Capítulo 1 - June

Las Vegas, Nevada
República da América
População: 7.427.431

4 DE JANEIRO, 19H32.
HORÁRIO PADRÃO DO OCEANO.
35 DIAS DEPOIS DA MORTE DE METIAS.

Day acorda assustado ao meu lado. Sua testa está coberta de suor, e seu rosto, molhado de lágrimas. Ele respira com dificuldade.
Eu me debruço sobre ele e afasto uma mecha de cabelo molhada de seu rosto. A esfoladura rio meu ombro já está coberta por uma casca, mas meus movimentos fazem com que volte a latejar. Day senta-se, esfrega os olhos, e olha ao redor como se procurasse por alguma coisa dentro do vagão inclinado. Olha primeiro para as pilhas de engradados num canto escuro, depois para a lona que forra o chão e para a pequena sacola de comida e água entre nós. Ele demora um minuto para se reorientar, e para se lembrar de que estamos pegando carona num trem com destino a Las Vegas. Passam-se alguns segundos até ele relaxar a postura rígida e se largar contra a parede.
Dou um tapinha afetuoso em sua mão.
— Você está bem?
Essa é minha pergunta constante.
Day dá de ombros e murmura:
— Estou. Foi só um pesadelo.
Nove dias se passaram desde que saímos de Batalla Hall e fugimos de Los Angeles. Desde então, Day tem pesadelos toda vez em que fecha os olhos. Logo que fugimos, conseguimos dormir algumas horas em um pátio de manobras abandonado, e Day acordou gritando. Tivemos sorte, e nenhum soldado ou policial fazendo a ronda nas ruas o ouviu. Depois disso, criei o hábito de acariciar seus cabelos, assim que ele adormece, e de beijar seu rosto, a testa e as pálpebras. Ele ainda acorda aos soluços, e os olhos procuram freneticamente todas as coisas que perdeu, mas, pelo menos, faz isso em silêncio.
Às vezes, quando Day fica tranquilo assim, eu me pergunto se ele está conseguindo manter a sanidade. Essa ideia me assusta. Não posso me dar ao luxo de perdê-lo.
Fico tentando me convencer de que me sinto assim por razões práticas: teríamos reduzida nossa possibilidade de sobreviver sozinhos a esta altura, e as habilidades dele complementam as minhas. Além do mais, não me restou ninguém a quem proteger.
Também tenho minha cota de lágrimas, embora sempre espere para chorar depois de ele ter dormido. Ontem à noite gritei o nome de Ollie.
Sinto-me meio boba ao chorar por meu cachorro quando a República matou nossas famílias, mas não posso evitar. Foi Metias que o levou para casa; era uma bolinha branca com patas enormes, orelhas penduradas e grandes e afetuosos olhos castanhos. A criatura mais doce e desengonçada que eu havia visto. Ollie era muito amado, e eu o deixara para trás.
— Com o que você sonhou? — sussurrei.
— Não me lembro — respondeu ele.
Day mudou de posição, e estremeceu ao raspar sem querer a perna ferida no chão. A dor fez seu corpo enrijecer e percebi que seus braços estavam rígidos sob a camisa, protuberâncias de puro músculo, resultado de sua luta pela vida nas ruas. Um respirar forçado lhe escapou dos lábios.
A maneira como ele me empurrou contra a parede daquele beco, o ardor de seu primeiro beijo.Desviei o olhar de sua boca e tentei afugentar aquela lembrança, constrangida.
Ele aponta com a cabeça para as portas laterais do vagão e pergunta:
— Onde estamos agora? Devemos estar perto, não?
Eu me levantei, satisfeita porque a pergunta me deu algo novo em que pensar e me apoiei na parede oscilante enquanto espreitava pela janela minúscula do vagão. A paisagem não havia mudado muito: filas intermináveis de prédios de apartamentos e fábricas, chaminés e antigas auto-estradas abauladas, todas banhadas pelos tons azuis, acinzentados e roxos da chuva vespertina. Ainda estávamos passando pelas favelas, que pareciam idênticas às de Los Angeles. Uma enorme represa se estendia ao longe. Esperei até um enorme telão começar a piscar, depois apertei os olhos para ver as letrinhas no canto debaixo da tela.
— Boulder City, Nevada. Estamos bem perto agora. O trem provavelmente vai parar aqui por algum tempo, mas depois não deve demorar mais de cinco minutos para chegar a Vegas.
