obrigando os braços a
não soltarem.
A corda os lançou em curva em direção à muralha. Celaena mal
conseguiu ter a reação de inclinar a cabeça para longe das pedras que se
aproximavam e o impacto irrompeu na lateral de seus corpos e em seus ombros.
Ela ainda se agarrava com força a Nox, concentrando-se nos braços, na
respiração forte demais. Os dois ficaram pendurados ali, chapados contra a
muralha, recuperando o fôlego enquanto olhavam para o chão, 9 metros abaixo. A
corda os aguentou.
– Lillian – falou Nox, arquejando para tomar fôlego. Ele encostou
o rosto contra os cabelos dela. – Pelos deuses. – Mas ovações irromperam abaixo
e suprimiram as palavras dele. Os braços e as pernas de Celaena tremiam com tanta
violência que ela precisou se concentrar em agarrar-se a Nox; o estômago da
assassina se revirava incessantemente.
Os dois ainda estavam no meio da prova – ainda esperava-se que a completassem,
e Celaena olhou para cima. Todos os campeões haviam parado para vê-la salvando
o ladrão que caía. Todos, menos um, que estava agachado bem acima deles.
Celaena só conseguiu ficar boquiaberta quando a bandeira foi
arrancada e Cain urrou, triunfante. Mais ovações irromperam até eles quando
Cain balançou a bandeira para que todos vissem. Celaena fervilhava de ódio.
Teria ganhado se tivesse escolhido o caminho mais fácil – teria
chegado lá em metade do tempo que Cain levou. Mas Chaol lhe dissera para não se
destacar, de toda forma. E o caminho que escolhera fora muito mais impressionante
e demonstrativo no que dizia respeito a suas habilidades. Cain precisou apenas
saltar e se balançar – escalação amadora. Além disso, se Celaena tivesse
ganhado, se tivesse escolhido o caminho mais fácil, não teria salvado Nox. A
assassina enrijeceu o maxilar. Será que conseguiria chegar ao topo a tempo?
Talvez Nox pudesse levar a corda e Celaena apenas escalaria a muralha com as
próprias mãos. Não havia nada pior do que o segundo lugar. Mas mesmo enquanto
pensava nisso, Verin, Cova, Pelor e Renault escalaram os últimos poucos metros
até o local e o tocaram com a mão antes de descerem.
– Lillian. Nox. Apressem-se – gritou Brullo, e Celaena olhou para
baixo, para o mestre de armas.
Celaena fez uma expressão de irritação e começou a deslizar os pés
pelas fendas nas pedras, procurando por um apoio. A pele dela, esfolada e
sangrando em certos locais, doía enquanto a competidora buscava uma reentrância
na qual espremer os pés. Com muito cuidado, ela se impulsionou para cima.
– Desculpe-me – falou Nox, exalando, as pernas chocando-se contra
as dela enquanto também buscava um apoio para o pé.
– Está tudo bem – respondeu Celaena.
Tremendo, dormente, Celaena escalou a muralha de novo, deixando
que Nox descobrisse um modo por conta própria. Tolice. Fora muita tolice
salvá-lo.
Em que estava pensando?
***
– Anime-se – disse Chaol, bebendo do copo d’água. – O décimo
oitavo lugar é bom. Pelo menos Nox ficou atrás de você.
Celaena não disse nada e empurrou as cenouras ao redor do prato.
Precisara de dois banhos e uma barra de sabão inteira para retirar o alcatrão
das mãos e dos pés doloridos, e Philippa passara trinta minutos limpando e
enrolando ataduras nos ferimentos. Embora Celaena tivesse parado de tremer,
ainda conseguia ouvir o grito e o estampido quando Ned Clement caiu no chão.
Haviam retirado o corpo antes de Celaena terminar a prova. Somente
a morte de Ned salvara Nox da eliminação. Cova não fora repreendido. Não havia
regras contra jogar sujo.
– Está fazendo exatamente como planejamos – continuou Chaol. –
Embora eu dificilmente considere seu bravo resgate algo totalmente discreto.
Celaena o encarou.
– Bem, mesmo assim perdi. – Embora Dorian a tivesse parabenizado
por ter salvado Nox e o ladrão a tivesse abraçado e agradecido inúmeras vezes,
somente
Chaol exibia uma cara feia ao fim da prova. Aparentemente,
resgates ousados não eram parte do repertório de uma ladra de joias.
Os olhos castanhos de Chaol brilhavam dourados ao sol do meio-dia.
– Aprender a perder com graciosidade não foi parte de seu
treinamento?
– Não – respondeu Celaena, com amargura. – Arobynn me dizia que o
segundo lugar é apenas um título bonitinho para o primeiro
perdedor.
