Capítulo 7 – Senso de Humor
Quinta-Feira, 15 de Julho de 1993
Parte 2 – A História de Emma
Covent Garden e King’s Cross
Ian Whitehead estava sozinho numa mesa para dois na filial do
Forelli’s de Covent Garden, quando olhou para o relógio: quinze minutos de
atraso, mas imaginou que fosse parte do exótico jogo de gato e rato de um
encontro. Bem, que o jogo comece. Molhou o pão ciabatta no pratinho de
azeite de oliva como se estivesse umedecendo um pincel, abriu o cardápio e
verificou quais pratos estavam dentro das suas possibilidades.
A vida de comediante de stand-up ainda não tinha trazido a
riqueza e a exposição prometidas na TV. Se os jornais de domingo alardeavam que
o humor era uma nova onda, como o rock and roll, por que ele ainda batalhava
para fazer apresentações gratuitas no Sir Laffalots nas noites de terça-feira?
Já tinha adaptado seu repertório para se encaixar na tendência atual, retirando
o material político e empírico e enveredando pela comédia de costumes,
surrealismo, canções cômicas e esquetes. Mas nada parecia fazer o público rir.
Uma tentativa de se adotar um estilo mais agressivo tinha provocado murros e
chutes, e seu curso com uma equipe de comediantes aos domingos à noite só havia
provado que ele não conseguia ser engraçado quando se manifestava de forma
espontânea e improvisada. Mas Ian continuava na batalha, indo e voltando pela
Northern Line, rondando as imediações do Circle em busca das boas risadas.
Talvez houvesse algo no nome “Ian Whitehead” que dificultasse a
escrita em néon. Já tinha até considerado trocá-lo por um nome mais divertido,
jovial e monossilábico — Ben, Jack ou Matt —, mas em meio a essa busca de sua
verdadeira essência artística teve de aceitar um emprego na Sonicotronics, uma
loja de artigos eletrônicos na Tottenham Court Road, onde jovens pálidos de
camiseta vendiam memória RAM e processadores gráficos para outros jovens
pálidos, também de camiseta. O salário não era grande coisa, mas tinha as
noites livres para suas apresentações, e muitas vezes fazia os colegas rirem
com suas piadas mais recentes.
Mas o melhor da Sonicotronics, a melhor coisa que aconteceu, foi
ter topado com Emma Morley na hora do almoço. Ian estava na porta de um
escritório da Igreja de Cientologia, decidindo se fazia ou não um teste de
personalidade, quando avistou Emma, quase escondida atrás de uma grande cesta
de roupa suja; ao abraçá-la, a Tottenham Court Road iluminou-se gloriosa e
transformou-se numa rua de sonhos.
No segundo encontro, lá estava ele num elegante e moderno
restaurante italiano perto de Covent Garden. O gosto de Ian tendia mais para o
apimentado e os temperos fortes, o salgado e o crocante, e ele teria preferido
um curry. Mas sabia o suficiente sobre os caprichos da alma feminina
para deduzir que Emma iria querer verduras e legumes frescos. Olhou para o relógio
de novo — vinte minutos atrasada — e sentiu uma pontada no estômago, que em
parte era fome, em parte, amor. Havia anos seu coração e seu estômago estavam
pesados de amor por Emma Morley, e não era apenas amor platônico sentimental,
mas também um desejo carnal. Depois de todos esses anos, ainda guardava —
lembraria para o resto da vida — a imagem dela só com as roupas de baixo descombinadas,
no vestiário do Loco Caliente, iluminada por uma nesga do sol da tarde que
parecia a luz de uma catedral, gritando para ele sair e fechar a maldita porta.
Sem saber que Ian estava pensando nas roupas de baixo dela, Emma
Morley o observava ao lado do maître, notando que ele realmente estava
mais bonito. A coroa de cabelos crespos e compactos tinha desaparecido, agora aparada
bem curta e ligeiramente alisada com um pouco de gel, e também tinha perdido
aquele ar de “garoto recém-chegado à cidade”. Na verdade, não fosse pelas roupas
terríveis e pela forma como sua boca pendia sempre aberta, ele até seria
atraente.
Embora ela se encontrasse em uma situação estranha, reconhecia que
era um restaurante clássico para um encontro — com o preço certo, não muito
iluminado, não muito pretensioso, mas também não muito barato, o tipo de lugar
onde as pizzas custavam caro. A decoração era um pouco cafona, mas não chegava
a ser ridícula, e ao menos não serviam curry ou, Deus me livre, burritos
de peixe. O salão era decorado com velas e palmeiras, e no ambiente ao lado um
senhor interpretava temas de Gershwin num piano de cauda: “I hope that he /
turns out to be / someone to watch over me.”