Day inclina a cabeça, concordando. Ele se debruça, abre a nossa sacola de alimentos, procura algo para comer, e diz:
— Beleza! Quanto mais rápido chegarmos, mais rápido vamos encontrar os Patriotas.
Ele parece distante. Às vezes, Day me conta seus sonhos: ser reprovado na sua Prova, perder Tess nas ruas ou fugir das patrulhas contra a praga. Tem também pesadelos sobre ser o criminoso mais procurado da República. Em outras ocasiões, quando fica do jeito que está agora e não me conta nada, sei que ele sonhou com a família dele: a morte da mãe, ou de John. Talvez seja mesmo melhor que ele não me fale sobre seus pesadelos. Meus sonhos ruins já são suficientes para me assombrar e não sei se tenho coragem de saber os dele.
—Você está mesmo determinado a encontrar os Patriotas, não está? — pergunto quando Day tira da sacola de alimentos um naco rançoso de massa frita. Esta não é a primeira vez em que questiono sua insistência em ir a Vegas, e sou cautelosa quanto à maneira de abordar o assunto. A última coisa que quero é que Day pense que não me importo com Tess, ou que tenho medo de me defrontar com o famoso grupo rebelde dos Patriotas.
— Tess foi com eles porque quis. Será que estamos colocando-a em perigo ao tentar reavê-la?
Day não responde imediatamente. Ele parte a massa frita pela metade e me oferece um pedaço:
— Pega um pedaço. Já faz um tempo que você não come.
Ergo a mão gentilmente, num sinal negativo, e respondo:
— Não, obrigada. Não gosto de massa frita.
No mesmo instante, desejei engolir minhas palavras. Day baixa os olhos, recoloca a segunda metade na sacola, e começa a comer seu pedaço. Eu sou uma idiota: "Não gosto de massa frita".Quase consigo ouvir o que se passa na cabeça dele: Pobre menina rica, com suas frescuras e modos elegantes. Ela pode se dar o luxo de não gostar da comida.
Eu me censurei em silêncio, e prometi ter mais cuidado na próxima vez. Após mastigar um pouco, Day finalmente responde:
— Eu não vou deixar Tess pra trás sem saber se ela está bem.
Claro que ele não faria isso. Day jamais deixaria para trás uma pessoa com quem se importasse, especialmente a menina órfã com quem cresceu nas ruas. Também compreendo o valor em potencial de encontrar os Patriotas; afinal de contas, os rebeldes nos ajudaram a fugir de Los Angeles. São um grupo grande e bem organizado.
Talvez eles tenham informações sobre o que a República está fazendo com Éden, o irmãozinho caçula de Day. Pode ser até que possam ajudar a curar seu ferimento na perna. Desde aquela manhã fatídica em que a Comandante Jameson lhe deu um tiro na perna e o prendeu, a lesão de Day parece uma roda-gigante: melhora e depois piora. Sua perna esquerda é agora uma massa de ossos quebrados e carne sangrenta. Ele precisa de cuidados médicos.
Temos, porém, um problema.
— Os Patriotas só vão nos ajudar se forem pagos, Day. Que podemos dar a eles?
Para enfatizar o que disse, meto a mão nos bolsos e deles tiro um pequeno maço de dinheiro, quatro mil Notas. Era tudo que eu tinha comigo antes de fugirmos. E incrível como sinto falta do luxo da minha antiga vida. Existem milhões de Notas em nome da minha família, Notas às quais jamais voltarei a ter acesso. Day fica examinando o pedaço de massa em sua mão, e considera minhas palavras, com os lábios cerrados.
— É, eu sei — diz ele, passando a mão no cabelo louro emaranhado -, mas o que você sugere que a gente faça? A quem mais podemos recorrer?
Sacudo a cabeça, em sinal de impotência. Day está certo a esse respeito; embora eu não tenha o menor prazer em rever os Patriotas, nossas opções são bastante limitadas. Antes, quando os Patriotas nos ajudaram a fugir do Batalla Hall, quando Day continuava inconsciente e eu estava ferida no ombro, pedi aos Patriotas que nos deixassem ir com eles até Vegas. Eu esperava que eles continuassem a nos ajudar, mas... Eles se recusaram.