– Arobynn Hamel? – perguntou Chaol, apoiando o copo. – O rei dos assassinos?
Celaena olhou para a janela e para a extensão luminosa de Forte da
Fenda, mal visível ao fundo. Era estranho pensar que Arobynn estava na mesma
cidade, que estava tão próximo dela no momento.
– Você sabe que ele foi meu mestre, não sabe?
– Eu havia esquecido – disse Chaol. Arobynn teria chicoteado
Celaena por ter salvado Nox, arriscando a própria segurança e o lugar na
competição. – Ele supervisionava pessoalmente seu treinamento?
– Ele mesmo me treinou e depois trouxe tutores de toda Erilea. Os
mestres de luta dos campos de arroz do continente ao sul, especialistas em
veneno da selva Bogdano... Certa vez, me enviou aos Assassinos Silenciosos do
deserto Vermelho. Nenhum preço era alto demais para ele. Ou para mim –
acrescentou ela, passando os dedos pelo tecido refinado do robe de banho. – Ele
não se incomodou em me dizer, até que eu completasse 14 anos, que teria de
pagar de volta por tudo isso.
– Ele a treinou e então a fez pagar por isso?
Celaena deu de ombros, mas foi incapaz de esconder o rompante de
raiva.
– Cortesãs passam pela mesma experiência: são levadas muito jovens
e ficam presas aos bordéis até que possam arrecadar de volta cada moeda que foi
gasta com seu treinamento, sua manutenção e seu guarda-roupa.
– Isso é desprezível – disparou Chaol, e Celaena piscou diante do
ódio na voz do capitão, ódio que, pela primeira vez, não era direcionado a ela.
– Você pagou de volta?
Um sorriso frio que não chegou aos olhos se abriu no rosto de
Celaena.
– Ah, até a última moeda. Então ele saiu e gastou tudo. Mais de
quinhentas mil moedas de ouro. Desapareceram em três horas. – Chaol se mexeu na
cadeira. Celaena havia enfiado a lembrança em algum lugar tão profundo que
parara de doer. – Você ainda não pediu desculpas – disse ela, mudando de
assunto antes que Chaol fizesse mais perguntas.
– Desculpas? Pelo quê?
– Por todas as coisas horríveis que me disse ontem à tarde, quando
eu estava lutando com Nehemia.
Ele semicerrou os olhos e mordeu a isca.
– Não vou pedir desculpas por dizer a verdade.
– A verdade é que você me tratou como se fosse uma criminosa descontrolada!
– E você disse que me odiava mais do que qualquer pessoa
viva.
– E cada palavra foi sincera. – Um sorriso, no entanto, começou a
se formar nos lábios de Celaena, e ela logo o viu refletido no rosto de Chaol.
Ele jogou um pedaço de pão na assassina; Celaena o pegou com uma das mãos e
atirou de volta no capitão. Ele agarrou o pedaço de pão com facilidade. – Idiota
– disse
Celaena, agora sorrindo.
– Criminosa descontrolada – replicou ele, também sorrindo.
– Eu odeio você de verdade.
– Pelo menos não cheguei em décimo oitavo lugar – respondeu Chaol.
Celaena sentiu as narinas se dilatarem, e Chaol só pôde se desviar
da maçã que ela atirou na cabeça dele.
Somente mais tarde Philippa chegou com as notícias. O campeão que
não aparecera para a prova havia sido encontrado morto em uma das escadarias
dos criados, golpeado brutalmente e desmembrado.
***
O novo assassinato projetara uma sombra sobre as duas semanas
seguintes e as duas provas que nelas ocorreriam. Celaena passou nas provas –
destreza e rastreamento – sem chamar muita atenção para si ou arriscar o
pescoço para salvar alguém. Nenhum outro campeão foi morto, ainda bem, mas
Celaena ainda se via olhando constantemente por cima do ombro, ainda que Chaol
parecesse considerar os dois assassinatos apenas incidentes infelizes.
Todo dia, ela ficava melhor na corrida, indo cada vez mais longe e
mais rápido, e conseguia evitar matar Cain quando ele a provocava no
treinamento. O príncipe herdeiro não se incomodou em mostrar o rosto nos
aposentos de Celaena de novo, e ela só o via durante as provas, quando Dorian
costumava sorrir e piscar para sua campeã, e fazia-a sentir-se ridiculamente
arrepiada e quente.
Mas Celaena tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Restavam apenas nove semanas até o duelo final, e alguns dos outros, inclusive
Nox, estavam indo bem o suficiente para fazer com que aquelas quatro vagas parecessem
muito preciosas. Cain definitivamente estaria lá, mas quem seriam os outros
três finalistas? Celaena sempre tivera tanta certeza de que conseguiria. Mas,
quando era sincera consigo mesma, não tinha mais certeza.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)