Capítulo 9 – Cigarros e Álcool
Sábado, 15 de Julho de 1995
Walthamstow
e Soho
Retrato em
carmim
Um romance
de Emma T. Wilde
Capítulo 1
A chefe de
polícia Penny de Tal já tinha visto algumas cenas de crime na vida, mas nunca
uma como aquela.
— Levaram
o corpo? — perguntou.
As palavras cintilavam no verde bilioso da tela do processador de
texto, resultado de uma manhã inteira de trabalho. Sentada na pequena carteira
escolar no quartinho dos fundos do minúsculo apartamento novo, Emma leu aquelas
palavras, depois leu outra vez, enquanto atrás dela o aquecedor a óleo
borbulhava em tom de deboche.
Nos fins de semana, ou à noite, quando conseguia ter energia, Emma
escrevia. Já tinha começado dois romances (um passado num gulag, outro
num futuro pós-apocalíptico), um livro infantil que ela própria ilustraria,
sobre uma girafa de pescoço curto, um teledrama amargurado e revoltado sobre
militantes dos direitos humanos chamado “Bela merda”, uma peça de teatro sobre
a complexidade da vida emocional de jovens de vinte e poucos anos, um romance
fantástico para adolescentes cujos professores eram robôs malignos, um monólogo
radiofônico sobre uma sufragista moribunda, uma história em quadrinhos e um
soneto. Nada havia sido concluído, nem mesmo os catorze versos do soneto.
Aquelas palavras na tela representavam seu projeto mais recente,
uma tentativa de escrever uma série de romances policiais comerciais e
discretamente feministas. Aos onze anos Emma já havia lido tudo de Agatha
Christie, depois também leu muita coisa de Raymond Chandler e James M. Cain.
Parecia não haver razão por que não pudesse tentar alguma coisa do gênero, mas
estava percebendo mais uma vez que ler e escrever não eram a mesma coisa: não
se podia simplesmente absorver tudo e regurgitar. Viu-se incapaz de pensar num
nome para sua investigadora, sem falar de um enredo coerente original, e até
mesmo seu pseudônimo era fraco: Emma T. Wilde? Será que estava condenada a ser
uma daquelas pessoas que passam a vida tentando fazer coisas? Já tinha tentado
formar uma banda, escrever peças e livros infantis, ser atriz e arranjar
emprego numa editora. Talvez o livro policial fosse apenas outro projeto
destinado ao fracasso, a ser encostado ao lado do trapézio, do budismo e do
espanhol. Usou a ferramenta de contagem de palavras do processador. Trinta e
sete palavras, incluindo o título e seu péssimo pseudônimo. Emma deu um gemido,
soltou a alavanca hidráulica da cadeira de escritório e afundou para mais perto
do tapete.
Alguém bateu na porta de compensado.
— Como vão as coisas no pavilhão Anne Frank?
A mesma frase outra vez. Para Ian as piadas não eram um item para
usar apenas uma vez, mas algo que utilizava até se desfazer na mão como um
guarda-chuva barato. Quando se conheceram, noventa por cento do que Ian dizia
vinha sob o rótulo de “humor”, porque sempre envolvia um trocadilho, uma voz
engraçada, alguma intenção cômica. Com o passar do tempo ela esperava que aquilo
diminuísse para quarenta por cento, o que seria uma redução aceitável, mas
quase dois anos depois o número permanecia em torno de setenta e cinco por
cento, e a vida doméstica continuava ao som daquele rumor de comicidade. Será
que era realmente possível alguém continuar tão “ligado” durante quase dois
anos? Emma tinha conseguido se livrar dos lençóis pretos dele, dos descansos de
copos de cerveja, selecionado suas cuecas e até reduzido os seus famosos
“churrascos de verão”, mas parecia estar chegando ao limite do quanto é
possível mudar um homem.
— Que tal uma bela xícara de chá para a madame? — perguntou com a
voz de um serviçal do subúrbio.
— Não, obrigada, querido.
— Rabanadas? — agora com sotaque escocês. — Posso fazer umas
rabanadas para minha Chuchuzinha?
Chuchuzinha era um achado recente. Quando pressionado para se
justificar, Ian explicou que era por conta de ela ser tão chuchuzinha, tão
chuchuzinha mesmo. Chegou a sugerir que ela retaliasse chamando-o de Chuchuzão:
Chuchuzinha e Chuchuzão, Chuchuzão e Chuchuzinha, mas não tinha colado.
— ...uma fatiazinha de rabanada? Para forrar o estômago para hoje
à noite?
Hoje à noite. Então era isso. Em geral, quando Ian usava
um de seus dialetos era por estar com algo na cabeça que não podia ser expresso
numa voz natural.
— Grande noite esta. Uma noite na cidade com Mike TV.
Emma preferiu ignorar o comentário, mas ele não estava facilitando
as coisas. Com o queixo apoiado na cabeça dela, leu as palavras na tela.
— Retrato em carmim...
Emma cobriu a tela com a mão.
— Por favor, não leia por cima do meu ombro.
— Emma T. Wilde. Quem é Emma T. Wilde?
— Meu pseudônimo. Ian...
— Você sabe o que significa esse T?
— Terrível.
— Terrificante. Tremenda.
— Terminal, como se...
— Se algum dia quiser que eu leia...
— Por que você ia querer ler isso? É uma droga.
— Nada que você faz é uma droga.
— Bom, isso aqui é. — Emma desvia o olhar da tela e desliga o
monitor, e mesmo antes de se virar já sabe que Ian está com sua expressão de
vira-lata que apanhou. Era muito comum se sentir assim com Ian, alternando
sentimentos de irritação e remorso. — Desculpe! — falou, segurando um dedo da
mão dele e balançando.
Ian beijou o alto da cabeça dela, depois falou com a boca em seu
cabelo:
— Sabe o que eu acho que esse T significa? É “T” de Tesão. Emma
Tesão Wilde.
Depois dessa ele saiu da sala: uma técnica clássica, fazer um
elogio e fugir. Alerta para não cair no truque, Emma empurrou a porta, voltou a
ligar o monitor, leu as palavras escritas, estremeceu visivelmente, fechou o
arquivo e arrastou-o para o ícone da lata de lixo. Um som eletrônico de papel
amassado, o som da escrita.
O guincho do alarme contra incêndios revelou que Ian estava
cozinhando. Emma levantou-se e seguiu o cheiro de manteiga queimada pelo
corredor até a cozinha/sala de jantar: não era um cômodo separado, apenas o
canto mais engordurado da sala de estar do apartamento que os dois compraram
juntos. Emma teve dúvidas sobre aquela compra; era o tipo da vizinhança em que
as pessoas chamavam a polícia, explicou, mas Ian acabou vencendo pelo cansaço.
Era uma loucura continuar pagando aluguel, eles se viam quase todas as noites,
e além do mais era perto da escola dela, o primeiro passo da jornada etc.
Assim, tinham raspado as economias deles e comprado também alguns livros sobre
decoração de interiores, inclusive um que ensinava como pintar compensado de
forma a parecer mármore italiano. Houve planos inspirados de reinstalação da
lareira, de montar estantes de livros, armários embutidos e soluções de
armazenagem. Assoalho de madeira aparente! Ian ia alugar uma lixa e deixar o
assoalho brilhando, como mandava o figurino. Num sábado chuvoso de fevereiro,
eles levantaram o carpete, examinaram com desânimo a maçaroca de compensado esfarelando,
desintegrando embaixo de jornais velhos, e voltaram a fechar tudo, sentindo-se
culpados, como se estivessem escondendo um cadáver. Havia algo de não
convincente e efêmero naquelas tentativas de construir um lar, como se fossem
duas crianças montando uma cabana, e, apesar da pintura nova, dos quadros nas
paredes, dos novos móveis, o apartamento mantinha a mesma atmosfera de coisa
gasta e temporária.
Ian estava envolto numa faixa de luz do sol enfumaçada na pequena
cozinha, as costas largas viradas para Emma. Ela ficou observando da porta,
reconhecendo a velha camiseta cinza cheia de furos, dois centímetros da cueca
visíveis acima da calça de moletom, os “sapatos de caminhada”. Leu a etiqueta
Calvin Klein perto do cabelo castanho da nuca de Ian e imaginou que
provavelmente não era aquilo que Calvin Klein havia pensado.
