Capítulo 5 – Em que descobrem o significado da frase “os dragões existem”

Por puro reflexo, Jared olhou para trás dele, mas os goblins tinham desaparecido. O grifo aterrissou batendo as garras no capo de um carro, arranhando-o, e imediatamente começou a recompor-se como se fosse um gato. Simon sorriu nas costas de Byron.
Jared virou-se para Mallory, mas ela estava olhando para a vaca. Ela estava acorrentada no chão, de olhos baixos, largos e suaves. Seu úbere estava coberto por algo que se parecia com um bando de cobras pretas que se retorciam enquanto procuravam um canto para mamar
em suas tetas avermelhadas. Elas escureciam o tapete de metal sobre o solo, como se formassem um tapete vivo. Levou um minuto para que Jared percebesse que as criaturas eram salamandras maiores.
— O que será que essas coisas estão fazendo? — perguntou Mallory.
A espada manchada de sangue ficou pendurada em sua mão e Jared foi tomado pelo impulso de arrancá-la dela e limpá-la antes que alguém reparasse naquela mancha.
Mas, no lugar disso, ele se aproximou da vaca.
— Devem estar tomando seu leite, eu imagino.
— Que nojo! — disse Simon, olhando por cima do ombro de Byron. — Que esquisito!
Muitas outras salamandras estavam deitadas na terra, as escamas estavam opacas e seus corpos se retorciam. Elas eram muito maiores do que as pequeninas que Jared e Mallory tinham visto no fogo.
— Elas estão trocando de pele — disse Simon. — O que se tornarão?
Jared balançou a cabeça.
— Salamandras imunes ao fogo. Mas elas não deveriam ser assim tão grandes. Elas se parecem mais com...
Mas ele não tinha muita certeza do que elas lhe recordavam. Havia algo de estranho com sua cabeça.
Foi nessa hora que Byron disparou e apanhou uma das criaturas pretas que se contorcia com o bico e a jogou para o alto, engolindo-a. Depois ele apanhou outra e mais outra ainda.
Guloso, ele se virou para a maior das criaturas, a que tinha o tamanho do braço de Jared, que estava deitada tomando sol. Ela virou-se e sibilou, foi quando Jared repentinamente percebeu o que era aquilo.
— Eles são dragões — disse ele. — Todos eles são dragões.
Do canto do olho, Jared percebeu que algo se movia em sua direção, rápido como um chicote. Ele virou-se, mas a coisa escura o atingiu no queixo. O garoto caiu de costas e só teve tempo para cobrir o rosto com as mãos antes que o corpo forte de um dragão do tamanho de um sofá se espalhasse em cima dele. A cabeça de Jared bateu no chão e, por um minuto, tudo ficou confuso.
— Jared! — gritou Mallory.
O dragão abriu a boca para exibir centenas de dentes finos como agulhas. Jared congelou. Ele estava assustado demais para se mexer. Sua pele queimava onde fora tocada pelo corpo da criatura.
Mallory atingiu a cauda do dragão com um golpe forte de espada. Sangue escuro espirrou quando o dragão virou-se em sua direção.
Jared levantou-se, tonto e trêmulo. Sua pele tinha se avermelhado e o corte que sofrerá um pouco antes latejava muito.
— Cuidado! — gritou ele. — Ele é venenoso!
— Byron! — gritou Simon, apontando para a forma escura que estava disparando atrás de Mallory. — Byron! Pegue o dragão!
O grifo balançou no ar soltando um guincho. Jared olhou em volta à procura de Simon e Byron, desesperado. Agora, como será que Mallory conseguiria escapar do dragão? Ela o golpeava com toda a sua perícia de esgrimista, mas o dragão era rápido demais. O corpo dele se enroscava e saltava como uma cobra, as patas pequeninas apertavam e prendiam, a boca era tão grande que ele poderia engoli-la de uma vez só. Mallory não o venceria. Jared precisava fazer alguma coisa.
Jared agarrou o objeto que estava mais perto — um pedaço de metal — e o atirou contra o dragão. A criatura girou e saiu correndo na direção dele, o fogo jorrava e as patas se abriam para prendê-lo. O dragão silvava.
O grifo despencou do céu, as patas esticadas na direção do dragão, o bico mirando suas costas. 
O dragão enroscou-se em Byron, apertando seu pescoço com tanta força que quase o sufocava. Simon agarrou-se desesperadamente nas asas do grifo e as empurrou de volta para o alto. O dragão contorceu-se, os dentes fincaram-se no corpo emplumado de Byron. Então, as asas do grifo falharam e, subitamente, Simon caiu.
Jared correu em direção ao irmão gêmeo que despencava diretamente no lixão. O garoto caiu sobre uma pilha de telas de computador e o braço esquerdo torceu-se de um jeito estranho.
— Simon?
Jared ajoelhou-se ao lado dele.
Simon gemia baixinho e usava o outro braço como apoio para conseguir sentar-se. A face esquerda e o pescoço estavam vermelhos por causa do veneno do dragão, mas o resto de sua pele parecia muito pálido.