— Está procurando alguém? — perguntou o maître.
— Aquele rapaz ali.
No primeiro encontro Ian a levou para assistir a Uma noite
alucinante 3 no Odeon, na Holloway Road. Sem melindres ou esnobismo, Emma gostava
de filmes de terror mais do que a maioria das mulheres, mas mesmo assim achou a
escolha estranha e um tanto arrogante. A liberdade é azul estava em
cartaz no Everyman, mas lá estava ela vendo um homem com uma serra elétrica no lugar
do braço e considerando tudo aquilo estranhamente relaxante. Do ponto de vista
convencional, esperava que ele a levasse a um restaurante depois, mas parece
que para Ian uma ida ao cinema não seria completa sem uma refeição de três
pratos durante a sessão. Ian analisou o menu da barraquinha na rua como se
fosse um cardápio à la carte antes de pedir nachos de entrada, um cachorro-quente
como prato principal e chocolate com passas de sobremesa, enxaguando tudo com
um balde de coca do tamanho de um torso humano, fazendo com que as poucas cenas
reflexivas de Uma noite alucinante 3 fossem acompanhadas pelo sopro
quente e tropical de Ian arrotando no próprio pulso.
Apesar de tudo isso — do amor pela violência extrema e por comidas
salgadas, da mostarda no queixo —, Emma se divertiu mais do que esperava. No
caminho para o pub Ian mudou de lado na calçada para não permitir que
ela fosse atropelada por um ônibus desgovernado — um comportamento estranho e
fora de moda ao qual Emma jamais havia se sujeitado —, enquanto discutiam os efeitos
especiais, as cabeças cortadas e as eviscerações, com ele afirmando, depois de
alguma análise, que aquele era o melhor filme da trilogia Uma noite.
Trilogias e antologias, comédia e terror ocupavam lugar de destaque na vida
cultural de Ian, e no pub os dois tiveram uma interessante discussão
sobre se uma graphic novel poderia ser tão profunda e significativa
quanto, digamos, um romance de George Eliot como Middlemarch. Atento e
protetor, ele parecia um irmão mais velho que sabia das coisas, mas com a diferença
de obviamente querer dormir com ela. O olhar dele era tão escancarado, tão
penetrante que Emma diversas vezes achou que havia algo fora do lugar em seu
rosto.
Foi dessa mesma forma que Ian sorriu para ela no restaurante,
levantando-se com tanto entusiasmo que esbarrou na mesa com a coxa, entornando
água nas azeitonas de cortesia.
— Não é melhor pedir um pano? — ela perguntou.
— Não, tudo bem, eu posso usar o paletó.
— Você não vai usar o paletó, toma... use o meu guardanapo.
— Puxa, eu afoguei nossas azeitonas. Não literalmente, devo
acrescentar!
— Ah. Certo. Tudo bem.
— Foi uma piada! — bradou, como se gritasse “Fogo!”. Não se sentia
tão nervoso desde aquela desastrosa noite do último improviso, e disse isso a
si mesmo com firmeza, tentando se acalmar enquanto enxugava a toalha da mesa.
Quando ergueu os olhos, viu Emma se desvencilhando do blazer leve, projetando
os ombros para trás e empinando os seios daquele jeito bem feminino, sem perceber
a dor que podiam provocar. E assim aconteceu a segunda grande bolha de amor e
desejo da noite por Emma Morley.
— Você está muito bonita — deixou escapar, incapaz de se conter.
— Muito obrigada. Você também está elegante — ela replicou
automaticamente. Ian usava um uniforme de comediante de standup: paletó
de linho por cima de uma camiseta preta. Em homenagem a Emma, sem nomes de
banda ou frases irônicas no peito, por isso muito discreta. — Gostei desse
modelo — observou Emma, apontando o paletó. — Bem elegante!
Ian alisou a lapela com o polegar e o indicador, como se dissesse:
“Imagina, essa coisa velha?”
— Quer tirar o casaco? — perguntou o garçom, delicado e sedutor.
— Sim, obrigada. — Emma entregou o blazer, e Ian ficou pensando
que teria de dar uma gorjeta por isso depois. Não tem importância. Valia a
pena.
— Vão beber alguma coisa? — perguntou o garçom.
— Eu gostaria de uma vodca-tônica.