Emma falou, para quebrar o silêncio.
— Não está ficando um pouco queimado?
— Queimado, não, tostado.
— Eu digo queimado, você diz tostado.
— Isso é Cole Porter, Let’s
call the whole thing off!
Silêncio.
— Estou vendo um pedaço da sua cueca — disse Emma.
— Sim, é intencional. — com a voz sussurrante, afeminada. — Está
na moda, querida.
— Bem, de fato é bem provocante.
Silêncio, apenas o som da comida queimando.
Mas agora era a vez de Ian fazer sua jogada.
— Então. Onde o Garoto Alfa vai te levar? — perguntou sem se
virar.
— Em algum restaurante no Soho, sei lá. — Na verdade sabia, mas o
nome do restaurante era um recente sinônimo de modismo, um lugar sofisticado, e
ela não queria piorar ainda mais as coisas. — Ian, se você não quer que eu vá
hoje à noite...
— Não, você deve ir, se divertir...
— Ou se quiser vir com a gente...?
— O quê, Harry e Sally e eu? Ah, acho que não, o que você acha?
— Não teria problema nenhum.
— Para vocês dois ficarem fazendo piadas e falando de mim a noite
toda...
— Nós não fazemos isso...
— Da última vez fizeram!
— Não, não fizemos!
— Tem certeza de que não quer uma rabanada?
— Tenho!
— De qualquer forma, eu tenho uma apresentação hoje à noite, não
é? Na House of Ha Ha, em Putney.
— Uma apresentação com cachê?
— É, uma apresentação com cachê! — confirmou. — Então está
tudo bem, muito obrigado. — Começou a procurar um molho escuro dentro do
armário, fazendo muito barulho. — Não se preocupe comigo.
Emma suspirou, irritada.
— Se você não quiser que eu vá, é só dizer.
— Em, nós não nascemos juntos. Você vai se quiser. Divirta-se. — O
vidro de molho escuro chiou, quase vazio. — Só não vai transar com ele, tá?
— Bom, isso realmente não vai acontecer, não é?
— Pelo menos é o que você sempre fala.
— Ele está namorando Suki Meadows.
— E se não estivesse?
— Não faria a menor diferença, porque eu amo você.
Ainda não era o bastante, Ian não disse nada. Emma suspirou,
atravessou a cozinha, com os pés grudando no linóleo e passou os braços ao
redor da cintura dele, ao que ele reagiu se unindo a ela. Apertou o rosto nas
costas de Ian, inalou o aroma quente e familiar do seu corpo e beijou o tecido
da camiseta, murmurando:
— Deixe de ser bobo. — Os dois ficaram assim por algum tempo, até
ficar claro que Ian estava ansioso para comer. — Certo. Melhor eu corrigir logo
essas redações — disse Emma, se afastando. Vinte e oito tediosas opiniões sobre
o livro O sol é para todos.
— Em? — chamou Ian quando ela estava chegando à porta. — O que
você vai fazer hoje à tarde? Por volta das dezessete horas?
— Já devo ter terminado. Por quê?
Ele se mexeu na cozinha com o prato no colo.
— Pensei que a gente podia ficar na cama, sabe? Curtir um pouco a
tarde.
“Eu amo Ian”, pensou Emma, “só não sou apaixonada por ele,
e também não o amo. Já tentei, batalhei para conseguir amá-lo, mas não consigo.
Estou construindo uma vida com um homem que não amo, e não sei o que fazer a
respeito”.
— Pode ser — respondeu da porta. — Pode ser. — Franziu os lábios
num beijo, sorriu e fechou a porta.
***
Não existiam mais manhãs, só manhãs do dia seguinte.
O coração batendo forte, empapado de suor, Dexter acordou pouco
antes do meio-dia com um homem gritando lá fora, mas na verdade era a banda M
People. Mais uma vez, tinha adormecido em frente à televisão, e agora era hora
de encontrar o herói dentro de si mesmo.
Os sábados seguintes ao Madrugada adentro eram sempre
assim, com o ar estagnado e as cortinas fechadas contra o sol. Se ainda estivesse
viva, sua mãe gritaria do pé da escada para ele acordar e cuidar da vida, mas,
em vez disso, Dexter estava fumando no sofá de couro preto, usando a mesma
cueca da noite anterior, jogando Ultimate Doom no Playstation e tentando
não mexer a cabeça.
No meio da tarde sentiu a melancolia do fim de semana invadi-lo
novamente e resolveu ensaiar suas mixagens. Espécie de DJ amador, Dexter tinha
uma parede repleta de CDs e vinis raros em prateleiras de pinho feitas sob
medida, dois toca-discos e um microfone, tudo abatido do imposto de renda, e
costumava ser visto em lojas de discos do Soho com um enorme par de fones de ouvido
que pareciam duas metades de um coco partido ao meio. Ainda de cueca, passava e
repassava mixagens indolentes de ritmos sincopados na mesa de mixagem de CDs
novinha em folha, preparando-se para a próxima grande noite com os amigos. Mas
faltava alguma coisa, e ele logo desistiu.
— CD não é vinil — declarou, antes de perceber que tinha dito
aquilo para uma sala vazia.
Melancolia outra vez. Suspirou e foi até a cozinha andando devagar,
como um homem que se recupera de uma cirurgia. A geladeira enorme transbordava
de garrafas de uma sensacional nova marca de sidra, que custara uma fortuna.
Além de apresentar seu programa (“Um show de arrebentar”, como chamavam, e
parecia uma coisa positiva), Dexter começou a trabalhar com locução. Ele era
“inclassificável”, diziam, o que também parecia uma coisa positiva. Era o
exemplo de uma nova categoria de homem britânico: cosmopolita, endinheirado,
sem vergonha da própria masculinidade, de sua orientação sexual, de ser
apaixonado por carros, relógios de titânio e artefatos de aço escovado. Até
agora tinha feito locuções para essa sidra especial, criada para cativar uma
tribo jovem que se vestia como Ted Baker, e para uma nova marca de aparelho de
barbear, um extraordinário objeto de ficção científica cheio de lâminas e com
uma fita lubrificante que deixava um traço de muco, como se alguém tivesse
espirrado no seu queixo.
Dexter tinha até se aventurado um pouco pelo mundo das passarelas
da moda, uma antiga ambição que nunca teve coragem de declarar, logo descartada
como “só um pouco de diversão”. Naquele mesmo mês havia aparecido na seção de
moda de uma revista masculina, ilustrando o tema “gangster chique”, com nove
páginas em que mastigava charutos ou jazia estendido no chão crivado de balas
em vários ternos estilo jaquetão. Alguns exemplares da revista foram espalhados
pelo apartamento, para que os convidados pudessem casualmente dar de cara com
elas. Havia até um exemplar no banheiro, e às vezes lá estava ele na privada
vendo as próprias fotos, seu corpo sem vida, porém muito bem-vestido, estirado
no capô de um Jaguar.
Apresentar “Um show trash” na TV foi legal por um tempo, mas havia
um limite para todo aquele lixo. Em algum momento ele teria de fazer algo para
contrabalançar o estilo “tão ruim que chega a ser bom”, e numa tentativa de
ganhar certa credibilidade tinha aberto uma produtora, a Mayhem TV plc. Por
enquanto a Mayhem estava restrita a uma logomarca estilosa estampada em papel encorpado,
mas por certo isso iria mudar. Deveria mudar. Como disse seu agente, Aaron:
— Você é um grande apresentador de programas jovens, Dexy. O
problema é que você não é jovem. — E o que mais ele poderia fazer, dadas as
circunstâncias? Ser ator? Conhecia um monte de atores, tanto profissional como
socialmente, jogava pôquer com alguns e, francamente, se eles podiam ser
atores...
