Capítulo 5

Celaena afastou alguns fios de cabelo rebeldes que lhe caíam pela face e permitiu que a conduzissem até a clareira. Se quisesse se libertar, teria de passar por Chaol primeiro. Se estivessem sozinhos, talvez ela tentasse fugir, embora as correntes dificultassem o intento; mas com um grupo de guardas treinados para matar sem hesitar...
Chaol se manteve perto de Celaena enquanto a fogueira era acesa e a comida era retirada das caixas e dos sacos de suprimento. Os soldados rolaram toras para fazer pequenos círculos onde se sentavam enquanto os companheiros mexiam e fritavam a comida. Os cães do príncipe herdeiro, que tinham seguido fielmente o dono, aproximaram-se da assassina e se deitaram aos seus pés, com as caudas batendo. Pelo menos alguém apreciava a companhia de Celaena.
A assassina, que já estava faminta quando a comida finalmente foi trazida, irritou-se ainda mais com a demora do capitão em remover os grilhões. Após lançar um longo olhar de aviso na direção dela, Chaol abriu as algemas e prendeu-as nos calcanhares de Celaena. Ela revirou os olhos enquanto levava um pouco de carne à boca, mastigando devagar. A última coisa de que precisava era passar mal na frente deles. Enquanto os soldados conversavam entre si, começou a prestar atenção nos arredores. Celaena e Chaol sentavam-se junto a cinco soldados. O príncipe, é claro, sentava-se com Perrington em cima de tocos, longe dela. Dorian fora arrogante e parecera divertir-se levianamente na noite anterior, mas agora exibia uma expressão grave enquanto conversava com o duque. O corpo inteiro do príncipe parecia tenso, e Celaena não deixou de notar o modo como ele trincava os dentes quando Perrington falava. Qualquer que fosse a relação entre os dois, não era cordial.
Enquanto mastigava, Celaena desviou a atenção para as árvores que os cercavam. A floresta se aquietara. As orelhas dos cães negros estavam erguidas, embora eles não parecessem incomodados com o silêncio. Até os soldados estavam quietos. O coração de Celaena bateu mais forte. A floresta era diferente ali.
As folhas pendiam feito joias: gotinhas de rubi, pérola, topázio, ametista, esmeralda e granada; e um tapete dessas riquezas recobria o chão em volta deles. Apesar dos estragos das guerras de conquista, aquela parte da floresta de Carvalhal permanecia imaculada. E o lugar ainda reverberava com os resíduos do poder que outrora dera às árvores sua beleza sobrenatural.
Celaena tinha apenas 8 anos quando Arobynn Hamel, seu mentor e o rei dos Assassinos, a encontrara semi submersa na margem de um rio congelado, levando-a para seu forte na fronteira entre Adarlan e Terrasen. Enquanto a treinava para se tornar sua assassina mais leal e competente, Arobynn jamais permitira que Celaena voltasse para seu lar em Terrasen. Mas ela ainda se lembrava da beleza do mundo antes que o rei de Adarlan ordenasse que a maior parte dele fosse queimada. Agora não havia mais nada lá para Celaena e jamais haveria. Arobynn nunca dissera isso em voz alta, mas se ela tivesse recusado sua oferta para treiná-la, ele a teria entregue para os que a desejavam morta. Ou pior.
Celaena acabara de ficar órfã e mesmo com 8 anos já sabia que uma vida com Arobynn, com um nome novo que ninguém reconheceria – mas que algum dia todos temeriam – significava uma chance de recomeçar. De escapar do destino que a forçara a pular no rio gelado aquela noite, dez anos atrás.
– Floresta maldita... – rosnou um soldado de pele cor de oliva. Um soldado atrás dele deu uma risadinha. – Quando mais cedo queimarem isto, melhor. –
Os outros soldados assentiram, e Celaena enrijeceu.
– Isto está cheio de ódio – comentou outro soldado.
– E o que vocês esperavam? – interrompeu Celaena. A mão de Chaol pousou rapidamente no cabo da espada, e os soldados se voltaram para ela, alguns deles fazendo caretas de pouco caso. – Esta floresta não é igual às outras.
– Ela apontou para as árvores com o garfo. – É a floresta de Brannon.
– Meu pai me dizia que esta floresta era cheia de fadas – disse um soldado. – Mas todas sumiram.
– Junto com os malditos feéricos – respondeu outro soldado, após morder uma maçã.
– Nós nos livramos deles, não foi? – perguntou um terceiro.
– Cuidado com a língua – repreendeu Celaena. – O rei Brannon era do povo feérico, e Carvalhal ainda é dele. Eu não me surpreenderia se as árvores ainda se lembrassem dele.
Os soldados riram.
– Essas árvores teriam de ter uns dois mil anos de idade! – disse um deles.
– Feéricos são imortais – respondeu ela.
– Mas as árvores não são.
