Capítulo 3 – Em que histórias são contadas e um roubo é descoberto
– Nós já vimos goblins, um troll e um
grifo — contou-lhe Jared ansiosamente enquanto todos se acomodavam no pé da
cama hospitalar. Era um alívio tão grande ter alguém que acreditasse no que
contavam. A-gora se ela lhes explicasse qual era a importância do Gui-a, tudo
ficaria bem.
— E o Tibério — acrescentou Mallory,
apanhando um biscoito e dando uma mordida. — Nós já o vimos, embora a gente não
saiba se ele conta como gnomo ou diabrete.
—
Certo — disse Jared. — Mas precisamos lhe perguntar uma coisa importante.
— Tibério? — perguntou a tia
Lucinda, dando tapinhas suaves na mão de Mallory. — Eu não o vejo há séculos.
Como ele está? O mesmo, eu espero. Eles sempre estão do mesmo jeito, não é?
— Eu... eu não sei — disse Mallory.
Tia Lúcia abriu a gaveta do
criado-mudo ao lado da cama e tirou dela uma bolsinha velha, verde, bordada com
estrelas.
— Tibério adorava isso.
Jared apanhou a bolsa e olhou dentro
dela. Várias pedrinhas e bolas brilhavam dentro da bolsinha.
— Elas são dele?
— Ah,
não — disse ela. — São minhas, ou eram, quando eu era jovem o suficiente para
brincar com essas coisas. Só quero dá-las de presente a ele. O coitadinho fica
sozinho naquela casa velha. Ele deve ter se sentido feliz com a chegada de
vocês.
Jared não achava que o Tibério tinha
ficado de todo contente com isso, mas não disse nada.
— Artur era seu pai? — perguntou
Simon.
— Era. Sim, ele era — disse ela
suspirando. — Vocês viram as pinturas dele na casa?
Os três fizeram que sim com a
cabeça.
— Ele era um artista maravilhoso.
Ilustrava comercial de refrigerante e meias femininas de seda. Fazia bo-necas
de papel para a Melvina e eu. Nós tínhamos uma coleção delas, com vestidinhos
diferentes para cada oca-sião. Fico pensando o que aconteceu com elas.
Jared deu de ombros.
— Talvez elas estejam no sótão.
— Não
interessa. Já faz tanto tempo que ele mor-reu. Eu nem sei se quero vê-las, de
qualquer modo.
— Por que não? — perguntou Simon.
— Elas me trazem lembranças. Meu pai
nos aban-donou, você sabe. — Lucinda olhou para as suas mãos finas. Elas
tremiam. — Papai saiu para dar uma caminhada e nunca mais voltou. Minha mãe
disse que já sabia que ele ia partir havia muito tempo.
Jared ficou surpreso. Ele nunca
tinha parado para pensar em como seria o tio Artur. Pensou no rosto sério, de
óculos, no quadro da biblioteca. Ele queria gostar do tio-bisavô, que desenhava
e enxergava os seres fantásti-cos. Mas se aquilo que Lucinda lhe contava era
verdade, então não ia gostar nem um pouco de Artur.
— Nosso pai também nos abandonou —
disse Ja-red.
— Eu só queria saber o porquê. —
Tia Lúcia virou para o lado a cabeça, mas Jared pensou ter visto o brilho de
lágrimas nos seus olhos. Ela apertou as mãos para impedir
que continuassem a tremer.
— Talvez ele tenha se mudado por
causa do trabalho — sugeriu Simon. — Como nosso pai.
— Ah, vai, Simon — disse Jared. —
Você não acredita nessa besteirada toda.
— Calem a boca, seus estúpidos —
gritou Mallory. — Tia Lúcia, por que é que a senhora está neste hospital? Quer
dizer, a senhora não é louca.
Jared estremeceu, certo de que tia
Lúcia ficaria brava,
mas ela só deu risada. A raiva dele diminuiu.
—- Depois que meu pai partiu, minha
mãe e eu mudamos para outra cidade, para morar com o irmão dela. Eu cresci ao
lado de minha prima Melvina, a avó de vocês. Eu lhe contei do Tibério e das
pequenas ninfas, mas eu acho que ela nunca realmente acreditou em mim.
“Mamãe morreu quando eu tinha só
dezesseis anos. Um ano depois, voltei para a casa. Tentei usar o pouco dinheiro
que tinha para consertá-la. Tibério ainda estava lá, claro, mas havia outras
coisas também. Às vezes, eu via formas esgueirando-se no escuro. Até que um dia
elas pararam de se esconder. Pensaram que eu estava com o livro do meu pai.
Elas me beliscavam, pinicavam e insistiam para que eu lhes entregasse o livro.
Mas eu não o tinha. Papai o havia levado. Ele nunca deixaria o Guia para trás.”
Jared começou a falar, mas sua tia
estava perdida em suas memórias e não reparou nisso.
— Certa noite, os seres fantásticos
me trouxeram um
pedaço de fruta, uma coisinha, do tamanho de uma uva e vermelha como uma rosa.
Eles prometeram que não me machucariam mais. Como eu era uma menina estúpida,
comi a fruta e selei o meu destino.
— Era venenosa? — perguntou Jared,
pensando na história da Branca de Neve e os sete anões.
— De certo modo, sim — disse ela com
um sorriso estranho. — Seu gosto era mais delicioso do que qualquer comida que
eu já tenha sonhado. Tinha o mesmo gosto que eu achava que flores teriam. Era
um gosto de música, de uma canção cujo nome a gente nunca consegue lembrar
muito bem. Depois disso, a comida dos humanos, a comida normal, ficou com
gosto de cinza e areia. Eu não conseguia mais comê-la. Eu podia ter morrido
de fome.