— Tu só pagou a gente para impedir que Day fosse executado; não pagou para levar esse rabo machucado de vocês daqui até Vegas — foi o que Kaede disse na ocasião. E completou: — Porra, os soldados da República estão caçando vocês por aí. Isso aqui não é uma instituição de caridade. Não vou arriscar meu lindo pescocinho por vocês dois de novo; só se tiver grana na jogada.
Até essa altura, eu quase havia acreditado que os Patriotas se importavam conosco, mas as palavras de Kaede me trouxeram de volta à realidade. Eles só nos ajudaram porque paguei à Kaede 200.000 Notas da República, o dinheiro que recebi como recompensa pela captura de Day. Mesmo assim, foi necessária alguma persuasão antes que ela mandasse seus companheiros Patriotas nos ajudar.
Permitiram que Day visse Tess. Deram um jeito em sua perna machucada. Ajudaram-nos com informações sobre o paradeiro do irmão de Day. Todas essas coisas implicam suborno.
Foi uma pena eu não ter tido oportunidade de pegar mais dinheiro antes de irmos embora.
—Vegas é o pior lugar possível para ficarmos perambulando sozinhos
— digo a Day enquanto cuidadosamente esfrego meu ombro em processo de cura. — Talvez os Patriotas nem nos recebam. Só quero ter certeza de que estamos fazendo a coisa certa.
— June, sei que você não consegue acreditar que os Patriotas sejam nossos aliados — respondeu Day. — Você foi treinada para odiá-los, mas eles são mesmo aliados em potencial. Confio neles mais do que na República. Você não?
Não sei se ele pretendeu que suas palavras parecessem ofensivas. Day não entendeu o que estou tentando dizer: os Patriotas provavelmente não nos ajudarão, e, nesse caso, ficaremos sem saída numa cidade militar.
Ele acha que estou hesitando porque não confio nos Patriotas. E que, lá no fundo, continuo a ser June Iparis, a prodígio mais celebrada da República, e que ainda sou leal a este país. Será que isso é verdade?
Agora sou uma criminosa, e nunca poderei voltar a desfrutar os privilégios da minha antiga vida. Esses pensamentos me dão uma sensação de náusea e de vazio no estômago, como se eu sentisse falta de ser a queridinha da República. Talvez seja isso mesmo.
Se já não sou a" queridinha da República", então quem sou eu?
—Tudo bem.Vamos tentar encontrar os Patriotas — digo.
Está claro para mim que não vou conseguir persuadi-lo a fazer qualquer outra coisa.
Day faz um sinal afirmativo com a cabeça e sussurra:
— Obrigado.
A sombra de um sorriso surge no seu rosto adorável, animando-me com seu irresistível calor, mas ele não tenta me abraçar, nem pegar na minha mão. Não se aproxima para que nossos ombros se toquem, não acaricia meu cabelo, não murmura tranquilizadoramente no meu ouvido, nem apoia sua cabeça na minha. Eu não tinha me dado conta do quanto ansiava por esses pequenos gestos. De alguma forma, nunca estivemos tão separados quanto agora.
Talvez o pesadelo dele tenha sido comigo.

***

Aconteceu tão logo chegamos à Strip, a rua principal de Las Vegas, onde ficam os cassinos.
O anúncio.
Para começo de conversa, se há um lugar em Vegas onde não deveríamos estar é na sua principal artéria. Grandes telões (seis deles em cada quarteirão) ocupam os dois lados da rua mais movimentada da cidade; as telas exibem uma sucessão interminável de notícias. Conjuntos ofuscantes de focos de luz clareiam as paredes obsessivamente. Os edifícios devem ser duas vezes maiores que os de Los Angeles.
O centro da cidade é dominado por arranha-céus monumentais e enormes plataformas de desembarque em forma de pirâmides (oito delas com bases quadradas e lados em triângulos equiláteros), com luzes brilhantes emitidas por suas extremidades. O ar do deserto fede à fumaça e é tão seco que chega a incomodar; aqui não há furacões para saciar a sede - aquela bebida feita de melaço e suco de maracujá nem áreas à beira-mar, nem lagos.
Tropas avançam para cima e para baixo, patrulhando as ruas (em formação quadrangular alongada, típica de Vegas). Trajam o uniforme preto listrado dos soldados que cumprem sua rota indo e vindo da zona de combate. Mais adiante, depois da rua principal de arranha-céus, há filas de aviões de caça posicionados em uma larga faixa do aeroporto.
Dirigíveis trafegam acima.