— Dose dupla? — perguntou o garçom, induzindo-a a gastar mais.
Emma olhou para Ian e viu um lampejo de pânico passar pelo seu
rosto.
— Estou abusando?
— Não, fique à vontade.
— Tudo bem, dose dupla!
— E o senhor?
— Eu vou esperar o vinho, obrigado.
— Água mineral?
— ÁGUA DA TORNEIRA! — gritou e, depois, mais calmo. — Água da
torneira, por favor, a não ser que você...
— Água da torneira está ótimo — disse Emma, sorrindo de forma
tranquilizadora. O garçom se afastou. — Aliás, isso nem precisaria ser dito,
mas nós vamos dividir a conta, certo? Sem discussão. Afinal estamos em 1993,
puxa vida — e Ian percebeu que a amava mais ainda. Por uma questão de
formalidade, achou melhor fingir certa resistência.
— Mas você ainda é estudante, Em!
— Não sou mais. Agora sou professora formada! Tive minha primeira
entrevista de emprego hoje.
— E como foi?
— Bem, muito bem mesmo!
— Meus parabéns, Em, que coisa fantástica — inclinou-se sobre a
mesa para beijá-la numa bochecha, não, nas duas bochechas, não, espera, só numa
bochecha, não, tudo bem, nas duas bochechas.
O menu de tiradas engraçadas já havia sido preparado
antecipadamente, e enquanto Emma tentava se concentrar Ian encenava alguns
trocadilhos selecionados: será que valia a “penne” pedir essa massa e
coisas assim. O peixe grelhado do cardápio deu brecha para que comentasse que o
peixe devia ter ficado muito “grilado” por ter sido grelhado. E o filé do
peixe-agulha, seria um filé ou um filete? E por que toda essa onda de “ragu”;
desde quando o velho mexidinho tinha virado “ragu”? E como um analfabeto
poderia entender uma “sopa de letrinhas”? Será que o prato faria sentido? Ou
não?
À medida que as piadas se sucediam, Emma sentia suas esperanças
para aquela noite se esvanecerem. “Ele quer me fazer rir para ir para a cama
comigo”, pensou, “mas na verdade só está me dando vontade de voltar para casa e
rir em frente à televisão”. No cinema ao menos havia o chocolate com passas e a
violência para distraí-lo, mas aqui, cara a cara, não havia nada senão a
compulsão exibicionista. Emma estava acostumada com isso. Os garotos do seu
curso de pós-graduação eram todos metidos a engraçadinhos, principalmente num pub
depois de algumas cervejas, e, embora isso a exasperasse, sabia também que
ela incentivava aquele tipo de comportamento; garotas sorrindo enquanto rapazes
faziam truques com palitos de fósforo e falavam de programas infantis da TV ou
de salgadinhos esquecidos da década de 1970. Mania de ser estrela, o irritante
e incessante cabaré dos rapazes nos pubs.
Emma tomou sua vodca. Agora Ian lia a carta de vinhos, fazendo seu
show sobre como vinho é algo esnobe: um voluptuoso bocado de fogo florestal
com uma nota de fundo de fragrância de maçã que explodiu etc. A escala em
Dó maior de um humorista amador, sua rotina, tinha potencial para ser
infinita, e Emma tentou visualizar um homem imaginário, uma pessoa fantástica
que não fizesse nenhum alarde a respeito de nada, que apenas consultasse
a carta de vinhos e fizesse o pedido, sem pretensão, porém com autoridade.
— ...aroma de Baconzitos defumado com uma suculenta nota de girafa
ao fundo...
“Isso está me deixando com sono”, pensou. “Eu poderia fazer
perguntas cretinas, suponho, poderia jogar um pãozinho na cabeça dele, mas ele
já comeu todos.” Deu uma olhada nos outros comensais, todos fazendo o mesmo
espetáculo, e se perguntou se tudo se resumia àquilo. “Então é isso o amor
romântico, um concurso de talentos? Coma o seu prato, vamos para a cama,
apaixone-se por mim e eu prometo anos e anos de material de primeira como
este?”
— ...imagine se eles vendessem cerveja assim? — Imitando um
sotaque de Glasgow: — Nossa fórmula especial se acomoda de forma intensa ao
paladar, com forte sugestão de imóveis do Estado alugados a inquilinos de baixa
renda, velhos carrinhos de compra e decadência urbana. Combina muito bem com
violência doméstica...!
