Capítulo 4 – Em que tudo pega fogo

Enquanto atravessava a auto-estrada, Jared tentou não desmanchar os nós propositadamente frouxos das cordas que prendiam suas mãos nas costas. Ele marchava atrás de Mallory, amarrada de maneira idêntica, e evitava olhar para a sombra distante de Byron e Simon que os sobrevoava — era sua única forma de escapar se as coisas dessem errado e a saída mais rápida se tudo desse certo.
Gritalhão espetou Jared com a ponta da espada dos gnomos.
— Ande logo, seus metidos.
— Pare com isso — disse Jared, quase tropeçando. Tibério pinicou a nuca do menino. — Nós ainda não entramos no esconderijo e esse negócio espeta — disse Jared.
— Certo. — O trasgo riu. — Meu montinho de carne apodrecida.
— Pare de atormentar o Jared ou eu mostro agora como é que se usa mesmo uma espada — sussurrou Mallory que, repentinamente, ficou imóvel.
As árvores ao lado da auto-estrada estavam quase que totalmente nuas, negras e mortas. As poucas folhas que restavam ficavam penduradas nos galhos como se fossem morcegos. As árvores pareciam ser menos reais do que a vegetação de ferro da floresta dos anões. Logo atrás, Jared conseguia ver o lixão.
O portão enferrujado se abriu, o caminho gasto, sujo, estava coberto de heras mortas. Um sinal de PROIBIDO ENTRAR estava preso no chão, num ângulo estranho. Carros velhos, pneus e outros lixos espalhavam-se em pilhas malfeitas que pareciam dunas de areia na praia. E, logo à frente, Jared podia avistar o palácio nitidamente. Seus pináculos feitos de vidro e estanho brilhavam contra a luz do pleno dia.
Jared viu vários goblins espreitando-os de dentro de um chassi abandonado. Dois deles farejaram o ar e um terceiro começou a latir. Depois, os goblins saíram engatinhando do veículo. Cada um deles erguia a cabeça de sapo e mostrava os dentes de vidro e osso. Eles carregavam espadas curvas e lanças forjadas pelos anões.
— Fale alguma coisa — sussurrou Jared ao Gritalhão.
— Eu capturei os humanos — berrou o Gritalhão. — E não foi graças a vocês, seus cães do lixo!
Um grande goblin aproximou-se. Os dentes eram de vidro de garrafa e reluziam ao sol — os reflexos eram marrons, verdes e claros. Ele estava vestido com um casaco rasgado com botões lustrosos e um chapéu de três pontas. Foi o chapéu que chamou a atenção de Jared porque tinha sido tingido com um marrom rústico estranho. Moscas os cercavam.
— Você disse que capturou os dois?
— Na maior facilidade, seu grande Verme de Rato — gabou-se o Gritalhão. — Lá estavam eles, a garota balançando esta espada aqui, ela é afiada, não é mesmo? Eu fui rápido demais para eles! Eu...
Verme de Rato o observou, e o trasgo continuou:
— Tudo bem — prosseguiu. — Eles estavam dormindo e eu...
Os goblins começaram a latir muito alto. Jared não tinha certeza se aquilo era uma risada ou coisa parecida.
— Mesmo assim, fui eu quem prendeu esses folgados! Eles são meus prisioneiros — disse o Gritalhão, erguendo a espada de Mallory. Ela parecia imensa em suas mãos pequeninas e estava tremendo levemente.
Verme de Rato latiu e a ponta da espada caiu. Jared olhou para cima tentando ver se Simon e Byron estavam por perto, mas ou eles estavam muito bem escondidos ou então tinham ido embora. Jared esperava que, pela milionésima vez, Simon conseguisse controlar o grifo.
— Faremos o que eu disser — declarou Verme de Rato. — Traga os prisioneiros!