Esta é uma cidade militar, um mundo de soldados.
O Sol acabara de se pôr quando Day e eu atravessamos a rua principal. Day apoia todo o seu peso em meu ombro, enquanto tentamos nos misturar à multidão. Sua respiração é fraca e o rosto estampa sua dor.
Faço o possível para apoiá-lo sem parecer deslocada, mas seu peso me faz andar em linhas tortas, como se eu tivesse bebido muito.
— Como estamos nos saindo? — murmura ele em meu ouvido; seus lábios quentes roçando minha pele. Não sei dizer se está meio delirante por causa da dor, ou se é a minha roupa, mas não me importo com seu evidente flerte esta noite. É uma mudança prazerosa da nossa constrangedora viagem de trem. Ele tem o cuidado de manter a cabeça baixa e inclinada para se ocultar dos soldados que percorrem sem cessar as calçadas, os olhos escondidos sob os longos cílios. Day se mexe, inquieto, na jaqueta militar e nas calças. Um quepe preto de soldado esconde o cabelo louro como trigo, e bloqueia grande parte do seu rosto.
— Razoavelmente bem — respondo. — Lembre-se de que você está bêbado, e feliz. Supostamente, você está louco de desejo por sua acompanhante. Tente sorrir um pouquinho mais.
Day estampa um grande sorriso artificial no rosto, ainda assim consegue ser tão encantador como sempre.
— Como assim, delícia? Eu todo crente que estava arrasando. Estou agarrado com a maior gata deste quarteirão; como é que eu podia não estar louco de desejo por você? Não dá para ver que estou louco de desejo por você? É assim que faço quando estou louco de desejo por alguém — ele pisca freneticamente.
Ele está tão ridículo, que começo a rir. Um pedestre me encara.
— Assim é muito melhor.
Estremeço quando ele roça o rosto em meu pescoço.
Continue fingindo. Concentre-se.
As quinquilharias que tenho na cintura e ao redor do tornozelo parecem sininhos enquanto andamos.
— Como está sua perna?
Day se afasta um pouco e diz:
— Estava indo muito bem até você tocar no assunto — geme, e depois estremece ao tropeçar em um buraco da calçada. Eu o seguro com mais força. — Eu consigo aguentar até pararmos para descansar.
— Lembre-se de pôr dois dedos na testa se precisar parar.
— Tá legal. Eu aviso quando estiver mal.
Uma dupla de soldados caminha em nossa direção com suas próprias garotas de programa. Meninas sorridentes com sombras chamativas nos olhos, e tatuagens bem feitas no rosto, os corpos mal cobertos por trajes de dança e plumas vermelhas artificiais. Um dos soldados me olha, ri, e arregala os olhos vidrados.
— De onde você saiu, gostosa? — pergunta ele com voz enrolada. — Não me lembro de ter visto você por aqui.
Ele tenta me pegar pela cintura, as mãos buscando minha pele nua.
Antes que ele possa me alcançar, o braço de Day se move rapidamente e
empurra com força o soldado.
— Não toque nela.
Day dá um sorriso moleque e pisca para o soldado, mantendo os modos despreocupados, mas a advertência nos olhos e na voz faz o outro homem recuar. Ele pisca para nós dois, resmunga baixinho alguma coisa, e sai cambaleante, com os amigos.
Tento imitar a maneira como as garotas de programa riem, e jogo o cabelo para trás.
— Da próxima vez, não se preocupe comigo — sibilo no ouvido de Day mesmo enquanto o beijo no rosto, como se ele fosse o melhor cliente. — A última coisa de que precisamos é uma briga.
— Como assim? — Day dá de ombros e volta a andar, dolorosamente. — Seria uma briga patética. Ele mal conseguiria ficar de pé...
Sacudo a cabeça e resolvo ignorar a ironia.
Um terceiro grupo de soldados passa tropeçando por nós, totalmente embriagados. (São sete cadetes, dois tenentes, exibindo braçadeiras douradas com insígnias do estado de Dakota, o que quer dizer que eles acabaram de chegar do Norte e ainda não trocaram seus identificadores pelos novos com o batalhão da frente de batalha.) Estão abraçados a garotas de programa das boates do Bellagio: moças espalhafatosas com gargantilhas escarlates e tatuagens com a letra B nos braços. Esses soldados provavelmente estão acomodados nas barracas acima das boates.