Emma ficou pensando de onde vinha a falácia de que havia algo de
irresistível em homens engraçados. Cathy não desejava Heathcliff por ele ser
engraçado. O mais irritante naquela barreira é que na verdade ela gostava muito
de Ian, teve esperanças e até mesmo alguma empolgação quanto a esse encontro,
mas agora ele estava dizendo...
— ...nosso suco de laranja é laranja com uma nota grave de
laranjas...
“Certo, agora chega.”
— ...extraído... não, atraído das tetas das vacas, o leite
da safra de 1989 tem uma “leititude” distinta...
— Ian?
— Sim?
— Dá para calar a boca?
Seguiu-se um silêncio, Ian parecendo magoado e Emma se sentindo
constrangida. Deve ter sido a dose dupla de vodca. Para disfarçar, ela disse em
voz alta:
— Que tal pedirmos um Valpolicella?
Ian consultou a carta.
— Amoras e baunilha, diz aqui.
— Talvez eles digam isso porque o vinho tem um certo gosto de
amoras e baunilha?
— Você gosta de amoras e baunilha?
— Adoro.
Os olhos dele resvalaram no preço.
— Então vamos pedir!
Depois disso, graças a Deus, as coisas começaram a melhorar um
pouco.
***
Oi, Em. Sou eu de novo. Sei que você está fora com o Garoto
Engraçado, mas só queria que você soubesse quando você chegar em casa, se
estiver sozinha, que eu resolvi não ir mais à pré-estréia. Vou ficar em casa a
noite toda, se você quiser vir. Quer dizer, eu gostaria que viesse. Eu pago o
táxi, você pode passar a noite aqui. É isso. A hora que você quiser vir, me dá
uma ligada e pegue um táxi. É isso. Espero te ver mais tarde. Um beijo e tudo o
mais. Tchau, Em. Tchau.
***
Os dois relembraram os velhos tempos, episódios de três anos
atrás. Emma tomou sopa e depois comeu peixe, mas Ian partiu para um festival de
carboidratos, começando por um prato imenso de macarrão com carne, que ele
soterrou numa montanha de parmesão. Isso, mais o vinho, o deixou um pouco
sedado, e Emma também se sentia relaxada, já a caminho de ficar bêbada. E por que
não? Será que ela não merecia? Os últimos meses tinham sido de trabalho duro em
algo em que acreditava, e, embora alguns locais de ensino fossem terríveis,
Emma conseguiu perceber que era boa naquilo. Na entrevista daquela tarde tinham
claramente sentido a mesma coisa, com o diretor aquiescendo e sorrindo em sinal
de aprovação, e mesmo que não se atrevesse a dizer em voz alta, sabia que havia
conseguido o emprego.
Então por que não comemorar com Ian? Enquanto ele falava, Emma
examinava seu rosto e concluía que definitivamente estava mais bonito que
antes: agora ela não pensava mais em tratores ao olhar para ele. Não havia nada
de refinado ou sensível naquele rosto: no elenco de um filme de guerra, talvez
Ian fosse o corajoso Tommy, sempre escrevendo cartas para a mãe, enquanto
Dexter seria... o quê? Um nazista efeminado. Mesmo assim, Emma gostava da
maneira como Ian olhava para ela. Com carinho, essa era a palavra. Com um
carinho inebriado, e, em retribuição, ela também se sentia relaxada e carinhosa
com ele.
Ian despejou o resto do vinho na taça dela.
— Então, você ainda vê alguém daquela turma?
— Não muito. Uma vez encontrei com Scott no Hail Caesar’s, aquele
restaurante italiano terrível. Estava bem, continua bravo.
Fora isso, eu tento evitar contatos. É um pouco como uma prisão...
é melhor não se associar com ex-colegas de cadeia. Com exceção de você, claro.
— Não foi tão ruim assim, foi? Trabalhar lá?
— Bom, foram dois anos da minha vida que eu não gostaria de
repetir. — Dita em voz alta, a observação a chocou, mas ela deu de ombros. —
Não sei, acho que não foi uma época muito feliz, só isso.
Ian deu um sorriso meio magoado e afagou as juntas dos dedos dela.
— Foi por isso que não atendeu aos meus telefonemas?
— Será? Não sei, pode ser. — Ergueu a taça até os lábios. — Mas
agora estamos aqui. Vamos mudar de assunto. Como vai indo a carreira de
humorista?