Mallory e Jared foram empurrados e puxados pelo lixão por um monte de goblins que latiam. Eles precisavam ter o cuidado de não pisar nos restos de metal que saíam da terra seca como se fossem espetos tortos. Sempre que Mallory e Jared diminuíam o passo, os goblins os empurravam e os espetavam com suas armas. A ferrugem dos carros sujou a calça jeans de Jared quando ele se espremeu para atravessar a passagem estreita entre eles. Finalmente, os garotos foram conduzidos até uma clareira onde outra dúzia de goblins estava descansando em volta de uma fogueira. Ossos pequeninos espalhavam-se no meio dos outros restos.
Verme de Rato grunhiu e apontou em direção a um carro azul que estava perto do fogo.
— Amarrem os prisioneiros ali.
— Nós devíamos levá-los até o Palácio do Lixão — disse o Gritalhão, mas ele não falou com muita convicção.
— Quietos! — latiu o grande goblin. — Eu dou as ordens.
Um goblin sorridente usou um rolo de arame enferrujado para prender Jared e Mallory no carro. Quando o goblin amarrou o arame em volta do espelho lateral, Jared sentiu o fedor de seu bafo podre e reparou na pele estranha, manchada, os pelos que saíam dos ouvidos, o branco dos olhos e os longos bigodes que saíam de sua cara e ficavam se mexendo. Os outros goblins pararam num círculo, espiando e aguardando.
— Voltem aos seus postos, seus cachorros preguiçosos! — berrou um goblin imenso. Depois, voltando-se aos outros que já estavam ali quando ele chegou, o goblin disse, irado: — E que esses prisioneiros fiquem no mesmo lugar em que os deixo agora! Vou até Mulgarath contar-lhe a novidade.
Latindo, a maioria dos goblins retornou aos seus postos quando ele saiu, mas alguns deles permaneceram sentados em volta da fogueira.
Jared retorcia as mãos. Tinha certeza de que os nós ainda estavam suficientemente frouxos para que ele se libertasse, mas não tinha tanta certeza se eles seriam capazes de escapar de tantos goblins.
Jared e Mallory ficaram sentados na terra fria e arenosa por um tempo que lhes pareceu longo demais, observando os goblins que apanhavam pequenas lagartixas e as jogavam no fogo. O céu começou a escurecer, o sol espalhava uma luminosidade dourada ao anoitecer.
— Talvez esse plano não fosse assim tão bom — disse Mallory baixinho. — Não estamos perto da mamãe e não sabemos onde está o Simon.
— Mas estamos quase chegando — sussurrou Jared como resposta. As mãos deles estavam tão próximas que o garoto conseguia tocar a dela e apertá-la.
— Por que será que estamos esperando? — perguntou ela com um gemido.
— Talvez o grandão volte — respondeu Jared.
Do outro lado da fogueira um goblin atirou uma coisa preta, que se retorcia, para as chamas.
— Elas nunca se queimam — disse o goblin. — Eu queria que elas se queimassem.
— Mesmo assim não dá pra gente comer — disse outro.
Uma voz suave dentro do gorro de Jared fez com que ele se lembrasse de que Tibério ainda estava com eles.
— Que malandra, é uma salamandra — sussurrou o gnomo.
Jared olhou para perto de suas pernas. Uma coisa parecida com lagartixa estava perto de seu sapato. Ela era escura, brilhante, com patinhas dianteiras e um corpo comprido que trazia uma cauda. Estava engolindo a cauda de outra criatura.
— Jared — disse Mallory. — Olhe no fogo. O que são?
O garoto inclinou-se até onde conseguia com as mãos atadas. Ali, no meio das chamas, estavam todas as salamandras que os goblins tinham jogado no fogo. Mas, no lugar de queimar, elas ficavam sentadinhas calmamente cercadas pelas chamas. Quando Jared olhou, algumas das criaturas moveram-se ligeiramente, uma virou a cabeça e outra correu apressadamente para as chamas. Elas realmente eram imunes ao fogo.