Examino de novo meu próprio traje, roubado dos camarins do Sun Palace. Para todos os efeitos, pareço uma garota de programa. Estou com correntes e quinquilharias douradas na cintura e nos tornozelos, além de plumas e fitas douradas presas no meu cabelo trançado escarlate (tingido por spray). Exibo também uma sombra esfumaçada cintilante nos olhos, e uma tatuagem de uma fênix ameaçadora que vai da lateral do rosto até a pálpebra. Minha roupa vermelha deixa meus braços e cintura expostos, e renda negra reveste minhas botas.
Mas há uma coisa na minha indumentária que as outras moças não estão usando: uma corrente de treze pequenos espelhos reluzentes, parcialmente ocultos entre os demais ornamentos enrolados nos meus tornozelos, que, vista de longe, parece uma tornozeleira qualquer. Nada que chame a atenção, mas de vez em quando, quando as luzes da cidade focalizam a corrente, ela se transforma numa fileira de luzes cintilantes e brilhantes. Treze, o número não oficial dos Patriotas. Esse é nosso sinal para eles, que devem estar vigiando a rua principal de Vegas o tempo todo, de modo que sei que eles pelo menos notarão uma fila de luzes reluzindo sobre mim. E quando isso acontecer, vão nos reconhecer como a mesma dupla que ajudaram a resgatar em Los Angeles.
Os telões da rua estalam por um instante. O juramento deve estar para começar. Ao contrário de Los Angeles, Vegas faz o juramento nacional cinco vezes por dia. Todas as telas param qualquer comercial ou noticiário que esteja no ar, para substituí-lo por uma enorme imagem do Primeiro Eleitor e, em seguida, transmitir a seguinte declaração no sistema de som da cidade:
Juro fidelidade à bandeira da nossa grande República da América, a nosso Primeiro Eleitor, a nossos gloriosos estados, à unidade contra as Colônias, a nossa vitória iminente!
Há pouco tempo, eu costumava recitar esse juramento todas as manhãs e todas as tardes, com o mesmo entusiasmo de qualquer outra pessoa. Determinada a impedir as Colônias da costa leste de assumirem o controle de nosso precioso litoral oeste. Isso foi antes de eu tomar conhecimento do papel da República nas mortes da minha família. Hoje, não sei bem o que pensar. Permitir que as Colônias vençam?
As enormes telas começam a transmitir um noticiário, uma recapitulação das notícias da semana. Day e eu assistimos às manchetes aparecerem rapidamente nas telas:

REPÚBLICA TRIUNFA E CONTROLA
QUILÔMETROS DE TERRAS DAS COLÔNIAS
NA BATALHA, LESTE DO TEXAS
ALERTA CONTRA INUNDAÇÃO EM
SACRAMENTO, CALIFÓRNIA, CANCELADO.
ELEITOR VISITA TROPAS NA FRENTE
DE BATALHÃO DO NORTE, PARA INCENTIVAR O LITORAL

Em geral, a maioria das notícias é desinteressante: são as costumeiras manchetes que chegam da frente de combate, atualizações sobre clima e leis, e avisos de quarentena para Vegas.
Day me dá um tapinha no ombro e aponta para um dos telões
— Os setores de jóias? — sussurra Day. Meus olhos continuam fixos na tela, embora a manchete já tenha passado. — Não é lá que vive o pessoal cheio da nota?
Não sei direito o que responder, porque ainda estou refletindo sobre a informação. Os setores Esmeralda e Opala... Será um engano? Ou será que as pragas em Los Angeles se agravaram tanto assim para serem transmitidas até pelos telões de Vegas? Eu nunca, nunca vi quarentenas serem estendidas para os bairros da classe alta. O setor Esmeralda faz divisa com o Ruby — será que isso quer dizer que o bairro onde fica minha casa também vai ficar de quarentena? E nossas vacinas? Elas não deveriam evitar esse tipo de coisa? Repasso as anotações do diário de Metias. Ele escreveu:
Daqui a algum tempo, um vírus não vai poder ser controlado, nenhuma vacina nem cura será capaz de detê-lo. Lembro tudo que Metias havia descoberto, as fábricas subterrâneas, as ferozes enfermidades, as pragas sistemáticas...
Um calafrio me invade, mas digo a mim mesma que Los Angeles vai sobreviver. A praga vai ser eliminada, como sempre acontece.
