Capítulo 4
Quando Celaena finalmente caiu na cama após a reunião na sala do
trono, não conseguiu adormecer, apesar da exaustão que lhe dominava o corpo.
Após ser banhada rispidamente por servos grosseiros, as feridas em suas costas
latejavam, e ela sentia como se o rosto tivesse sido esfregado até o osso.
Movendo-se para ficar de lado e assim poupar as costas enfaixadas, Celaena
passou a mão pelo colchão e espantou-se com a liberdade de movimentos. Antes
que entrasse no banho, Chaol removera seus grilhões. Ela sentira tudo: a
reverberação da chave virando na fechadura e os pesados elos de ferro se
afrouxando e caindo ao chão. Ainda podia sentir o peso fantasmagórico das
correntes sobre a pele. Ao olhar para o teto, Celaena flexionou as articulações
doloridas e deu um suspiro de contentamento.
Mas era tão esquisito deitar em um colchão, ter a pele acariciada
por sedas e um travesseiro amparando seu rosto! Ela se esquecera do gosto de
comida que não fosse papa de aveia fria e pão duro e se esquecera também da
diferença que corpo e roupas limpas faziam na vida de alguém. Agora tudo
parecia estranho. Mas o jantar não fora tão maravilhoso. O frango assado
não estava grande coisa, e, depois de algumas garfadas, Celaena teve de correr
para o banheiro, para esvaziar o conteúdo do estômago. Ela quisera comer,
passar a mão na barriga cheia, desejar jamais ter comido um pedaço e jurar que
nunca mais comeria. Celaena comeria bem no Forte da Fenda, não comeria? E o
mais importante: seu estômago se acostumaria.
Tinha emagrecido demais. Em lugar de carne firme, suas costelas
aparecia sob a camisola. E os seios! Outrora bem formados, agora não pareciam
maiores do que durante a puberdade. Um nó se formou na garganta de Celaena, e
ela engoliu em seco. A maciez do colchão a sufocava, então se moveu outra vez, deitando-se
de barriga para cima, apesar da dor nas costas.
O rosto de Celaena não estava muito melhor quando ela o viu de
relance no espelho do banheiro. Estava fatigado: maçãs do rosto protuberantes,
maxilar pronunciado e olhos levemente, porém inquietantemente, profundos.
Celaena respirou devagar, saboreando a esperança. Ela comeria. Muito. E se
exercitaria. Poderia ficar saudável de novo. Enquanto imaginava banquetes
magníficos e como recuperaria a antiga glória, Celaena finalmente adormeceu.
***
Quando Chaol foi buscá-la, na manhã seguinte, encontrou-a dormindo
no chão, enrolada em um lençol.
– Sardothien – disse ele. Celaena murmurou algo e enterrou o rosto
mais fundo no travesseiro. – Por que está dormindo no chão?
Ela abriu um olho. É claro que ele não mencionou quão diferente
Celaena parecia agora que estava limpa. Enquanto se levantava, Celaena
não se preocupou em esconder o corpo com o lençol. Os metros de tecido que
chamavam de camisola a cobriam bastante.
– A cama não estava confortável – respondeu, mas prontamente se
esqueceu do capitão ao perceber a luz do sol.
Pura, fresca e morna luz do sol. Luz em que Celaena poderia se
banhar todos os dias se conseguisse a liberdade, luz na qual afogar a escuridão
infinita das minas. A luz se infiltrava pelas cortinas pesadas e manchava o
cômodo com linhas espessas. Celaena esticou a mão com cautela.
O membro estava pálido, quase esquelético, mas havia algo ali,
algo por trás dos ferimentos, dos cortes e das cicatrizes, que parecia belo e
novo à luz da manhã.
Celaena correu até a janela e quase arrancou as cortinas ao
abri-las para ver as montanhas cinzentas e a desolação de Endovier. Os guardas
lá embaixo não olharam para o alto, e Celaena observou pasma o céu cinzento, as
nuvens que se apressavam na direção do horizonte.