Sim, tanto em termos profissionais quanto sociais, os últimos anos
foram uma época de oportunidades, de grandes novos amigos, coquetéis e pré-estréias,
passeios de helicóptero e muitas discussões por causa de futebol. É claro que
houve momentos de baixa: uma sensação de ansiedade e pavor paralisante, um ou
dois episódios em que vomitou em público. Parecia que a presença dele num bar ou
numa boate fazia com que os outros homens se indignassem, ou até mesmo o
agredissem, e havia pouco tempo ficara paralisado de medo atrás do palco
durante a apresentação de um concerto de Kula Shaker — e aquilo não foi nada
engraçado. Numa recente coluna do tipo “por dentro” e “por fora”, Dexter fora
classificado como “por fora”. O rótulo doeu na alma, mas preferiu atribuir aquilo
à inveja. Inveja é uma espécie de imposto que se paga pelo sucesso.
Houve outros sacrifícios de sua parte. Infelizmente, foi obrigado
a se afastar de alguns velhos amigos da faculdade, pois afinal não era mais
1988. Seu ex-colega de apartamento, Callum, aquele com quem iria abrir uma
empresa, continuava deixando mensagens cada vez mais sarcásticas, mas Dexter
sabia que logo entenderia o recado. O que eles queriam? Partilhar um casarão
pelo resto da vida? Não, amigos eram como roupas: lindas enquanto novas, mas
acabavam se desgastando ou não cabiam mais. Com isso em mente, elaborou uma
política de três dentro, um fora. No lugar dos velhos amigos que teve de
abandonar, adotava trinta, quarenta, cinquenta amigos mais bonitos e
bem-sucedidos. Era impossível contestar o grande número de amigos, mesmo se não
tivesse certeza de que gostava de todos. Era famoso, não, era notório por suas
bocas-livres, sua inesgotável generosidade, seus trabalhos como DJ e as
saideiras que promovia em seu apartamento e que terminavam em discotecagem.
Foram muitas as manhãs em que acordou em meio a ruínas esfumaçadas para
descobrir que alguém tinha roubado sua carteira.
Não tem importância. Nunca houve melhor época para ser um homem
britânico jovem e bem-sucedido. Londres era uma cidade fervilhante, e de alguma
forma Dexter sentia isso dentro de si. Era um contribuinte dono de um modem e
de um aparelho de CD, tinha uma namorada famosa e muitas, muitas abotoaduras,
além de uma geladeira abarrotada de sidra Premium e um banheiro cheio de
aparelhos de barbear equipados com várias lâminas, mesmo que não gostasse de
sidra e que os aparelhos de barbear irritassem sua pele. A vida era boa ali,
com as cortinas fechadas no meio da tarde, no meio do ano, no meio da década,
perto do centro da cidade mais excitante do planeta.
A tarde se estendia à sua frente. Logo chegaria a hora de ligar
para o traficante. Hoje iria a uma festa numa casa imensa perto de Ladbroke
Grove. Antes, precisava sair para jantar com Emma, mas seria fácil se livrar
dela por volta das onze horas.
***
Emma estava na banheira cor de abacate quando ouviu a porta da
frente se fechar. Era Ian partindo para sua longa jornada até a House of Ha Ha
em Putney, para apresentar o seu show: quinze infelizes minutos sobre algumas
das diferenças entre cães e gatos.
Pegou o copo de vinho no chão do banheiro, segurou-o com as duas
mãos e franziu o cenho para as torneiras do misturador. Era impressionante como
o encanto de ter uma casa própria havia desaparecido, como os pertences deles
combinados pareciam sem substância e esfarrapados naquele pequeno apartamento
de paredes finas e carpetes que vieram de outras pessoas. Não que o lugar fosse
sujo: todas as superfícies foram limpas com uma escova de aço — mas conservava
uma irritante sensação pegajosa e um cheiro de papelão velho que pareciam
impossíveis de se remover. Na primeira noite, quando fecharam a porta da frente
e abriram o champanhe,
Emma teve vontade de chorar. É normal demorar algum tempo até
sentirmos que é a nossa casa, disse Ian ao abraçá-la na cama naquela noite, e
ao menos eles tinham conseguido subir um primeiro degrau. Mas a ideia de subir
a escada juntos, degrau após degrau, ano após ano, a enchia de uma terrível
tristeza. E o que haveria no topo?
Mas agora chega. Esta seria uma noite especial, uma comemoração.
Emma saiu da banheira, escovou os dentes e usou fio dental até machucar as
gengivas, borrifou-se uma quantidade generosa de uma colônia com aroma de
madeira e examinou seu escasso guarda-roupa em busca de algo que não a fizesse
parecer a “professora de inglês Emma Morley saindo à noite com seu amigo famoso”.
Decidiu-se por um par de sapatos que machucavam os pés e um vestidinho de festa
preto que tinha comprado meio bêbada na Karen Millen.
Olhou para o relógio. Como estava adiantada, ligou a televisão.
Numa pesquisa nacional para encontrar o Animal de Estimação mais Talentoso da
Grã-Bretanha, Suki Meadows estava no litoral de Scarborough apresentando aos
espectadores um cão que tocava bateria num pequeno tambor, com as baquetas
presas por fita crepe nas patas. Em vez de achar aquela imagem devidamente
inquietante, Suki Meadows gargalhava, de modo borbulhante e estridente, e por
um instante Emma pensou em ligar para Dexter dando alguma desculpa e voltar
para a cama. Afinal, qual era o sentido daquele encontro?
Não era só a questão da namorada efervescente. O fato era que Em e
Dex não andavam se dando muito bem ultimamente. Era comum ele cancelar os
encontros na última hora, e quando se encontravam Dexter parecia distraído,
embaraçado. Falavam um com outro com vozes estranhas e estranguladas, tinham
perdido o jeito de um fazer o outro rir, transformado em zombarias em tom
jocoso e ferino. A amizade entre os dois era como um buquê de flores murchas
que Emma insistia em regar. Por que não deixar morrer?
Era tão irrealista desejar que uma amizade durasse para sempre, e
ela tinha muitos outros amigos: a velha turma da faculdade, os professores da
escola, e Ian, é claro. Mas para quem ela faria confidências a respeito de Ian?
Não para Dexter, não mais. O cão tocava os tambores e Suki Meadows ria muito
quando Emma desligou a TV.
No corredor ela se examinou no espelho. O que pretendia era uma
sofisticação subliminar, mas se sentia como alguém abandonado no meio de uma
maquiagem. Nos últimos tempos andava comendo mais linguiça do que jamais
imaginou ser possível, e lá estava o resultado: uma barriguinha. Ian diria que
ela estava linda se estivesse em casa, mas ela só conseguia enxergar o inchaço
do ventre embaixo do cetim negro. Passou a mão na barriga, fechou a porta e
começou a longa jornada de seu apartamento na zona leste até a zona oeste.
***
— UHU!
Naquela noite quente de verão na Frith Street, Dexter estava ao
telefone com Suki.
— VOCÊ VIU?
— O quê?
— O CACHORRO! TOCANDO TAMBOR! FOI INCRÍVEL!
Dexter estava muito elegante do lado de fora do Bar Italia, de
terno e camisa pretos-foscos, um chapeuzinho de feltro empurrado para trás, o
telefone celular a dez centímetros do ouvido. Tinha a sensação de que, mesmo se
desligasse o aparelho, continuaria ouvindo a voz dela.
— ...AS PEQUENAS BAQUETAS COM AS PATINHAS!
— Foi demais — comentou, apesar de não ter assistido.
A inveja não era um sentimento confortável para Dexter, mas ele
sabia dos rumores — que Suki era o verdadeiro talento, que o carregava nas
costas — e se consolava com a ideia de que o grande destaque atual de Suki, seu
alto salário e a simpatia popular eram uma espécie de concessão artística. O
Animal de Estimação mais Talentoso da Grã-Bretanha? Ele nunca se sujeitaria a
isso. Mesmo se pedissem.
— ELES CALCULAM NOVE MILHÕES DE TELESPECTADORES NESTA SEMANA. DEZ,
TALVEZ...
— Suki, posso explicar uma coisa sobre os telefones? Você não
precisa gritar com eles. O telefone faz isso por você...