— Ah, tudo bem. Estou fazendo um número de improviso, que é uma
coisa que não dá para planejar, é realmente imprevisível. Às vezes não consigo
fazer ninguém rir! Mas acho que essa é a graça do improviso, não é? — Emma não
sabia ao certo se era verdade, mas concordou assim mesmo. — E eu faço outro
número na terça à noite no Mr. Chuckles, em Kennington. É algo mais fino, mais temático.
Como aquelas tiradas do Bill Hicks sobre propaganda. Como os anúncios estúpidos
da TV...
Ian voltou ao seu discurso, Emma fixou um sorriso no rosto. Seria
mortal se ela dissesse, mas desde que os dois se conheciam Ian a tinha feito
rir talvez umas duas vezes, e uma delas foi quando caiu da escada da adega. Era
um homem com um grande senso de humor, mas ao mesmo tempo não era nada
engraçado. Diferentemente de Dexter: ele não tinha nenhum interesse por piadas,
provavelmente achava que senso de humor era algo um tanto constrangedor e
deselegante, assim como consciência política, mas com Dexter ela ria o tempo
todo, às vezes até de uma forma histérica, chegando a fazer xixi na calça.
Naquelas férias na Grécia eles riram durante dez dias seguidos, depois de terem
esclarecido aquele pequeno mal-entendido. E se perguntou: “Onde estaria Dexter agora?”
— Então, você tem visto o programa dele na televisão? — perguntou
Ian.
Emma estremeceu como se tivesse sido pega de surpresa.
— De quem?
— Do seu amigo Dexter, aquele programa bobo.
— Às vezes. Se a TV estiver ligada.
— E como ele está?
— Ah, tudo bem, na mesma. Bem, para ser honesta, um pouco pirado,
meio fora dos trilhos. A mãe dele está doente e ele não está aceitando isso
muito bem.
— Sinto muito. — Ian franziu o cenho, preocupado, tentando
arranjar uma forma de mudar de assunto. Não era insensibilidade; ele
simplesmente não queria que a doença de uma pessoa estranha se metesse em sua
noite. — Vocês se falam bastante?
— Eu e Dex? Quase todos os dias. Mas a gente quase nunca se vê,
por conta dos compromissos na TV e das namoradas.
— Com quem ele está saindo agora?
— Não faço ideia. Essas namoradas são como peixinhos de aquário:
não adianta dar nomes, elas nunca duram muito tempo. — Emma já tinha usado
aquela metáfora antes e achou que Ian ia gostar, mas ele continuou com o rosto
franzido. — Que cara é essa?
— Acho que nunca gostei dele.
— É, eu me lembro.
— Eu bem que tentei.
— Mas tente não levar isso para o lado pessoal. Ele não se dá bem
com homem nenhum, não vê sentido nisso.
— Para dizer a verdade, eu sempre achei que...
— O quê?
— Que ele não dava valor a você. Só isso.
***
Eu de novo! Só dando uma verificada. Aliás, agora um pouco bêbado.
Meio sentimental. Você é uma grande garota, Emma Morley. Vai ser legal te ver.
Ligue quando chegar. O que mais eu queria dizer? Nada, a não ser que você é uma
grande, grande figura. É isso.
Quando chegar, me liga. Me dá uma ligada.
***
Quando o segundo conhaque chegou, não havia mais dúvidas de que os
dois estavam bêbados. O restaurante inteiro parecia bêbado, até o pianista de
cabelos prateados, cantarolando “I Get a Kick Out of You” com displicência, o
pé bombeando o pedal como se alguém tivesse cortado o cabo do freio. Forçada a
erguer a voz, Emma ouvia o som ecoando na cabeça ao falar com grande paixão e
intensidade sobre sua nova carreira.
— É uma escola grande no norte de Londres, que ensina inglês e um
pouco de dramaturgia. Boa escola, bem diversificada, não é dessas escolas
plácidas de subúrbio onde é tudo “sim, senhora”, “não, senhora”. Por isso os
alunos são uma espécie de desafio, mas isso é bom, não é? Os alunos têm de ser
assim mesmo. Estou dizendo isso agora. Provavelmente aqueles merdinhas vão me comer
viva. — Agitou o conhaque no copo do jeito que tinha visto nos filmes. — Tenho
uma visão de mim mesma sentada na beira da mesa, explicando como Shakespeare
foi o primeiro rapper ou coisa assim, e todos aqueles garotos olhando para mim
de boca aberta... hipnotizados. De certa forma me imagino sendo carregada nos
ombros de jovens inspirados. É como eu me deslocaria pela escola, pelo
estacionamento, pela cantina e por toda parte, em cima dos ombros de garotos
que me adoram. Como esses professores carpe diem.