Irritada, Celaena balançou a cabeça e comeu outro bocado.
– O que você sabe sobre a floresta? – perguntou Chaol, serenamente.
Será que estava zombando dela? Os soldados se inclinaram para a frente, prontos para rir. Mas os olhos castanhos do capitão mostravam mera curiosidade.
Celaena engoliu a carne.
– Antes de Adarlan iniciar a conquista, esta floresta estava imersa em magia
– respondeu ela em voz baixa, mas não de maneira servil.
Chaol esperou que Celaena continuasse, mas ela nada disse.
– E...? – insistiu ele.
– E isso é tudo o que eu sei – respondeu ela, sustentando o olhar de Chaol.
Desapontados, os soldados voltaram a se concentrar na refeição.
Celaena estava mentindo, e Chaol sabia disso. Ela sabia bastante sobre a floresta, sabia que os moradores dali eram do povo das fadas: gnomos, duendes, ninfas, goblins, mais nomes do que era possível enumerar ou lembrar. Todos governados por seus primos antropoides maiores, os imortais feéricos – os habitantes e colonizadores originais do continente, os seres mais antigos de Erilea.
Com a corrupção crescente de Adarlan e a campanha do rei para caçá-los e executá-los, as fadas e os feéricos fugiram, procurando abrigo nos lugares intocados e ermos do mundo. O rei de Adarlan proscrevera tudo: magia, feéricos e fadas; e removera os vestígios tão completamente que mesmo os que a carregavam no sangue chegavam a crer que a magia jamais existira e a própria Celaena era um exemplo disso. O rei dissera que a magia era uma afronta à Deusa e a seus deuses; que manipular magia era uma imitação impertinente dos poderes divinos. Embora o rei tivesse proibido a magia, a maioria das pessoas sabia da verdade: um mês após a proclamação, a magia desaparecera completamente, por conta própria. Talvez tivesse antecipado os horrores que se seguiriam.
Celaena ainda sentia o cheiro das queimadas que se alastraram durante seu oitavo e nono anos de vida. O cheiro de livros queimando, repletos de conhecimento antigo, insubstituível, os gritos de videntes e curandeiros sendo consumidos pelas chamas, as fachadas e locais sagrados demolidos, conspurcados e apagados da história. Muitos dos usuários de magia que não foram queimados terminaram como prisioneiros em Endovier, e a maioria não sobreviveu lá. Já fazia tempo desde a última vez que Celaena contemplara os dons que perdera, embora a memória de suas habilidades assombrasse seus sonhos. Apesar da carnificina, talvez tivesse sido bom que a magia desaparecesse. Era algo perigoso demais para as pessoas sãs controlarem; e seus talentos talvez já a tivessem destruído àquela altura da vida.
A fumaça da fogueira fazia arder os olhos enquanto Celaena mastigava. Jamais esquecera as histórias sobre a floresta de Carvalhal, lendas de clareiras sombrias e terríveis, fontes profundas e serenas e cavernas cheias de luz e canto celestial. Mas aquilo agora eram apenas histórias e nada mais. Falar no assunto era procurar problemas.
Ela olhou para a luz do sol que se infiltrava entre as copas, para a maneira como as árvores balançavam ao vento, seus longos braços magros emaranhando-se uns nos outros. Celaena conteve um calafrio.
Por sorte, o almoço acabou logo. As correntes voltaram para seus pulsos, e os cavalos, depois do descanso, voltaram a receber as cargas. As pernas de Celaena estavam tão enrijecidas, que Chaol teve de ajudá-la a subir no cavalo. Doía cavalgar, e o nariz dela também sofria com o contínuo cheiro de cavalo suado e excremento que vinha da frente do grupo.
O grupo seguiu viagem pelo resto do dia, e a assassina ficou em silêncio enquanto via a floresta passar. A tensão em seu peito recusou-se a abandoná-la até finalmente deixarem a clareira brilhante para trás. O corpo de Celaena doía quando por fim pararam para passar a noite. Ela nem tentou falar durante o jantar, nem se importou quando montaram sua pequena tenda com guardas postados do lado de fora. Celaena teve permissão para dormir, ainda acorrentada a um dos guardas. Teve um sono sem sonhos e ao acordar não conseguiu acreditar no que via.
Pequenas flores brancas tinham sido deixadas ao pé da cama improvisada, e pegadas miúdas como de crianças formavam um rastro para dentro e para fora da tenda. Antes que alguém entrasse, Celaena passou o pé sobre as pegadas, apagando-as, e enfiou as flores em uma sacola próxima.
Embora ninguém tivesse mencionado mais nada sobre fadas pelo resto da viagem, Celaena passou a examinar com afinco o rosto dos soldados para detectar algum sinal de que eles teriam visto algo estranho. Ela passou a maior parte do dia seguinte com as mãos suadas e o coração acelerado, mantendo sempre a atenção nos bosques que passavam.

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