Suki bufou e desligou na cara dele, e do outro lado da rua Emma
fez uma pausa para observar Dexter xingando o telefone na mão. Estava muito bem
naquele terno. O chapéu destoava, mas ao menos não estava usando aqueles fones
de ouvido ridículos. Viu a expressão dele se abrir ao avistá-la e sentiu uma
onda de afeto e esperança em relação à noite.
— Você devia se livrar dessa coisa — falou, apontando com a cabeça
para o telefone.
Dexter guardou o telefone no bolso e beijou o rosto dela.
— Você pode escolher: ligar direto para mim ou para um lugar onde
eu possa ou não estar no momento...
— Eu prefiro ligar para o lugar.
— E se eu não atender?
— Até parece que você perde alguma ligação.
— Não estamos mais em 1988, Em...
— É, eu sei...
— Seis meses, eu dou seis meses para você mudar de ideia...
— Nunca...
— Aposto...
— Certo, vamos apostar. Se algum dia eu comprar um celular eu pago
o jantar.
— Puxa, isso seria uma novidade.
— Além do mais, isso faz mal para o cérebro...
— Isso não prejudica em nada o cérebro...
— Como você sabe?
Os dois ficaram um momento em silêncio, ambos com uma vaga
sensação de que a noite não tinha começado bem.
— Não acredito que você já começou a pegar no meu pé — ele comentou,
amuado.
— Bom, é a minha função. — Emma sorriu e o abraçou, encostando o
rosto no dele. — Eu não vou pegar no seu pé. Desculpe, desculpe.
A mão dele estava no pescoço dela.
— Faz um tempão.
— Tempo demais.
Dexter deu um passo atrás.
— Aliás, você está linda.
— Obrigada. Você também.
— Bom, lindo não...
— Então, muito atraente.
— Obrigado. — Pegou as mãos dela e segurou ao lado do corpo. —
Você devia usar vestido mais vezes, fica mais feminina.
— Gostei do seu chapéu, agora pode tirar.
— E os sapatos!
Ela apontou um tornozelo na direção dele.
— É o primeiro salto alto ortopédico do mundo.
Começaram a andar pela multidão em direção a Wardour Street, Emma
segurando no braço dele, sentindo a estranha textura do tecido do terno entre o
indicador e o polegar.
— A propósito, o que é isso? Veludo? Lã aveludada?
— Fustão.
— Já tive um training desse tecido uma vez.
— Nós somos uma dupla e tanto, não somos? Dex e Em...
— Em e Dex. Como Ginger
Rogers e Fred Astaire...
— Richard Burton e
Elizabeth Taylor...
— Maria e José...
Dexter deu risada, pegou no braço dela e logo os dois chegavam ao
restaurante.
O Poseidon era um enorme refúgio escavado no que havia restado de
um estacionamento subterrâneo. A entrada era uma escadaria imensa e teatral que
parecia suspensa acima do salão principal por milagre, fornecendo uma
permanente atração para os comensais abaixo, que passavam a maior parte do
tempo avaliando a beleza e a fama dos recém-chegados. Sem se sentir nem bela nem
famosa, Emma desceu a escada, uma das mãos no corrimão, a outra em concha
escondendo a barriga até que Dexter pegasse esse braço fazendo-a parar. Ele
examinava o lugar com tanto orgulho que parecia ter sido o arquiteto do
projeto.
— Então. O que você acha?
— Uma espécie de Clube Tropicana — ela respondeu.
A decoração do interior sugeria o romantismo e o luxo dos
transatlânticos dos anos 1920: reservados de veludo, garçons de libré carregando
coquetéis, escotilhas decorativas que se abriam para o nada. A ausência de luz
natural conferia ao lugar um aspecto submarino, como se já tivesse se
chocado com o iceberg e estivesse afundando. A pretendida atmosfera de
elegância entre guerras era ainda ressaltada pelo clamor e pela
ostentação do salão, um ambiente impregnado de sexo e juventude, de dinheiro e
fritura. Todo aquele veludo azul e os impecáveis vestidos de linho não
conseguiam abafar o tumulto e o barulho da cozinha aberta, um borrão branco
de aço inoxidável. “Então, eles tinham chegado”, pensou Emma: eram os anos
1980.
— Tem certeza de que é isso mesmo? Deve ser muito caro.
— Eu já disse que estou convidando. — Escondeu a etiqueta do
vestido dela, não sem antes ter lido, depois pegou Emma pela mão e conduziu-a
pelo resto da escada com um passo meio no estilo de Fred Astaire, em direção a
todo aquele dinheiro, sexo e juventude.
Um homem esbelto e atraente, ostentando umas dragonas navais
absurdas, informou que a mesa estaria pronta em dez minutos, por isso eles
seguiram até o bar, onde outro garçom com um falso traje naval fazia
malabarismos com garrafas.
— O que vai querer, Em?
— Gim-tônica?
Dexter desaprovou.
— Você não está mais no Mandela Bar. Deve tomar os drinques
apropriados. Dois martínis Bombay Sapphire, bem secos, com uma casquinha de
limão. — Emma fez menção de dizer algo, mas Dexter ergueu um dedo autoritário.
— Confie em mim. É o melhor martíni de Londres.
Obediente, Emma deliciou-se com o desempenho do barman enquanto
Dexter fazia comentários.
— O truque é deixar tudo muito gelado antes de começar. Água
gelada nas taças, gim no congelador.
— Como você sabe tudo isso?
— Minha mãe me ensinou quando eu tinha... o quê, nove anos? —
Tocaram as taças num brinde sem palavras a Alison e os dois se sentiram outra
vez esperançosos em relação à noite e à amizade entre eles.
Emma levou o martíni aos lábios.
— Eu nunca tomei isso. — O primeiro gole foi delicioso, gelado e
imediatamente inebriante, e ela tentou não derramar o líquido ao estremecer. Ia
agradecer quando Dexter deixou a taça na mão dela, já quase pela metade.
— Vou ao banheiro. Os banheiros aqui são incríveis, os melhores de
Londres.
— Mal posso esperar! — replicou Emma, mas ele já tinha saído e ela
ficou sozinha com duas taças na mão, tentando transmitir uma certa aura de
autoconfiança e glamour para não parecer uma das garçonetes. De repente uma
mulher alta surgiu ao seu lado com um colete de pele de leopardo, meia-calça e
suspensórios, e sua aparição foi tão súbita e surpreendente que Emma deu um
gritinho quando o martíni transbordou no seu pulso.
— Cigarros? — A mulher era extraordinariamente bonita, voluptuosa
e quase nua, como uma figura da fuselagem de um B-52, os seios pendentes sobre
uma bandeja em balanço com charutos e cigarros. — Deseja alguma coisa? —
repetiu, sorrindo por trás da maquiagem e ajustando a gargantilha de veludo no
pescoço com um dedo.
— Não, obrigada, eu não fumo — respondeu Emma, como se fosse uma
falha de caráter que pretendia corrigir, mas a mulher já havia redirecionado
seu sorriso para além do ombro de Emma, adejando os cílios pretos e pegajosos.
— Cigarro, senhor?
Dexter sorriu, tirando a carteira do bolso interno do paletó
enquanto examinava o material exposto debaixo dos seios dela. Com uma mesura de
connaisseur, decidiu-se por um maço de Marlboro Lights, e a Vendedora de
Cigarros aquiesceu como se o cavalheiro tivesse feito uma excelente escolha.
Dexter entregou uma nota de cinco libras dobrada no sentido
longitudinal.
— Pode ficar com o troco — sorriu. Será que existia alguma frase
mais poderosa do que “Pode ficar com o troco”? Ele costumava se sentir
constrangido ao dizer isso, mas agora não mais. A jovem agradeceu com um
sorriso afrodisíaco, e por um breve e indelicado momento Dexter preferiu estar
jantando com a Vendedora de Cigarros, não com Emma.
“Olhe só para ele, o bem-amado”, pensou Emma, percebendo o leve brilho
de satisfação em seu rosto. Houve uma época, não muito tempo atrás, em que
todos os garotos queriam ser Che Guevara. Agora todos querem ser Hugh Hefner.
Com um videogame. Quando a Vendedora de Cigarros saiu para se embrenhar na
multidão, Emma teve a impressão de que Dexter poderia dar um tapinha na bunda
dela.
— Você está babando no fustão.