Eu não terei medo. Pela primeira vez em muito tempo as
palavras soaram verdadeiras.
Os lábios de Celaena se abriram em um sorriso. O capitão levantou
uma sobrancelha, mas não disse nada.
Celaena estava alegre – radiante, na verdade – e sentiu o humor
melhorar quando os servos prenderam-lhe as tranças na nuca e vestiram-na em
roupas de montaria de qualidade surpreendente, que escondiam-lhe a silhueta
terrivelmente magra. Ela adorava roupas – amava o toque da seda, do veludo, do
cetim, da camurça e do chifon – e era fascinada pela elegância das costuras,
pela perfeição intricada de uma superfície bordada. Quando finalmente vencesse
a tal competição ridícula, estaria livre… poderia comprar todas as roupas que quisesse.
Celaena riu quando Chaol, irritado por ela estar há cinco minutos
se
admirando na frente do espelho, arrastou-a do quarto. O céu da
manhã fez com
que Celaena quisesse dançar e pular pelos salões até chegarem ao
pátio principal.
Mas ela hesitou ao ver as rochas cor de osso nos limites do
complexo e os pequenos vultos entrando e saindo dos buracos escuros escavados
nas montanhas.
O trabalho do dia já começara e continuaria sem Celaena depois da
partida; os prisioneiros permaneceriam lá, abandonados àquele destino terrível.
Com o estômago apertado, Celaena desviou o olhar dos trabalhadores e correu
para acompanhar o capitão enquanto se aproximavam de uma caravana de cavalos perto
da alta muralha.
De repente, latidos ecoaram, e três cães negros partiram do centro
da caravana para encontrá-los. Eram todos esguios feito flechas – sem dúvida pertenciam
aos canis do príncipe. Celaena apoiou um joelho no chão, sentindo as feridas
protestarem ao acariciar as cabeças dos cães e alisar o pelo suave dos animais.
Eles lamberam os dedos e o rosto dela, as caudas batendo no chão feito chicotes.
Um par de botas negras parou diante Celaena, e os cães se
acalmaram imediatamente, sentando-se. Celaena olhou para o alto e encontrou os
olhos cor de safira do príncipe de Adarlan estudando seu rosto. Ele deu um leve
sorriso.
– Estranho eles terem notado você – disse o príncipe, coçando a
orelha de um dos cães. – Você deu comida a eles?
Celaena negou com um movimento de cabeça enquanto o capitão se aproximava
pelas costas da assassina, tão perto que os joelhos dele roçaram as dobras da
capa de veludo verde-escuro dela. Bastariam dois movimentos para desarmá-lo.
– Você gosta de cães? – perguntou o príncipe. Celaena assentiu.
Por que já estava tão quente? – Será que serei agraciado com sua voz ou você
está decidida a ficar em silêncio pelo resto da jornada?
– Acho que suas perguntas não mereceram uma resposta verbal.
Dorian fez uma mesura.
– Peço que me perdoe, gentil senhora! Quão terrível deve ser o
esforço de responder uma pergunta! Da próxima vez, vou pensar em algo mais
interessante para dizer.
Com isso, o príncipe se virou e se afastou, os cães o seguiam de
perto. Celaena fez uma careta ao se erguer e fechou ainda mais o rosto ao
perceber que o capitão da guarda ria enquanto seguiam até o grupo que se
aprontava para partir. No entanto, a vontade irresistível de arremessar alguém
contra uma parede diminuiu quando lhe trouxeram uma égua malhada.
Celaena montou. O céu ficou mais perto, espraiando-se no infinito
sobre sua cabeça, por terras distantes das quais ela jamais ouvira falar.
Celaena agarrou a cabeça da sela. Estava mesmo indo embora de Endovier. Todos
aqueles meses sem esperança, as noites gélidas… agora no passado. Ela inspirou profundamente.