— Você está bem? — sussurrou Jared. Mallory tocou o braço de Simon, preocupada.
Simon estremeceu e levantou-se, trêmulo. No alto, o dragão e o grifo estavam entrelaçados, retorcendo-se, um enrosco de escamas e pele. Os dentes do dragão estavam cravados bem fundo no pescoço de Byron e o grifo voava a esmo.
— Ele vai morrer. — Simon mancou em direção à vaca soterrada pela montanha de filhotes de dragão.
— O que você vai fazer? — perguntou-lhe Jared.
Quando Simon virou-se para eles, lágrimas escorriam de seus olhos. Enquanto Jared observava, Simon — que nunca tinha matado nada, que sempre levava as aranhas para fora de casa — pisou na cabeça de um filhote de dragão, esmagando-a com a sola do sapato. Ele guinchou.
Sangue de dragão manchou o solo e derreteu sob a ponta do sapato de Simon.
— Olhe! — gritou ele. — Veja só o que estou fazendo com seus filhotes!
O dragão virou-se em pleno ar, e Byron aproveitou a oportunidade. Enfiando o bico no pescoço da criatura, ele o rasgou de ponta a ponta. O dragão morreu sob as garras de Byron.
— Simon! Você conseguiu! — disse Mallory.
Simon ficou olhando quando Byron desceu e ficou ao seu lado. As penas estavam manchadas de sangue e ele balançou o corpo para limpá-lo. Depois, derrubou o corpo do imenso dragão e começou a devorar os filhotes.
— Não foi assim que planejamos — disse Simon.
— Mas estamos bem mais perto do palácio agora — disse Jared. — A mamãe deve estar lá.
— Você acha que vamos conseguir, Simon? — perguntou Mallory, embora não parecesse estar bem, com sua face ferida e a jaqueta rasgada sobre o ombro.
Simon fez que sim com a cabeça, o rosto sério.
— Eu consigo continuar, mas não sei se o Byron consegue.
— Teremos que deixá-lo aqui — disse Jared. — Acho que ele ficará bem, o veneno não parece afetá-lo.
Byron engoliu outra salamandra preta e olhou para os irmãos Grace com seus estranhos olhos dourados. Simon o acariciou cuidadosamente no focinho.
— É, parece que esses dragões são sua comida preferida.
— Deixe-me ver se posso dar um jeito no seu braço — disse Mallory. — Eu acho que ele está quebrado.
Ela usou a camiseta para fazer uma tipóia para o braço de Simon.
— Você tem certeza do que está fazendo? —perguntou Simon, retraindo-se.
— Claro que tenho — disse Mallory, amarrando a camiseta com força.
Eles marcharam na direção do palácio. Era uma estrutura maciça construída de estuque e cimento, misturado com cascalho, vidro e latas de alumínio. Ela parecia ter sido moldada e, em certos pontos, dava a impressão de ser feita de lava seca. As janelas tinham um formato estranho, como se o arquiteto tivesse construído a casa a partir das sucatas que encontrara. Luzes estavam acesas dentro do palácio. Vários pináculos formavam pontas delicadas no teto central, que era preto de piche com camadas sobrepostas de vidro e estanho que se pareciam com escamas de peixe. Quando Jared se aproximou, reparou que o portão principal era feito de cabeceiras velhas de latão. Atrás do portão havia uma trincheira cravada de pedaços de metal enferrujado e lascas de vidro. A ponte levadiça estava abaixada.
— Será que não seria mais normal se houvesse mais goblins de guarda? — perguntou Mallory.
Jared olhou ao seu redor. Ao longe ele avistava fios de fumaça saindo de um acampamento que, na certa, era de goblins.
— Vai escurecer daqui a pouco — disse Simon.
— Tudo está fácil demais — disse Jared. — Como se fosse uma armadilha.
— Armadilha ou não, vamos ter que continuar — disse Mallory.
Simon concordou com a cabeça. Jared ainda achava que Simon parecia pálido demais e se perguntava se ele sentia muita dor. Pelo menos o vermelho da pele tinha diminuído.
Ao pisar na ponte, cuidadosamente, Jared preparou-se para enfrentar o inesperado. Ficou olhando para os cacos de vidro que saíam do fosso. Depois começou a correr. Mallory e Simon esperaram um pouco e depois saíram correndo atrás dele.
Quando entraram no palácio, descobriram que estavam num saguão imenso, construído com uma sucata que parecia cimento. Os arcos eram ornamentados com páralamas retorcidos. Calotas caíam do teto presas por correntes enferrujadas, emanando a luz tênue de dezenas de candelabros que respingavam cera de vela. Ocupando uma parede inteira, havia uma lareira tão grande que Jared poderia ser assado lá dentro.
Tudo estava estranhamente silencioso. Os passos ecoavam nas salas escuras e as sombras se esticavam pelas paredes.
Eles andaram mais um pouco, passando por sofás com cheiro de mofo, cobertos por mantas puídas.
— Você tem algum plano, por mais remoto que seja? — perguntou Mallory.
— Não — disse Jared.