— Como?
— O que significa isso?
— É uma Vendedora de Cigarros — Dexter deu de ombros, guardando o
maço fechado no bolso. — Esse lugar é famoso por elas.
Isso tem um certo glamour, um pouco de teatro.
— Mas por que ela se veste como uma prostituta?
— Sei lá, Em, talvez seu vestido preto mais careta esteja na
lavanderia. — Pegou de volta o martíni e esvaziou a taça. — Pós-feminismo, talvez?
Emma fez uma expressão cética.
— Ah, então é assim que se chama hoje em dia?
Dexter fez um gesto de cabeça em direção ao traseiro da Vendedora
de Cigarros.
— Você poderia ficar assim, se quisesse.
— Ninguém supera você nessas observações, Dex.
— O que eu quero dizer é que tudo é uma questão de escolha. Isso
dá poder a ela.
— O pensamento com a velocidade de um laser...
— Se ela aceitou usar essa roupa, ela pode usar essa roupa!
— Mas seria demitida se recusasse.
— Assim como os garçons! De qualquer forma, talvez ela goste de
usar essa roupa, talvez ache divertido, se sinta sensual. Isso é feminismo, não
é?
— Bom, não é a definição do dicionário...
— Não me faça parecer um tipo machista, eu também sou feminista!
Emma estalou a língua e revirou os olhos, lembrando-o de como
podia ser chata e tender a dar sermões.
— Eu sou feminista! Sou mesmo! E sou capaz de lutar até a morte,
veja bem, até a morte, pelo direito de uma mulher mostrar os seios para
ganhar gorjetas.
Agora foi a vez de Dexter revirar os olhos e dar uma risada
condescendente.
— Nós não estamos mais em 1988, Em.
— Como assim? Você continua falando isso e eu não sei o que
significa.
— Significa que eu não luto em batalhas que já foram perdidas. O
movimento feminista deveria tratar de salários, oportunidades iguais e direitos
civis, não decidir o que uma mulher pode ou não usar de livre e espontânea
vontade num sábado à noite!
A boca de Emma se abriu numa expressão indignada.
— Não foi isso que eu...
— E, além do mais, eu estou pagando o jantar! Não dificulte a
minha vida!
Era em momentos como aquele que Emma precisava lembrar que era
apaixonada por ele, ou que tinha sido apaixonada por ele muito tempo atrás. Os
dois estavam à beira de uma longa discussão sem sentido que ela achava que
venceria, mas que arruinaria a noite. Em vez de argumentar, escondeu o rosto na
bebida, mordeu o vidro com os dentes e contou até dez antes de dizer:
— Vamos mudar de assunto.
Mas Dexter não estava ouvindo, pois olhava por cima do ombro dela
na direção do maître que os tinha recebido.
— Vamos... eu consegui arranjar um banquete para a gente.
Os dois se sentaram num reservado de veludo púrpura e consultaram
os menus em silêncio. Emma esperava alguma coisa sofisticada, francesa, mas o
cardápio era basicamente composto de pratos de cantina, só que mais caros: bolo
de peixe, torta de cordeiro e hambúrgueres, e acabou definindo o Poseidon como
o tipo de restaurante em que o ketchup é servido numa bandeja de prata.
— É um restaurante inglês moderno — explicou Dexter pacientemente,
como se pagar todo aquele dinheiro para comer salsicha e purê de batatas fosse
moderno e inglês.
— Eu vou pedir ostras — disse. — Ostras cultivadas, acho.
— Elas são mais amistosas? — perguntou Emma sem convicção.
— O quê?
— As ostras cultivadas... são mais amistosas? — insistiu, pensando:
“Meu Deus, estou falando como o Ian.”
Sem entender bem, Dexter franziu o cenho e voltou ao menu.
— Não, elas são só mais doces, peroladas e mais saborosas que as
ostras que vêm das pedras, mais delicadas. Vou pedir uma dúzia.
— De repente você está entendendo de tudo.
— Eu adoro comida. Sempre adorei comida e vinhos.
— Eu me lembro do atum frito que você me preparou uma vez. Ainda
sinto o gosto na garganta. De amônia...
— Não estou falando de cozinhar, mas de restaurantes.
Atualmente eu como fora quase todos os dias. Aliás, me convidaram para escrever
críticas para um suplemento de domingo.
— Sobre restaurantes?
— Sobre bares. Uma coluna semanal chamada “De bar em bar”, uma
visão de um homem das rodas sociais.
— E você mesmo vai escrever?
— Claro que eu mesmo vou escrever! — respondeu, embora já tivesse
sido acertado que boa parte da coluna seria escrita por um ghost-writer.
— O que tanto há para dizer sobre coquetéis?
— Você ficaria surpresa. Os coquetéis estão muito na moda. Uma
coisa de glamour retrô. Na verdade... — encostou a boca na taça de martíni
vazia — ...eu mesmo sou uma espécie de mixólogo.
— Misógino?
— Mixólogo.
— Desculpe, achei que tinha dito “misógino”.
— Pode me perguntar como se faz um coquetel, qualquer coquetel.
Ela apertou o queixo com o dedo.
— Certo... hã... uma cerveja com colarinho.
— Estou falando sério, Em. Isso é uma verdadeira arte.
— O quê?
— Mixologia. As pessoas fazem cursos livres.
— Você devia ter incluído isso nas suas matérias da faculdade.
— Sem dúvida teria sido muito mais útil.
A observação foi tão azeda e beligerante que Emma ficou
visivelmente abalada, e Dexter pareceu também um pouco chocado e escondeu o
rosto atrás da carta de vinhos.
— O que você vai querer, tinto ou branco? Eu vou pedir outro
martíni, depois vamos começar com um belo Muscadet para acompanhar as ostras e
passar para algo como um Margaux. O que você acha?
Fez os pedidos e saiu para o banheiro outra vez, levando junto seu
segundo martíni, o que Emma considerou anormal e vagamente inquietante. Os
minutos se alongaram. Emma leu o rótulo do vinho umas duas vezes e depois ficou
olhando para o espaço, imaginando em que momento Dexter tinha se tornado um...
mixólogo? E por que ela estava sendo tão áspera, ferina e desagradável? Não se
importava com a maneira como a Vendedora de Cigarros se vestia, não tanto
assim, então por que tinha sido tão pedante e dona da verdade? Resolveu relaxar
e se divertir. Afinal aquele era o Dexter, seu melhor amigo, de quem ela
gostava muito. Não gostava?
No toalete mais incrível de Londres, debruçado sobre a pia, Dexter
pensava mais ou menos a mesma coisa. Gostava de Emma Morley, achava que
gostava, mas cada vez mais se ressentia com aquela atitude de retidão, de ser o
centro da comunidade, da cooperativa de teatro, de 1988. Ela parecia tão...
intimidada. Não era adequado, especialmente num ambiente como aquele, um lugar projetado
especialmente para fazer um homem se sentir como um agente secreto. Depois do gulag
sombrio e ideológico de uma educação dos anos 1980, com suas políticas de
culpa e bolchevistas, ele finalmente se permitia ter alguma diversão, e será
que era tão ruim assim gostar de um coquetel, de um cigarro, de flertar com uma
garota bonita?
E aquela ironia. Por que estava sempre pegando no pé dele,
lembrando-o dos seus fracassos? Ele não os havia esquecido. E toda aquela
história de as coisas serem “chiques”, de se sentir gorda, os saltos altos
ortopédicos, a interminável desvalorização de si mesma. “Deus me livre das
comediennes”, pensou, “com suas anedotas autodepreciativas”. Por que uma
mulher não poderia ter um pouco de autoconfiança em vez de se comportar o tempo
todo como um espantalho?
E a questão de classe! Não dava nem para mencionar. Faz questão de
trazer a amiga a um belo restaurante por sua conta, e lá vem bala! Havia uma
espécie de vaidade e certo orgulho na atitude dos heróis da classe trabalhadora
que o deixavam louco. Por que ela continuava se gabando de ter estudado numa
escola pública, de nunca ter passado as férias no exterior, de nunca ter comido
ostras?