Ele tentou pensar novamente no Guia de Campo de Artur. Lembrou que havia informações sobre salamandras, mas as imagens do livro lhe escapavam. Essas pequenas criaturas pareciam-se com as das ilustrações, mas ele não conseguia recordar-se do resto. Estava nervoso demais para concentrar-se — cheio de preocupação com sua mãe e seu irmão e a quantidade de goblins que o cercava.
Alguns minutos depois, um dos goblins aproximou-se e espetou a barriga de Jared com sua garra suja.
— Eles parecem apetitosos. Eu levaria um dia inteiro para engolir esse aí de cara rosada. Aposto que a carne dele é doce.
Um fio de saliva atingiu o chão ao lado de Jared.
O garoto engoliu em seco e olhou para o Gritalhão. O trasgo estava usando a espada dos gnomos para empurrar as brasas da fogueira. Ele não levantou os olhos, e isso fez com que Jared ficasse ainda mais nervoso.
Outro goblin acompanhou o olhar de Jared.
— Verme de Rato vai pensar que foi ele — disse o goblin, apontando para o Gritalhão. — Ele estava fazendo uma confusão antes.
Gritalhão levantou-se.
— No meio de tanto macaco queimado, cabeça-de-bagre...
Um terceiro goblin aproximou-se, passando a língua pelos dentes pontiagudos.
— Tanta carne boa.
— Saia de perto dele! — disse Mallory.
Ela soltou sua mão da de Jared. Só então o garoto percebeu que estivera apertando Mallory com tanta força que tinha enfiado as unhas na pele da irmã.
— Você prefere ser a escolhida para ser engolida? — perguntou um goblin com doçura. — Batatinha quando nasce esparrama pelo chão, a menina quando dorme põe a mão no coração... hum, eu gosto muito de batata!
— Coma isto! — disse Mallory. Ela puxou a mão livre e deu um soco no rosto dele.
— A espada! — gritou Jared ao Gritalhão, tentando soltar-se das amarras. O trasgo olhou uma vez para Jared, depois derrubou a espada dos gnomos e saiu correndo da clareira.
“Covarde!”, gritou Jared furioso.
Livre das cordas, ele correu em direção ao fogo, mas dois goblins agarraram suas pernas e o lançaram ao chão. Jared engatinhou até alcançar a lâmina, depois atirou a espada para a irmã. Sua mão doeu e ele percebeu, com fascínio e espanto, que havia se cortado. Mais goblins saltaram sobre suas costas, tentando derrubá-lo.
— Saiam de perto dele! — Mallory avançou, a espada brilhando quando ela a brandiu no ar.
Os goblins afastaram-se dela. A garota os ameaçou com a espada. Os goblins saíram de cima de Jared e procuraram as próprias armas.
— Ande! Corra! — gritou ela.
Um goblin saltou sobre o ombro da menina, dando-lhe uma mordida.
Jared agarrou o braço do goblin e o afastou da irmã. Mallory chutou outro que se aproximava. Um dos goblins apanhou uma lança forjada pelos gnomos e a atirou contra Mallory. Ela desviou-se da arma e depois golpeou, atingindo um goblin com sua lâmina. Quando a criatura berrou, Mallory congelou, percebendo o que fizera. Sangue manchava sua espada prateada. O goblin caiu, mas os outros vinham correndo e Mallory ainda estava parada, olhando para ele.
Um guincho vindo do alto interrompeu seu transe. Byron voou até a clareira e os goblins se dividiram, escondendo-se entre as pilhas de lixo. As asas do grifo batiam forte, fazendo com que a terra se movesse.
— Venha — disse Jared, agarrando o braço de Mallory.
Juntos, pularam no capo enferrujado de uma perua e depois saltaram num caminho estreito ladeado por uma cerca enferrujada. Passaram por uma banheira tombada e uma pilha de pneus. Uma montanha de portas estava apoiada contra um refrigerador e, quando passaram por ela, Jared parou subitamente. Deitada sobre um tapete de metal ondulado, havia uma vaca. 

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