Sabia – apenas sabia – que se tentasse, conseguiria voar da sela.
Mas então sentiu o aperto dos grilhões nos braços.
Era Chaol, algemando seus pulsos enfaixados. Uma longa corrente ia
até o cavalo dele e desaparecia sob as capangas amarradas à sela. Ele montou o garanhão
negro, e Celaena cogitou por um instante pular do cavalo e usar a corrente para
enforcá-lo na árvore mais próxima.
O grupo era numeroso, vinte pessoas no total. Atrás de dois
guardas portando a flâmula imperial seguiam o príncipe e o duque Perrington.
Depois, um grupo de seis guardas reais, entediantes e desinteressantes como
mingau.
Mas, ainda assim, tinham sido treinados para protegê-lo – dela.
Celaena bateu com as correntes na sela e olhou para Chaol. Ele não reagiu. O
sol já estava mais alto no céu. Após uma última inspeção dos suprimentos, eles
partiram. Com a maior parte dos escravos trabalhando nas minas e o restante
dentro dos precários barracões de refino, o pátio gigante estava quase deserto.
A muralha assomou subitamente, e o sangue de Celaena pulsou forte nas veias. A
última vez em que estivera tão perto assim...
Um chicote estalou, seguido de um grito. Celaena olhou para trás,
para além dos guardas e da carroça de suprimentos, na direção do pátio quase
vazio. Nenhum daqueles escravos sairia dali, nem depois de mortos. A cada
semana, cavavam novas sepulturas coletivas atrás dos barracões de refino. E a
cada semana, essas sepulturas se enchiam.
Ela se lembrou das três grandes cicatrizes nas costas. Mesmo se
conquistasse a liberdade... mesmo se conseguisse viver em paz em algum lugar...
as cicatrizes sempre a lembrariam do que suportara. E que embora fosse livre, outros
não eram.
Celaena olhou à frente para expulsar aqueles pensamentos da mente
enquanto o grupo entrava na passagem da muralha. O interior era denso, quase enfumaçado,
e úmido. Os sons dos cavalos ecoavam como trovões. Os portões de ferro se
abriram, e ela vislumbrou o nome amaldiçoado da mina, que então se dividiu em
dois, afastando-se para dar-lhes passagem. Um piscar de olhos e os portões se
fecharam, rangendo. Celaena tinha saído.
Mexeu as mãos atadas, vendo as correntes balançando e batendo
entre ela e o capitão da guarda. A corrente estava atada à sela dele, a qual
estava afivelada ao cavalo, o qual, quando parassem, poderia ser desselado
sutilmente, apenas o bastante para que um puxão forte de Celaena arrancasse a
sela do animal, lançando o capitão ao solo, então ela...
Celaena sentiu que o capitão Westfall a observava. Ele a encarava
com o cenho franzido e os lábios apertados, e ela deu de ombros inocentemente, largando
a corrente.
À medida que a manhã avançava, o azul do céu ficava mais intenso e
quase não havia nuvens. Seguindo pela trilha da floresta, eles passaram
rapidamente dos ermos montanhosos de Endovier para o interior mais agradável.
Pelo meio da manhã, já tinham alcançado a floresta de Carvalhal, a
qual cercava Endovier e servia como divisão entre os países “ civilizados” do
leste e as terras não mapeadas a oeste. As lendas ainda falavam das pessoas
estranhas e perigosas que a habitavam, os cruéis e sanguinários descendentes do
decaído Reino das Bruxas. Uma vez Celaena conhecera uma jovem daquela terra amaldiçoada
e, embora tivesse se revelado realmente cruel e sanguinária, ainda era apenas
uma humana. E sangrara como humana.
Depois de horas de silêncio, Celaena voltou-se para Chaol.
– Dizem que quando o rei terminar essa guerra contra Wendlyn, ele
irá colonizar o oeste.