Emma já está com quase trinta anos, isso tudo aconteceu muito,
muito tempo atrás, chegou a hora de assumir a responsabilidade pela própria
vida. Deu uma libra ao nigeriano que lhe entregou uma toalha de rosto e voltou
ao restaurante. Avistou Emma do outro lado do salão em seu vestido de enterro
da sua High Street, dedilhando os talheres, e sentiu uma nova onda de
irritação. No bar, à sua direita, viu a Vendedora de Cigarros, sozinha. Ela
também o viu, sorriu, e ele resolveu fazer um desvio.
— Um maço de Marlboro Lights, por favor.
— Mais um? — perguntou sorrindo, a mão tocando no pulso dele.
— O que posso fazer? Eu fumo demais.
Ela riu outra vez, e Dexter imaginou-a ao seu lado na mesa, a mão
apoiada na coxa de meia-calça dela por baixo da mesa. Pegou a carteira.
— Aliás, eu vou a uma festa mais tarde com minha ex-colega de
faculdade que está ali... — “Ex-colega”, pensou, “um toque interessante”. —
...e não quero ficar sem cigarro. — Entregou uma nota de cinco libras, novinha
e dobrada em dois no sentido longitudinal, entre o indicador e o médio. — Pode
ficar com o troco.
Quando ela sorriu, Dexter notou uma pequena lasca de batom rubi
nos seus imaculados dentes da frente. Teve muita vontade de segurar o queixo
dela e limpar aquela mancha com o polegar.
— Você está com batom...
— Onde?
Estendeu o braço até ficar com o dedo a cinco centímetros dos
lábios dela.
— Ali.
— Isso não pega bem! — Passou a ponta da língua rosa nos dentes. —
Está melhor? — sorriu.
— Muito melhor. — Dexter sorriu e se afastou, depois voltou a
olhar para ela.
— Só por curiosidade — falou —, a que horas você sai do trabalho?
***
As ostras tinham chegado, lustrosas e exóticas em seu leito de
gelo derretendo. Emma tinha matado o tempo bebendo muito, com o sorriso fixo de
alguém que fora abandonado, mas na verdade não se importava com aquilo.
Finalmente viu Dexter ziguezagueando pelo restaurante, de uma forma um tanto
instável. Ele enfiou-se no reservado de forma atabalhoada.
— Achei que tinha se perdido! — Era uma frase que a avó dela
costumava dizer. Agora estava usando frases da avó.
— Desculpe — disse Dexter, e nada mais. Eles começaram pelas
ostras. — Olha, tem uma festa hoje mais tarde. Na casa do meu amigo Oliver, que
joga pôquer comigo. Eu já falei com você sobre ele. — Encaixou uma ostra na
boca. — É um baronete.
Emma sentiu água do mar escorrer pelo pulso.
— E o que isso tem a ver com qualquer coisa?
— Como assim?
— O fato de ele ser um baronete.
— Só estou dizendo que ele é um cara legal. Quer limão?
— Não, obrigada. — Engoliu a ostra, ainda tentando descobrir se
tinha sido convidada para a festa ou apenas informada de que haveria uma festa.
— E onde é essa festa? — perguntou.
— Holland Park. Uma casa imensa.
— Ah. Certo.
Ainda não estava claro. Será que era um convite ou uma desculpa
para sair mais cedo? Comeu outra ostra.
— Se quiser, você também pode ir — disse Dexter afinal, pegando o
Tabasco.
— É mesmo?
— Claro — confirmou. Emma observou-o retirando a tampa pegajosa do
frasco de Tabasco com a ponta do garfo. — Só que você não conhece ninguém lá,
tem isso.
Nitidamente ela não estava sendo convidada.
— Eu conheço você — disse sem convicção.
— É, acho que sim. E a Suki! Suki também vai estar lá.
— Ela não está filmando em Scarborough?
— Está voltando agora à noite.
— Ela está indo muito bem, não é?
— Bem, nós dois estamos — respondeu Dexter, de repente um pouco
alto demais.
Emma preferiu ignorar.
— Sim. Foi o que eu quis dizer. Vocês dois. — Pegou outra ostra,
mas devolveu. — Eu gosto muito da Suki — falou, embora só a tivesse visto uma
noite, numa assustadora festa temática inspirada na discoteca Studio 54, em um
clube de Hoxton. E Emma tinha gostado dela, embora não conseguisse deixar de
sentir que Suki a tratava de uma forma estranha, como uma das amigas do passado
e do velho estilo de Dexter, como se ela só estivesse na festa por ter ganho
uma promoção por telefone.
Dexter engoliu outra ostra.
— Suki é ótima, não é?
— É, sim. E como vão vocês dois?
— Tudo bem. Um pouco complicado, sabe como é, estando o tempo todo
na vista do público...
— Nem me diga! — comentou Emma, mas ele pareceu não ter ouvido.
— E às vezes parece que estou saindo com um sistema de
alto-falantes públicos, mas tudo bem. Mesmo. Sabe o que é o melhor no nosso
relacionamento?
— Diga lá.
— Ela sabe como é trabalhar na televisão. Ela entende.
— Dexter... essa é a coisa mais romântica que já ouvi na
vida.
“Lá vem ela de novo”, pensou Dexter, “com suas observações
cortantes”.
— Mas é verdade — deu de ombros, decidindo que assim que pagasse a
conta a noite estaria encerrada. Como se concluísse um pensamento, acrescentou:
— Então, quanto à festa, o que me preocupa é como você vai voltar para casa, só
isso.
— Walthamstow não é em Marte, Dex. Fica no noroeste de Londres.
Existe vida humana por lá.
— Eu sei!
— É na Victoria Line!
— Só que fica longe de transportes públicos, e a festa só começa
depois da meia-noite. Você vai chegar lá e já vai ter que ir embora. A não ser
que eu dê dinheiro para você pegar um táxi...
— Eu tenho dinheiro, eu recebo um salário.
— De Holland Park até
Walthamstow?
— Mas se houver algum inconveniente em eu ir...
— Não! Inconveniente nenhum. Eu gostaria que fosse. Vamos resolver
depois, tá? — e sem dar explicações foi ao banheiro de novo, levando o copo
junto, como se tivesse outra mesa por lá. Emma ficou sozinha, tomando taças e
mais taças de vinho, fervendo como uma chaleira de água no fogo.
E assim acabou-se o prazer. Dexter voltou no momento em que
chegavam os pratos principais. Emma examinou seu hadoque empanado na cerveja
com purê de ervilhas e hortelã. As batatas fritas, grossas e pálidas, tinham
sido cortadas à máquina em tetraedros perfeitos e precariamente empilhadas
sobre o peixe como tijolos, quinze centímetros acima do prato, como se fossem
mergulhar na poça de gosma espessa e esverdeada abaixo. Qual era a deles?
Brincar com blocos de madeira? Com todo o cuidado, pegou uma batata de cima da
pilha. Dura e fria por dentro.
— E como vai o Rei da Comédia? — Depois que voltou do banheiro, o
tom de voz de Dexter tinha se tornado ainda mais beligerante e provocativo.
Emma sentiu-se uma traidora. Aquela poderia ser a deixa para fazer
um desabafo sobre a crise do seu relacionamento e sua confusão quanto ao que
fazer. Mas não poderia conversar com Dexter, não agora. Engoliu uma batata
crua.
— Ian está ótimo — respondeu com ênfase.
— Vocês estão morando juntos, não é? O apartamento está legal?
— Muito bom. Você ainda não conhece, não é? Precisa visitar a
gente um dia desses! — O convite foi sem entusiasmo, e a resposta foi um
descomprometido “Hum”, como se Dexter duvidasse que existissem prazeres além da
Zona 2 do metrô. Fez-se silêncio, e os dois voltaram aos seus pratos.
— Como está o seu filé? — ela perguntou afinal. Dexter parecia ter
perdido o apetite, dissecando a carne vermelha e sangrenta sem na verdade comer
nada.
— Sensacional. E o seu peixe?
— Frio.
— É mesmo? — Examinou o prato dela e depois meneou a cabeça com um
ar de conhecedor. — Está firme e consistente, Em. É assim que o peixe tem que
ser preparado, para ficar consistente.