— Desculpe, professores o quê?
— Carpe diem.
— Carpe...?
— Você sabe, aproveite o dia de hoje!
— Esse é o sentido? Achei que queria dizer aproveite o carpete!
Emma deu um sorriso educado, o que para Ian valeu como um tiro de
largada.
— Então foi aí que eu errei! Uau, o tempo que passei na escola
teria sido diferente se soubesse disso! Todos esses anos, tanto empenho...
Chega.
— Ian, não faça isso — disse Emma bruscamente.
— O quê?
— O seu show. Você não precisa fazer isso, sabe. — Ian pareceu
magoado, Emma lamentou seu tom de voz e debruçou-se na mesa para pegar na mão
dele. — Só acho que você não precisa ser espirituoso o tempo todo, nem
fazer gracejos ou trocadilhos. Não estamos numa sessão de improviso, Ian, nós
só estamos, sabe, conversando e ouvindo um ao outro.
— Desculpe, eu...
— Não é só você, são os homens de uma forma geral, todos vocês
fazem um show particular o tempo todo. Meu Deus, o que eu não daria por alguém
que só conversasse e soubesse ouvir! — Sabia que estava falando demais, mas se
entusiasmou com o próprio embalo. — Não consigo entender a necessidade disso.
Não se trata de um teste ou de uma audição.
— Só que é mais ou menos isso, não é?
— Não comigo. Não precisa ser.
— Desculpe.
— Também não precisa se desculpar.
— Ah. Tudo bem.
Ian ficou em silêncio por um tempo, e agora era Emma quem sentia
vontade de se desculpar. Não deveria falar o que pensa; isso não leva a nada de
bom. Estava prestes a pedir desculpas quando Ian suspirou e apoiou o queixo na
mão.
— Acho que é o seguinte: quando você está na escola e não é tão
brilhante, nem bonito, nem popular, seja o que for, e um dia você diz uma coisa
e alguém dá risada, bom, a gente se agarra nisso, certo? A gente pensa: bom, eu
sou engraçado, tenho essa cara grande e boba, essas coxas enormes e ninguém
quer nada comigo, mas ao menos posso fazer as pessoas rirem. E é uma sensação tão
boa, fazer as pessoas rirem, que a gente pode acabar confiando demais nisso.
Quer dizer, se você não é engraçado, você não é... nada. — Agora ele olhava
para a toalha da mesa, empilhando migalhas de pão numa pequena pirâmide com a
ponta dos dedos, e continuava: — Aliás, eu achei que você pudesse entender como
são essas coisas.
Emma levou a mão ao peito.
— Eu?
— É, sobre representar um papel.
— Eu não represento papel nenhum.
— O que você falou há pouco, sobre os peixinhos de aquário, já
tinha dito antes.
— Não, eu... e daí?
— E daí que acho que somos bem parecidos, eu e você. Às vezes.
A primeira reação de Emma foi se sentir ofendida. Não, não somos,
queria dizer, que ideia absurda, mas ele estava sorrindo para ela de uma forma
tão — qual era a palavra — carinhosa, e talvez ela tivesse sido um pouco áspera
com ele. Em vez de falar qualquer coisa, preferiu dar de ombros.
— De qualquer forma, eu não acredito nisso.
— No quê?
— Que ninguém fosse a fim de você.
Ian falou com uma voz jocosa, nasal:
— Bem, as provas materiais parecem sugerir o contrário.
— Eu estou aqui, não estou? — Fez-se um silêncio. Emma realmente
tinha bebido demais, e agora chegara sua vez de brincar com as migalhas da
mesa. — Na verdade, eu estive pensando o quanto você está mais bonito.
Ian segurou a barriga com as duas mãos.
— Bem, eu ando malhando.
Emma deu risada, com bastante naturalidade, olhou para ele e
decidiu que afinal Ian não era tão feio: não tinha o rosto bobo de um garotão
bonito, e sim de um homem decente. Sabia que depois de a conta ser paga ele
tentaria beijá-la, e dessa vez decidiu que iria deixar.
— A gente precisa ir embora — ela falou.
— Vou pedir a conta. — Fez o pequeno sinal de escrever alguma
coisa no ar para o garçom. — É estranha essa mímica que todo mundo faz, não é?
De quem terá sido a ideia?
— Ian?
— O quê? Desculpe. Desculpe.