Celaena falou em tom casual, mas esperava uma confirmação ou uma negativa.
Quanto mais soubesse da situação atual e das ações do rei, melhor. O capitão a
avaliou de cima a baixo, franziu o cenho e desviou o olhar.
– Eu concordo – disse ela, suspirando alto. – O destino daquelas
planícies vazias e amplas daquelas regiões montanhosas miseráveis também me
parece bastante sem graça.
O maxilar do capitão se retesou quando ele trincou os dentes.
– Você pretende me ignorar pra sempre?
O capitão Westfall ergueu as sobrancelhas.
– Eu não sabia que estava ignorando você.
Celaena fez um biquinho e conteve a irritação. Não o satisfaria.
– Quantos anos você tem?
– Vinte e dois.
– Que jovem! – Celaena piscou os cílios, esperando alguma reação.
– Então
você subiu de posição em pouco tempo...?
O capitão assentiu.
– E qual a sua idade?
– Dezoito – Mas o capitão não replicou. – Eu sei – continuou ela
–, é impressionante eu ter realizado tanta coisa tão cedo.
– O crime não é uma realização, Sardothien.
– Sim, mas se tornar a assassina mais famosa do mundo é! – Ele não
respondeu. – Pode me perguntar como eu consegui, se quiser.
– Conseguiu o quê?
– Ficar tão talentosa e famosa tão cedo.
– Não quero saber.
Não era o que Celaena queria ouvir.
– Você não é nada gentil – respondeu ela, entredentes. Celaena
teria de tentar com mais afinco se quisesse irritá-lo.
– Você é uma criminosa. Eu sou o capitão da Guarda Real. Não tenho
obrigação de conversar com você nem de demonstrar cortesia. Agradeça por não a
termos deixado presa dentro da carroça.
– Bom, aposto que conversar com você deve ser desagradável mesmo quando
você demonstra cortesia aos outros. – O capitão não respondeu, e Celaena
se sentiu um pouco tola. Alguns minutos se passaram. – Você e o príncipe
herdeiro são amigos íntimos?
– Minha vida pessoal não é da sua conta.
Celaena estalou a língua.
– O quão bem-nascido você é?
– Bem o suficiente. – O queixo do capitão se levantou quase imperceptivelmente.
– Duque?
– Não.
– Lorde? – Ele não respondeu, e Celaena sorriu lentamente. – Lorde
Chaol Westfall. – Ela se abanou com a mão. – As damas da corte devem desmaiar
quando você passa!
– Não me chame assim. Não recebi o título de lorde – respondeu
ele.
– Você tem um irmão mais velho?
– Não.
– Então por que não usa o título? – Novamente, nenhuma resposta.
Celaena sabia que era melhor parar de bisbilhotar, mas não conseguia. – Algum escândalo?
Direito de nascença contestado? Em que tipo de intriga você se meteu?
O capitão apertou tanto os lábios, que ficaram brancos.
– Você acha que...
– Será que eu precisarei amordaçá-la ou você vai conseguir ficar
quieta sem minha ajuda? – Ele olhou para a frente, na direção do príncipe
herdeiro, com uma expressão impassível.
– Você é casado? – Celaena conteve o riso ao ver que o capitão
fizera outra careta quando a ouviu falar novamente.
– Não.
Celaena cutucou as unhas.
– Eu também não. – As narinas de Westfall se dilataram. – Que
idade você tinha quando virou capitão da guarda?
Ele mexeu nas rédeas e respondeu:
– Vinte.
O grupo parou em uma clareira, e os soldados apearam. Celaena
encarou Chaol, que desmontou.
– Por que paramos?
Chaol soltou a corrente da sela e deu um puxão firme, fazendo
sinal para que Celaena descesse da montaria.
– Hora do almoço – respondeu.
Eu tô amando a personalidade dela skksksksk ela e maravilhosa
ResponderExcluir