Capítulo 49

Dorian observava com os olhos arregalados de terror enquanto Celaena se debatia no chão, afastando coisas que os outros não podiam ver. O que estava acontecendo? O que havia naquele vinho? Mas também havia algo de anormal no modo como Cain ficava parado ali, sorrindo. Poderia... poderia realmente haver algo ali que os demais não conseguiam enxergar?
Celaena gritou. Foi o som mais terrível que Dorian já ouvira.
– Pare com isso, agora – disse ele a Chaol, quando viu o amigo se levantar de seu lugar perto do ringue. Mas Chaol, apenas olhou, boquiaberto, para a assassina que se debatia, o rosto pálido como a morte.
Celaena estava chutando e dando socos no ar enquanto Cain, agachado ao lado dela, lhe esmurrava a boca. O sangue não parava de escorrer. Aquilo não pararia até que o rei desse algum comando ou até que Cain deixasse Celaena inconsciente de vez. Ou pior. Dorian teve de se forçar para lembrar mais uma vez que qualquer interferência – até mesmo tentar dizer que o vinho fora adulterado – poderia resultar na desqualificação de Celaena.
A assassina se arrastou para longe de Cain, o sangue e a saliva dela formavam uma poça no chão.
Alguém tomou lugar ao lado de Dorian, e ele sabia, pelo modo como ela inspirou, que era Nehemia. A princesa disse algo em eyllwe e foi até a margem do ringue. Os dedos de Nehemia, cobertos pelas camadas do manto, quase escondidos ali, moviam-se rapidamente – traçando símbolos no ar.
Cain avançou na direção de Celaena com passos fortes. O rosto da assassina estava pálido e vermelho ao mesmo tempo. Ela se ajoelhou e olhou para o ringue sem conseguir enxergá-lo, olhou para todos, para algo além das pessoas, talvez.
Estava só esperando que ele. Esperando que ele...
A matasse.