Dividiram a conta, como combinado, e na saída Ian abriu a porta
chutando a soleira de forma a dar a impressão de ter levado um portada no
rosto.
— Um pouco de comédia pastelão...
Do lado de fora, uma pesada cortina de nuvens negras e roxas havia
se formado no céu. O vento morno tinha aquele gosto férreo que precede uma
tempestade, e Emma sentia-se deliciosamente alcoolizada e animada pelo conhaque
quando os dois cruzaram a praça em direção ao norte. Ela sempre odiou Covent
Garden, com suas bandas de flautas peruanas, ilusionistas e toda aquela alegria
forçada, mas hoje parecia tudo bem, assim como parecia bom e natural estar de
braço dado com aquele homem que sempre fora tão simpático e interessado por
ela, mesmo que estivesse carregando o paletó no ombro, pendurado pela pequena
alça na lapela. Ao olhar para ele, notou que sua expressão estava tensa.
— O que foi? — perguntou, apertando o braço dele contra o corpo.
— É que, sabe, acho que pisei um pouco na bola, só isso. Fiquei
meio nervoso, me esforcei demais, fiz comentários meio malucos.
Sabe qual é a pior coisa de ser um comediante de stand-up?
— As roupas?
— É que as pessoas sempre esperam que você esteja “ligado”. A
gente está sempre atrás de uma boa risada...
Em parte para mudar de assunto, Emma pôs as mãos nos ombros de
Ian, usando o corpo dele para se apoiar enquanto ficava na ponta dos pés para
beijá-lo. A boca de Ian estava úmida, porém morna.
— Amora com baunilha — murmurou com os lábios ainda pressionando
os dele, embora na verdade o gosto fosse de parmesão e álcool. Não tinha
importância. Ian riu no meio do beijo e Emma desceu da ponta dos pés, segurou e
olhou bem para o seu rosto.
Parecia que ele poderia começar a chorar de gratidão, e ela se
sentiu bem por ter feito aquilo.
— Emma Morley, posso dizer uma coisa... — Olhou para ela com
grande solenidade. — Você é uma criatura maravilhosa.
— Você e suas palavras doces — ela replicou. — Vamos até a sua
casa? Antes que comece a chover.
***
Adivinha quem é? Agora são onze e meia. Onde você está, sua
sacaninha? Tudo bem. Me ligue a qualquer hora, eu estou aqui, não vou a lugar
nenhum. Tchau. Tchau.
***
O apartamento de Ian no andar térreo da Cally Road era iluminado
apenas pelas lâmpadas de sódio da rua e por alguns ocasionais faróis dos ônibus
de dois andares que passavam. Várias vezes por minuto o quarto inteiro vibrava,
estremecido por um ou mais metrôs das linhas Piccadilly, Victoria ou Northern e
pelos ônibus 30, 10, 46, 214 e 390. Em termos de transporte público, talvez fosse
o melhor apartamento de Londres, mas só nesse aspecto. Deitada no sofá-cama,
meias baixadas até o meio das coxas, Emma sentia todos aqueles tremores nas
costas.
— E esse aí, qual foi?
Ian prestou atenção ao tremor.
— Piccadilly Leste.
— Como você aguenta, Ian?
— A gente se acostuma. E também uso aquelas coisas... — apontou
dois vermes gordos feitos de uma cera cinza no parapeito da janela. — Plugues
moldáveis para os ouvidos.
— Ah, isso é bom.
— Só que outro dia eu esqueci de tirar antes de sair de casa.
Achei que estava com um tumor no cérebro. Ficou tudo meio esquisito, se é que
você me entende.
Emma deu risada, depois gemeu ao liberar outra bolha de náusea.
Ian pegou na mão dela.
— Está se sentindo melhor?
— Eu fico melhor se mantiver os olhos abertos. — Virou-se para
olhar para ele, empurrando as dobras do edredom para ver seu rosto e notando,
com certo mal-estar, que o edredom não era forrado e tinha cor de sopa de
cogumelo. O quarto cheirava a um bazar de caridade, o odor de homens que vivem
sozinhos. — Acho que foi o segundo conhaque que fez isso. — Ian sorriu, mas a
luz clara de um ônibus que passava varreu o quarto e ela pôde ver que ele
parecia preocupado. — Você está bravo comigo?
— Claro que não. É que, sabe, a gente começa a beijar uma garota e
de repente ela para tudo porque está enjoada...