— Dexter... — a voz dela soou dura e aguda — esse peixe está consistente
porque é congelado. E não foi bem descongelado.
— É mesmo? — Cutucou violentamente a camada de empanado com o
dedo. — Bom, vamos mandar isso de volta!
— Tudo bem. Eu vou comer só as batatas.
— Que merda, nada disso! Vamos devolver! Eu não vou pagar por uma
porra de um peixe congelado! — Acenou para um garçom e Emma viu Dexter se
afirmar, insistindo em que o prato não estava bom, que no menu estava escrito
peixe fresco, que aquilo tinha de ser retirado da conta e substituído por outro
prato sem custo nenhum. Emma tentou dizer que havia perdido a fome, mas Dexter insistia
em que ela comesse outra coisa, pois não iria custar nada. Não houve outra
escolha a não ser consultar o menu de novo, sob as vistas do garçom e de
Dexter, e durante todo esse tempo o filé continuava no prato, mutilado e não
comido, até que as coisas afinal se resolveram e ela pediu uma salada verde e
os dois ficaram a sós outra vez.
Permaneceram em silêncio no meio dos escombros da noite, diante de
dois pratos de comida desprezados, e Emma achou que talvez fosse chorar.
— Puxa. Isso vai indo bem — falou Dexter, afastando o guardanapo.
Emma queria ir para casa. Pular a sobremesa, esquecer a festa —
ele nem queria mesmo que fosse — e ir para casa. Talvez Ian já tivesse voltado,
delicado e atencioso, apaixonado por ela, e os dois poderiam conversar, ou
apenas ficar abraçados e assistir à televisão.
— Então... — Os olhos dele escaneavam o salão enquanto falava. —
Como vai o trabalho de professora?
— Vai muito bem, Dexter — respondeu com uma careta.
— O que foi? O que eu fiz dessa vez? — replicou indignado,
voltando os olhos para ela.
Emma falou com a voz firme.
— Se você não está interessado, não pergunte.
— Eu estou interessado! É que... — Serviu mais vinho na taça. —
Achei que você estava querendo escrever um livro ou coisa assim?
— Eu estou escrevendo um livro ou coisa assim, mas também preciso
ganhar dinheiro. E, indo direto ao ponto, eu gosto de ensinar, Dexter, e sou
uma professora muito boa!
— Tenho certeza de que é ótima! É que, bom, você conhece o ditado:
“Quem sabe, faz...”
O queixo de Emma caiu. “Fique calma...”
— Não, não conheço, Dexter. Diga para mim. Qual é o ditado?
— Você sabe...
— Não, é sério, Dexter, fala para mim.
— Não é importante. — Estava começando a parecer envergonhado.
— Eu gostaria de saber. Termine a frase. “Quem sabe, faz...”
Dexter suspirou, a taça de vinho na mão, depois falou sem emoção.
— “Quem sabe, faz, quem não sabe, ensina...”
Emma cuspiu as palavras:
— E os que ensinam querem que você se foda.
Agora a taça de vinho estava caída no colo dele, pois Emma
empurrou a mesa para se levantar e pegar a bolsa, derrubando garrafas, batendo
pratos ao sair do reservado para ir embora correndo daquele lugar odioso,
odioso. As pessoas em volta olhavam assustadas, mas ela não ligava, só queria
sair de lá. “Não chore, você não vai chorar”, ordenou a si mesma e, olhando
para trás, viu
Dexter furioso enxugando o colo, aplacando o garçom e saindo atrás
dela. Emma virou-se, começou a correr e lá estava a Vendedora de Cigarros
descendo a escada em sua direção, de pernas longas e saltos altos, um sorriso
dividindo a boca escarlate. Apesar de seu juramento, Emma sentiu lágrimas
quentes de humilhação queimarem seus olhos e tropeçou naqueles estúpidos saltos
altos, caindo na escada, e toda a plateia de comensais atrás dela prendeu a
respiração quando ela ficou de joelhos. A Vendedora de Cigarros estava ao seu
lado, segurando-a pelo cotovelo, com um olhar de preocupação verdadeira e
irritante.
— Está tudo bem?
— Sim, obrigada, tudo bem...
Mas agora Dexter tinha chegado e a ajudava a se levantar. Emma se
desvencilhou da ajuda dele com firmeza.
— Sai da minha frente, Dexter!
— Não grite, acalme-se...
— Eu não vou me acalmar!
— Tudo bem, desculpe, desculpe, desculpe. Seja o que for que
deixou você brava, desculpe!
Emma virou-se para ele na escada, os olhos flamejantes.
— O quê, então você não sabe?
— Não! Vamos voltar para a mesa e aí você me conta! — Mas ela saiu
cambaleando, passou pela porta vaivém, fechando-a atrás dela, o que fez com que
o batente de metal acertasse o joelho de Dexter. Ele saiu mancando atrás dela.
— Isso é uma bobagem, nós dois estamos um pouco bêbados, só isso...
— Não, Dexter. Você está bêbado! Está sempre bêbado ou
drogado de uma coisa ou de outra toda vez que a gente se encontra. Sabe que eu
não vejo você sóbrio há uns, sei lá, três anos? Já esqueci como você é quando
sóbrio. Agora você só fala de si mesmo e dos seus novos amigos, isso quando não
sai correndo para o banheiro de dez em dez minutos... Não sei se é disenteria
ou se é cocaína demais, mas de qualquer forma é muito indelicado e, acima de
tudo, chato para cacete. Mesmo quando fala comigo você está sempre olhando por
cima do meu ombro, para o caso de haver uma opção melhor...
— Isso não é verdade!
— É a verdade, Dexter! Ah, que se dane. Você é um apresentador
de TV, Dex. Você não inventou a penicilina, só trabalha na TV, e uma TV de
merda aliás. Vá para o inferno, para mim chega.
Os dois estavam no meio da multidão da Wardour Street, sob o que
restava da luz da tarde.
— Vamos até algum lugar conversar sobre isso.
— Eu não quero conversar sobre nada, só quero ir para casa...
— Emma, por favor?
— Dexter, me deixe em paz, tá?
— Você está histérica. Vem cá. — Pegou no braço dela de novo e, de
uma forma idiota, tentou abraçá-la. Emma o empurrou, mas ele continuou
segurando. As pessoas olhavam para eles, mais um casal brigando no Soho numa
noite de sábado, e ela afinal cedeu, permitindo-se ser puxada para uma rua
lateral.
Os dois ficaram em silêncio, Dexter afastando-se para vê-la
melhor. Emma estava de costas, enxugando os olhos com a palma da mão, e de
repente sentiu uma pontada de vergonha.
Finalmente falou, com a voz calma, o rosto virado para a parede.
— Por que você está sendo assim, Dexter?
— Assim como?
— Você sabe como.
— Eu só estou sendo eu mesmo!
Emma virou-se para encará-lo.
— Não, você não é assim. Eu sei como você é, e esse não é você.
Você fica horrível desse jeito. Está detestável, Dexter. Quer dizer, você sempre
foi um pouco detestável de vez em quando, meio cheio de si, mas também era
engraçado, e às vezes até delicado, interessado por outras pessoas que não você
mesmo. Mas agora está fora de controle, com a bebida e todas essas drogas.
— Só estou me divertindo!
Emma fungou e olhou para ele através dos olhos borrados de
maquiagem.
— E às vezes eu exagero um pouco, só isso — continuou. — Se você
não... me julgasse o tempo todo...
— Eu? Acho que não. Eu tento não fazer isso. É que eu não... —
Parou de falar, balançou a cabeça. — Eu sei que você passou por muita coisa
nesses últimos anos, eu tentei entender isso, tentei mesmo, com a morte da sua
mãe e tudo o mais...
— Continue — falou Dexter.
— Mas acho que você não é mais a pessoa que eu conhecia. Não é
mais meu amigo. Só isso.
Dexter não conseguia pensar em nada para dizer diante daquilo, por
isso os dois ficaram em silêncio, até Emma estender a mão, segurar dois dedos
da mão dele e apertar.
— Talvez... talvez seja isso, então — falou. — Talvez simplesmente
tenha acabado.
— Acabado? O que foi que acabou?