— Mas a senhora não morreu de fome —
disse Mallory.
— Graças às ninfas que brincavam
comigo desde que
eu era bem pequenina. Elas me alimentaram e me salvaram. — Tia Lúcia deu um
sorriso abençoado e estendeu uma mão. — Deixe que eu lhes apresente as
ninfas. Venham, minhas queridas, venham conhecer minha sobrinha e meus
sobrinhos.
Um zumbido veio do lado de fora da
janela aberta e uma nuvem que parecia uma poeira iluminada pelo sol
repentinamente se transformou em criaturas do tamanho de nozes, que batiam asas
fulgurantes. Elas cercaram a velha senhora, brincando com seus cabelos brancos
e pousando na cabeceira da cama.
— Elas não são lindas? — perguntou a
tia. — Minhas amiguinhas queridas.
Jared sabia o que elas eram —
ninfas, como as da floresta —, mas isso não impedia que fosse espantoso vê-las
voando em volta de sua tia. Já Simon parecia to-talmente hipnotizado.
Mallory falou, quebrando o silêncio
que se espalhara entre eles.
— Eu
ainda não entendi quem foi que trouxe a se-nhora para cá.
— Ah, sim, o hospital — disse tia
Lúcia. — Sua avó Melvina convenceu-se de que eu não andava bem. Pri-meiro ela
reparou nos hematomas e minha falta de apeti-te. Depois aconteceu uma coisa. Eu
não quero assustá-los, não, não é bem verdade. Eu quero assustá-los, sim. Eu
quero que vocês entendam como é importante que vocês saiam daquela casa.
“Estão vendo essas marcas?” A velha
senhora mos-trou o braço fino. As cicatrizes na pele eram fundas. Si-mon
prendeu a respiração. “Certa noite, bem tarde, os monstros chegaram. Umas
coisas pequeninas, verdes, com dentes horríveis. Eles me prenderam enquanto um
gigante me interrogava. Eu lutei, e as garras deles arra-nharam meus braços e
minhas pernas. Eu lhes disse que não havia livro nenhum, que meu pai tinha levado
embo-ra, mas nada do que eu dissesse fazia qualquer diferença. Antes daquela
noite, minhas costas eram retas. Desde então,
fiquei corcunda.”
“As marcas foram a gota d’água para
Melvina. Ela pensou que eu estivesse me cortando. Ela não conseguia entender...
então me trouxe para cá.”
Um dos seres fantásticos, vestindo
só um galhinho de alfazema, voou para perto dela e derrubou um pedaço de fruta
no cobertor, ao lado de Simon. Jared piscou — ele estivera tão envolvido na
história que quase se esque-cera das ninfas. A fruta tinha o aroma de grama
fresca, mel, estava embrulhada num papel fininho, mas Jared conseguia ver sua
polpa vermelha. Tia Lúcia olhou para a frutinha e seus lábios começaram a
tremer.
— É para você — disseram as pequenas
ninfas em coro. Simon apanhou a fruta e a segurou com os dedos.
— Você não vai comê-la, não é? —
perguntou Ja-red. Só de olhá-la, dava água na boca.
— Claro que não — disse Simon, mas
seus lhos bri-lhavam tamanha era sua vontade.
— Não coma — disse Mallory.
Simon
trouxe a fruta mágica para perto da boca, enquanto ainda a virava nos dedos.
— Um pedacinho, só uma mordida
pequena não vai fazer mal — disse ele baixinho.
A mão de tia Lúcia esticou-se e
arrancou a fruta dos dedos de Simon. Ela a enfiou na boca e fechou os olhos.
— Ei — disse Simon indignado, dando
um salto. Depois olhou ao seu redor, desorientado. — O que foi que aconteceu?
Jared olhou para sua tia-avó. As
mãos dela tremiam, mesmo quando as mantinha fechadas sobre o colo.
— Elas não fazem por mal — disse a
tia. — Elas só não compreendem o desejo que despertam. Para elas, essas frutas
são como a comida normal.
Jared olhou para as pequenas ninfas.
Ele não tinha certeza do que elas sabiam ou deixavam de saber.
— Mas agora vocês compreendem por
que minha casa é perigosa demais, meninos. Vocês têm de fazer com que sua mãe
entenda que precisa ir embora. Se as criaturas
souberem que vocês estão lá, pensarão que vocês estão com o Guia e nunca os
deixarão em paz.
— Mas nós estamos com o Guia — disse
Jared. — Foi por isso que viemos falar com a senhora.
Tia Lúcia perdeu o fôlego
— Não é possível...
— Nós seguimos as pistas da
biblioteca — explicou Jared.
— Está vendo, ela quer que a gente
se livre dele! — disse Mallory.
— Na biblioteca? Isso quer dizer...
— Tia Lúcia o-lhou para ele com mais pavor. — Se você tem o Guia, então precisa
sair daquela casa imediatamente! Você está entendendo?
— O Guia está bem aqui. — Jared
abriu o zíper da mochila e tirou dela um livro coberto por uma toalha. Mas,
quando o desembrulhou, o Guia de campo não estava mais ali. Todos
ficaram olhando para um livro velho de culinária, A magia do microondas.
Jared
virou-se para Mallory:
— Foi
você! Você o roubou! — Ele deixou cair a mochila e correu para cima dela aos
socos.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)