— Eu já disse que foi a bebida. Eu estou numa boa, mesmo. Só
precisava recuperar o fôlego. Vem cá... — Sentou-se para beijá-lo, mas seu
melhor sutiã estava enrugado e a armação interna machucava sua axila. — Ai, ai,
ai! — Pôs a alça no lugar e desabou para a frente com a cabeça entre as pernas.
A mão dele acariciou suas costas, como uma enfermeira, e Emma sentiu vergonha
por ter estragado tudo. — É melhor eu ir embora, acho.
— Ah. Tudo bem. Se é o que você quer.
Ouviram o som de pneus na rua molhada, uma luz branca passou pelo
quarto.
— E esse?
— Número 30.
Emma puxou as meias, levantou-se desequilibrada e ajeitou a saia.
— Eu me diverti muito!
— Eu também...
— Só que bebi demais...
— Eu também...
— Eu vou para casa, ver se melhoro...
— Entendo. Mesmo assim é uma pena.
Emma olhou o relógio: 23h52. Sob seus pés um trem do metrô passou
trepidante, lembrando-a de que estava em cima de um importante cruzamento
metroviário. Cinco minutos de caminhada até King’s Cross, depois em direção a
Piccadilly Oeste, em casa à meia-noite e meia, fácil. Uma chuva molhava o vidro
da janela, mas não muito.
Mas imaginou a chegada depois da caminhada, o silêncio do
apartamento vazio ao procurar as chaves, as roupas molhadas grudando na pele.
Imaginou-se sozinha na cama, o teto girando, a Tahiti oscilando abaixo, náusea,
arrependimento. Será que seria tão ruim assim ficar ali mesmo, sentindo um
pouco de calor, afeto e intimidade para variar? Ou será que preferia ser uma
dessas garotas que via às vezes no metrô: de ressaca, pálida e hesitante dentro
de um vestido da festa da noite anterior? A chuva bateu na janela, agora um
pouco mais forte.
— Quer que eu acompanhe você até a estação? — perguntou Ian,
vestindo a camiseta. — Ou talvez...
— O quê?
— Você poderia ficar, dormir aqui? Sabe como é, abraçadinhos.
— Ficar abraçado.
— É. Ou nem isso. Podemos simplesmente ficar deitados, rígidos e
constrangidos a noite toda, se preferir.
Emma sorriu, e ele também sorriu, esperançoso.
— Solução para lentes de contato — ela falou. — Eu não tenho aqui
comigo.
— Eu tenho.
— Não sabia que você usava lentes de contato.
— Então é isso aí... mais uma coisa que temos em comum. — Ian
sorriu e ela também sorriu. — Talvez eu até tenha um par extra de plugues de
ouvido, se você estiver com sorte.
— Ian Whitehead, você é muito espertinho.
***
...atenda, atenda, atenda. Já é quase meia-noite. Na última
badalada da meia-noite eu vou virar um, o quê, não sei, provavelmente um
idiota. Bom, de qualquer maneira, se você ouvir isso...
— Alô? Alô?
— Você está aí!
— Oi, Dexter.
— Eu não acordei você, acordei?
— Acabei de chegar. Está tudo bem, Dexter?
— Ah, tudo ótimo.
— Sua voz está péssima.
— Ah, é que estou fazendo uma festa. Só eu. Uma festinha
particular.
— Quer abaixar a música, por favor?
— Na verdade eu estava pensando... espera aí, eu vou abaixar o
som... se você não quer vir aqui. Tem champanhe, tem música, talvez até algumas
drogas. Alô? Alô, está me ouvindo?
— Achei que tínhamos decidido que isso não era uma boa ideia.
— Foi mesmo? Porque eu acho uma ótima ideia.
— Você não pode me telefonar de repente e esperar que eu...
— Ah, sai dessa, Naomi, por favor. Eu preciso de você.
— Não!
— Você pode estar aqui em meia hora.
— Não! Está chovendo muito.
— Eu não estou dizendo para você vir andando. Pega um táxi, eu
pago.
— Eu disse que não!
— Eu realmente preciso de companhia, Naomi.
— Liga para Emma!
— Emma não está em casa. E não estou falando desse tipo de
companhia. Você sabe o que estou dizendo. O fato é que se não tocar em outro
ser humano esta noite eu acho que posso até morrer.
— ...
— Eu sei que você está aí. Estou ouvindo a sua respiração.
— Tudo bem.
— Tudo bem?
— Chego aí em meia hora. Pare de beber. Me espere.
— Naomi? Naomi, você entende o que está fazendo?
— O quê?
—
Você entende que está salvando a minha vida?
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