— Não — disse Simon fazendo eco.
— Quietos — disse Tibério. — Tenham cuidado, ouvi um barulho distante.
Eles ficaram um pouco quietos, ouvindo. Havia um ruído ao longe que parecia ser uma música.
— Eu acho que o barulho vem dali — disse Jared, abrindo uma porta que estava decorada com mais de doze maçanetas. Dentro do cômodo havia uma mesa longa, alta, feita com uma prancha de madeira sobre três cavaletes. Velas grossas, cheirando a cabelo queimado, cobriam quase toda a mesa. Fiozinhos de cera derretida escorriam pelos lados. Também sobre a mesa havia pratos de comida, travessas compridas, restos de rã assada, maçãs mordidas, o rabo e os ossos de um peixe grande. As moscas voavam famintas em volta das sobras. De algum ponto da sala vinham notas agudas.
— O que será isso? — perguntou Simon, passando por uma poltrona. Depois, ele se deteve e parou para olhar algo que Jared e Mallory não conseguiam enxergar. Ambos se juntaram a ele.
Uma urna grande estava no chão, debaixo de uma janela aberta. Ali, sob a luz trêmula, Jared via ninfas presas no mel, afundando no líquido como se estivessem na areia movediça. Os gritinhos das ninfas produziam um som que eles nunca tinham ouvido antes.
Simon esticou a mão para libertar as ninfas, mas o mel estava tão espesso que grudava em suas asinhas, rompendo-as. As ninfas gritaram quando ele as colocou sobre a mesa, formando um montinho pegajoso. Uma delas estava completamente inerte e ficou caída, como se fosse uma boneca. Jared desviou os olhos em direção à janela.
— Você acha que existem mais ninfas por aqui? — sussurrou Mallory.
— Acho que sim — disse Simon. — No fundo.
— Precisamos ir embora. — Jared caminhou em direção à porta. A lembrança das pequenas ninfas afogadas o atormentava.
— Este palácio está silencioso demais — disse Mallory enquanto o seguia.
— Mulgarath não pode ficar aqui o tempo inteiro — disse Jared. — Talvez seja pura sorte. Talvez seja possível encontrar a mamãe e irmos embora.
Mallory concordou com a cabeça, mas não parecia convencida.
Eles passaram por um mapa pendurado numa parede. Ele se parecia muito com o velho mapa de Artur, mas alguns lugares tinham sido renomeados. Jared reparou que no local do lixão estava escrito PALÁCIO DE MULGARATH e, no alto do mapa, vinha o DOMÍNIO DE MULGARATH.
— Veja! — disse Simon.
Logo à frente havia uma sala enorme com um trono no centro. Ao redor do trono estavam carpetes com estampas diferentes, todos eles puídos e esburacados por traças. O trono era de metal, soldado, com alguns entalhes.
No outro canto da sala havia uma escada espiralada, os degraus eram pranchas suspensas por duas longas correntes de metal. A coisa toda lembrava uma teia, movendo-se levemente ao sabor da brisa. Sob a luz tênue, parecia impossível subir aqueles degraus.
Mallory saltou sobre o primeiro degrau. Ele fez um barulho estranho. Ela tentou subir o segundo, mas suas pernas eram curtas demais.
— Estes degraus estão muito separados! — exclamou.
— Perfeitos para um ogro — comentou Simon.
Ela finalmente deu um jeito de alcançar o segundo degrau, primeiro, apoiou-se com o peito, depois, com o resto do corpo.
— Simon não vai conseguir subir esta escada — disse ela.
— Eu consigo... eu dou um jeito — insistiu Simon, esticando-se desajeitadamente até conseguir alcançar o primeiro degrau.
Mallory fez que não com a cabeça.
— Você vai cair.
— Segure firme — disse Tibério de dentro do gorro de Jared. — Você consegue sim.
Então, para o espanto de Jared, ele viu quando os degraus se juntaram e ficaram firmes, parados, aguardando para que os gêmeos os galgassem. Usando seu braço firme e apoiando-se em Mallory, Simon subiu as escadas.
— Melhor andar logo para chegar logo — disse Tibério.
— Tudo bem. — Jared foi subindo os degraus. Mesmo contando com a ajuda do gnomo, seu coração disparava cada vez mais. A mão ferida queimava quando ele segurava as correntes. Olhar para baixo, no escuro, deixava Jared com tontura momentânea.
No alto, eles chegaram a um corredor com três portas, todas elas diferentes.
— Vamos tentar a porta do meio — disse Simon.
— Nós fizemos tanto barulho, agora — disse Mallory. — Onde foi parar todo mundo? Esse lugar é esquisito.
— Precisamos continuar — disse Jared.
Mallory suspirou e abriu a porta. Ela dava para uma sala ampla com um balcão construído com pedras e correntes todas diferentes entre si. Uma janela de catedral gigantesca, cheia de mosaicos translúcidos, feitos de cacos de vidro, cobria a outra parede. A mãe deles estava num canto, amarrada, amordaçada e inconsciente. No outro, pendurado em cordas e em uma roldana, estava seu pai.

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