— Nós. Você e eu. A amizade. Eu tinha coisas para conversar com
você, Dex. Sobre Ian e eu. Se você fosse meu amigo eu conseguiria falar, mas
não consigo e, se eu não consigo mais falar com você, bom, qual o sentido disso
tudo? De nós dois?
— Qual é o sentido...?
— Você mesmo disse que as pessoas mudam, não adianta ser
sentimental a respeito. O negócio é ir em frente, encontrar outras pessoas.
— Sim, mas eu não estava falando de nós...
— Por que não?
— Porque nós somos... nós. Somos Dex e Em. Não somos?
Emma deu de ombros.
— Talvez a gente tenha se afastado um do outro.
Por um momento Dexter não disse nada, depois falou:
— Então você acha que eu me afastei de você, ou que você se
afastou de mim?
Emma enxugou o nariz com as costas da mão.
— Eu acho que você me acha... patética. Acha que eu atrapalho o
seu estilo. Você perdeu o interesse por mim.
— Em, eu não acho você patética.
— Nem eu! Nem eu! Eu me acho maravilhosa, porra, só que
você não percebe, mas pelo que sei você também pensava assim. Se não pensa mais
e se não vai me dar mais valor, tudo bem. Eu simplesmente não estou preparada
para continuar sendo tratada dessa maneira.
— Tratada de que maneira?
Emma suspirou, passou-se um momento antes de ela responder.
— Como se estivesse sempre querendo estar em outro lugar, com
outra pessoa.
Dexter teria negado, mas naquele exato instante a Vendedora de
Cigarros estava esperando no restaurante, o número do celular dele espetado na
cinta-liga. Mais tarde se perguntaria se havia algo mais que pudesse ter dito
para salvar a situação, talvez fazer uma piada. Mas não conseguiu pensar em
nada e Emma largou a mão dele.
— Então pode ir embora — disse Emma. — Vai para a sua festa. Agora
você está livre de mim. Totalmente livre.
Com uma hesitante bravata, Dexter tentou rir.
— Você fala como se estivesse me dispensando!
Emma deu um sorriso tristonho.
— Acho que estou, de certa forma. Você não é mais o mesmo. Eu
realmente gostava do outro Dex, gostaria que ele voltasse.
Enquanto isso, sinto muito, mas acho que você não devia mais me
telefonar. — Deu meia-volta e começou a andar pela alameda lateral, um pouco
desequilibrada, em direção à Leicester Square.
Por um instante Dexter teve uma lembrança passageira, porém
perfeitamente clara, de si mesmo no enterro da mãe, encolhido no chão do
banheiro enquanto Emma o abraçava e acariciava seus cabelos. Mas, de alguma
forma, tinha conseguido reduzir aquilo a nada, jogar tudo fora como um entulho
inútil. Andou um pouco atrás dela.
— Vamos lá, Em, ainda somos amigos, não somos? Sei que tenho
andado meio estranho, mas é que... — Emma parou, mas não se virou, e Dexter
sabia que ela estava chorando. — Emma?
Emma virou-se rapidamente, caminhou até ele e puxou seu rosto
contra o dela, o rosto quente e úmido encostado no dele, falando depressa e em
voz baixa no seu ouvido, e por um instante de glória Dexter pensou que seria
perdoado.
— Dexter, eu te amo muito. Muito, muito, e provavelmente
sempre amarei. — Os lábios dela encostaram no rosto dele. — Só que eu não gosto
mais de você. Sinto muito.
E assim ela foi embora, e Dexter se viu sozinho naquela viela
lateral tentando imaginar o que fazer a seguir.
***
Ian volta pouco antes da meia-noite e encontra Emma encolhida no
sofá, assistindo a um filme antigo.
— Chegou cedo. Como estava o Garoto de Ouro?
— Péssimo — murmura Emma.
Ian não demonstra na voz se sente alguma alegria com aquilo.
— Por quê? O que aconteceu?
— Eu não quero falar sobre isso. Não hoje.
— Por que não? Conta para mim, Emma! O que ele disse? Vocês
discutiram?...
— Ian, por favor? Hoje não. Só venha ficar do meu lado, tá?
Emma se ajeita para que ele possa se sentar no sofá, e Ian nota o
vestido que está usando, o tipo de roupa que nunca usa com ele.
— Você foi com esse vestido?
Emma segura a bainha do vestido entre o polegar e o indicador.
— Foi um erro.
— Você está linda.
Emma se acomoda melhor, a cabeça no ombro dele.
— E como foi o seu show?
— Nada espetacular.
— Você apresentou o quadro dos cães e gatos?
— Hu-hum.
— Houve muitas interferências?
— Algumas.
— Talvez não seja o seu melhor número.
— E algumas vaias.
— Mas isso faz parte, não faz? Todo mundo passa por isso algum
dia.
— Imagino que sim. Mas às vezes eu fico pensando...
— O quê?
— Que talvez eu não seja... muito engraçado.
Emma fala com a boca no peito dele.
— Ian?
— O quê?
— Você é um cara muito, muito engraçado.
— Obrigado, Em.
Afagando a cabeça dela, pensa na pequena caixa carmim forrada de
seda amassada com o anel de noivado. Nas últimas duas semanas a caixinha esteve
escondida numa meia enrolada, esperando o momento certo. Mas não seria agora.
Dali a três semanas eles vão estar numa praia grega em Corfu. Imagina os dois
num restaurante em frente ao mar, a lua cheia, Emma em seu vestido de verão,
bronzeada, sorrindo, talvez com uma travessa de lulas entre eles. Imagina-se
presenteando-a com o anel de uma forma divertida. Há algumas semanas vem
criando diferentes cenários cômico-românticos na cabeça — talvez jogar o anel
na taça de vinho quando ela estiver no toalete, ou encontrá-lo por acaso na
boca do peixe grelhado e reclamar com o garçom. Ou talvez disfarçá-lo no meio
dos anéis de lula. Poderia até simplesmente entregar a ela. Ensaia as palavras
mentalmente. “Vamos nos casar, Emma Morley. Vamos nos casar.”
— Eu te amo muito, Em — fala.
— Eu também te amo — retribui Emma. — Eu também te amo.
***
A Vendedora de Cigarros está no balcão curtindo seus vinte minutos
de folga, o traje coberto pelo casaco, bebericando uísque e ouvindo aquele
homem que não para de falar da amiga, a pobre garota bonita que caiu na escada.
Parece que os dois brigaram. A Vendedora de Cigarros se liga e desliga do
monólogo do homem, concordando de vez em quando e olhando disfarçadamente para
o relógio. Faltam cinco minutos para a meia-noite e ela precisa voltar ao
trabalho. O período entre meia-noite e uma hora é o melhor para gorjetas, uma
marca registrada da luxúria e da estupidez por parte dos clientes do sexo
masculino. Mais cinco minutos e ela terá de ir. O pobre rapaz mal consegue
ficar em pé, realmente.
Ela o reconhece daquele programa idiota — não é ele que está
saindo com a Suki Meadows? —, mas não se recorda o nome. Aliás, será que alguém
assiste àquele programa? O terno dele está manchado, os bolsos estufados de
maços de cigarro fechados, há um brilho oleoso no nariz, o hálito é pesado. E,
o que é pior, ele ainda não pensou em perguntar qual é o nome dela.
A Vendedora de Cigarros chama-se Cheryl Thomsom. Trabalha a maior
parte dos dias como enfermeira, o que é cansativo, mas às vezes faz um bico ali
porque estudou com o gerente e as gorjetas são inacreditáveis, desde que se
esteja preparada para flertar um pouquinho. O noivo a espera em seu apartamento
em Kilburn. Milo, italiano, 1,85m, já foi jogador de futebol, mas agora também é
enfermeiro. Muito bonito. Eles vão se casar em setembro.
Poderia contar tudo isso se o homem perguntasse, mas ele não
pergunta. Assim, dois minutos antes da meia-noite do Dia de São Swithin, ela
pede licença — preciso voltar ao trabalho; não, não posso ir à festa; sim, eu
tenho o seu telefone; espero que se entenda com a sua amiga — e deixa o homem
sozinho no bar, pedindo mais uma bebida.
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