***

Ajoelhada no chão, Celaena tentava tomar fôlego, incapaz de escapar da alucinação e voltar à realidade. Ali, os mortos a cercavam, esperando. A estranha sombra de Cain estava próxima, observando, os olhos flamejantes eram a única característica que se destacava. Cain foi envolvido pela escuridão como se retalhos de roupa fossem levados pelo vento.
Celaena morreria em breve.
Luz e escuridão. Vida e morte. Onde eu me encaixo?
O questionamento fez uma descarga de adrenalina tão forte percorrer o corpo de Celaena que suas mãos tatearam desesperadamente por algo que pudesse usar contra Cain. Não poderia acontecer dessa maneira. Ela encontraria um jeito – encontraria um jeito de sobreviver. Não terei medo. A assassina sussurrava aquilo todas as manhãs em Endovier; mas para que serviriam as palavras agora?
Um demônio foi até Celaena, e um grito – não de terror ou de desespero, mas um apelo – escapou do fundo da garganta da jovem. Um pedido de ajuda.
O demônio recuou, como se o grito o tivesse assustado. Cain comandou que avançasse.
Mas então algo extraordinário aconteceu.
Portas, portas e mais portas se escancararam. Portas de madeira, portas de ferro, portas de ar e de magia.
E Elena desceu de um outro mundo, coberta por uma luz dourada. O cabelo da antiga rainha cintilava como uma estrela cadente enquanto ela entrava em Erilea.
Cain gargalhou ao se aproximar da assassina, que arquejava, e ergueu a espada, mirando o coração de Celaena. Elena caminhava provocando explosões entre as fileiras de mortos, lançandoos em várias direções.
A espada de Cain desceu.
Uma rajada de vento atingiu o brutamontes com tanta força que o arremessou ao chão, a espada escapou-lhe da mão e caiu do outro lado da varanda. Mas, presa naquele mundo escuro e terrível, Celaena só teve tempo de ver a antiga rainha se lançar sobre Cain e derrubá-lo, antes que os mortos atacassem. Mas eles chegaram tarde demais.
Uma luz dourada envolveu Elena, protegendo-a contra os mortos e fazendoos recuar.
A ventania mais furiosa que qualquer um dos espectadores já presenciara ainda soprava pela varanda. As pessoas cobriram os rostos ao escutar os uivos do vento.
Os demônios gritaram e atacaram novamente. Mas uma espada soou, e um demônio caiu. Sangue negro escorria da lâmina, e a rainha rosnou furiosamente ao erguer a espada. Era um desafio; uma provocação para que tentassem passar por ela, para que testassem sua fúria.
Com a visão borrada, Celaena viu uma coroa de estrelas cintilando em cima da cabeça de Elena, a armadura de prata da rainha brilhava como um farol na escuridão. Os demônios gritaram, e Elena esticou uma das mãos; luz dourada saiu de sua palma e formou uma parede entre as duas mulheres e os mortos no momento em que Elena correu até Celaena e segurou com as mãos o rosto da assassina.
– Não posso lhe proteger – sussurrou a rainha, com a pele brilhando. Seu rosto era tão diferente, mais definido, mais belo. A herança dos feéricos. – Não posso lhe dar minha força. – Ela passou os dedos gentilmente na testa de Celaena. – Mas posso remover o veneno de seu corpo.
Longe delas, Cain se levantava com dificuldade. O vento vinha de todas as direções, imobilizando-o.
Do outro lado da varanda, uma rajada de vento fez com que a cabeça do bastão rolasse na direção de Celaena. O objeto quicou até parar a alguns metros de distância.
Elena colocou a palma da mão na testa de Celaena.
– Pegue – disse ela.
Celaena se esticou para alcançar o que restava do bastão, sua visão se alternava entre a varanda ensolarada e a escuridão interminável. O ombro da assassina se deslocou ligeiramente, e ela segurou o grito de dor. Finalmente,
Celaena sentiu a madeira macia e entalhada – e também a dor latejante nos dedos.
– Quando o veneno for eliminado, você não me verá. Não verá os demônios
– disse a rainha, traçando marcas na testa de Celaena.
Cain olhou para o rei ao recuperar a espada. O soberano assentiu. Elena segurou o rosto de Celaena nas mãos.
– Não tenha medo – falou a rainha. Além da barreira de luz dourada, os mortos gritavam e gemiam o nome de Celaena. Mas Cain, ainda com a entidade sombria que o habitava, passou pela barreira sem nenhum esforço, quebrando-a completamente.
– Truques medíocres, Vossa Majestade – disse Cain a Elena. – Apenas truques medíocres.
Elena ficou de pé imediatamente, bloqueando a passagem de Cain até Celaena. Sombras tremiam ao longo do contorno do adversário, os olhos dele brilhavam como fogo. A atenção de Cain se voltou para Celaena, e ele falou:
– Vocês foram trazidos aqui, todos vocês. Todos os participantes do jogo não terminado. Meus amigos – Cain apontou para os mortos – me contaram.
– Vá embora – rosnou Elena, formando um símbolo com os dedos. Uma luz azul forte irrompeu de suas mãos.
Cain gritou quando a luz o penetrou, cortando o corpo sombreado do competidor em vários pedaços. Então a luz sumiu, deixando a multidão de mortos e condenados. Elena ainda estava diante deles. A multidão atacou, mas a rainha os jogou para trás com o escudo dourado, ofegando entre os dentes trincados. Ela então caiu de joelhos ao lado de Celaena e segurou a assassina pelos ombros.
– O veneno se foi quase todo – disse Elena. O mundo ficou menos escuro; Celaena podia ver alguns raios de sol.
A jovem assentiu e a dor substituiu o pânico. Celaena sentia o frio do inverno, sentia a dor latejante na perna e o calor e a aderência do próprio sangue por todo o corpo. Por que Elena estava ali, e o que Nehemia estava fazendo no contorno do círculo, com as mãos se mexendo de forma tão estranha?
– Levante-se – comandou Elena. A rainha ficava cada vez mais translúcida. Assim que tirou as mãos do rosto de Celaena, uma luz branca tomou o céu. O veneno saíra do corpo da jovem.
Cain, que voltara a ser uma criatura de carne e osso, caminhou até a assassina jogada no chão.
Dor, dor, dor. Dor na perna, dor na cabeça, no ombro e no braço e nas costelas...
Levante-se – sussurrou Elena novamente, e desapareceu. O mundo ressurgiu.
Cain estava próximo, sem um traço sequer de sombra ao seu redor. Celaena ergueu os restos do bastão quebrado na mão. Sua visão clareou.
Então, tremendo e fazendo enorme esforço, a assassina se levantou.

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