Os telões exibem mais manchetes. Uma, bem conhecida, é sobre a execução de Day, e mostra o clipe do local do fuzilamento, onde John foi atingido pelas balas destinadas a Day e depois tombou com o rosto no chão. Day desvia o olhar para a calçada.

DESAPARECIDA :
PREVIDÊNCIA SOCIAL N° 2 0 0 1 9 6 3 0 3 4
NOME: JUNE IPARIS
AGENTE DA PATRULHA MUNICIPAL DE LOS ANGELES
IDADE / SEXO: 15 ANOS, FEMININO
ALTURA: 1,65
CABELO: CASTANHO
OLHOS: CASTANHOS
VISTA PELA ULTIMA VEZ PERTO DE BATALLA HALL
LOS ANGELES, CALIFÓRNIA.
RECOMPENSA: 350.000 N0TAS DA REPÚBLICA.
SE VOCÊ A VIR, INFORME DIRETAMENTE À POLÍCIA LOCAL

E isso que a República deseja que a população pense: que estou desaparecida e que eles esperam me levar de volta sã e salva. O que eles não dizem é que provavelmente me querem morta. Ajudei o criminoso mais procurado do país a fugir de sua execução, ajudei os Patriotas rebeldes num levante encenado contra um quartel-general militar, e dei as costas à República.
Entretanto, eles não querem que essas informações se tornem públicas, por isso me perseguem em silêncio. O anúncio mostra uma fotografia minha de frente, sem sorrir, de cara limpa exceto por um toque de brilho nos lábios, cabelo escuro preso num rabo de cavalo, e um emblema dourado da República reluzindo contra minha jaqueta negra.
A foto da minha identidade militar. Neste instante, fico aliviada porque a tatuagem da fênix esconde metade do meu rosto.
Atingimos a metade da rua principal antes que os alto-falantes estalem de novo para transmitir o juramento. Day e eu ficamos imóveis. Day tropeça mais uma vez e quase cai, mas consigo segurá-lo rápido o bastante para que ele se mantenha ereto. As pessoas nas ruas observam os telões, exceto por um punhado de soldados a postos em cada cruzamento, a fim de assegurar a participação de todos. De repente, as imagens desaparecem e as telas ficam todas negras, e então surge o retrato em alta definição do Primeiro Eleitor.
Juro fidelidade...
É quase reconfortante repetir essas palavras junto às pessoas nas ruas, pelo menos até eu me lembrar de como tudo mudou. Recordo a noite em que capturei Day, quando o Eleitor e seu filho me parabenizaram pessoalmente por colocar um criminoso notório atrás das grades.
Lembro-me de como era o Eleitor pessoalmente. O retrato nos telões mostra os mesmos olhos verdes, o queixo determinado, os cabelos pretos encaracolados, mas omitem a frieza de sua expressão e a cor doentia de sua pele. Seus retratos passam uma impressão paternal, com saudáveis bochechas rosadas. Não era assim que eu me lembrava dele.
... à bandeira da nossa grande República da América...
De repente, a transmissão para. Há silêncio nas ruas, e depois um coro de sussurros confusos. Franzo a testa. Que estranho. Eu nunca vi o juramento ser interrompido, nenhuma vez sequer. E o sistema dos telões parece estar ligado, de modo que a interrupção de uma tela não deveria afetar as demais.
Day observa as telas congeladas enquanto olho rapidamente para os soldados que cercam a rua.
— Um probleminha técnico? — A dificuldade com que ele respira me preocupa. Agüenta só mais um pouco. Não podemos parar aqui.
Sacudo a cabeça e respondo:
— Não. Observe as tropas. — Faço um sinal sutil com a cabeça na direção dos soldados. — Eles mudaram de postura. Seus rifles já não estão mais pendurados nos ombros, eles estão nas mãos deles. Estão se preparando para uma reação do povo.
Day balança a cabeça devagar. Está terrivelmente pálido.
— Aconteceu alguma coisa.
O retrato do Eleitor desaparece dos telões e é imediatamente substituído por uma série de imagens. Elas mostram um homem que é a imagem exata do Eleitor, só que muito mais jovem, com vinte e poucos anos, e os mesmos olhos verdes e cabelo negro e ondulado. Rapidamente recordo como fiquei empolgada quando o conheci no Baile da Celebração.
Ele é Anden Stavropoulos, o filho do Primeiro Eleitor.
Day está certo. Aconteceu alguma coisa importante.
O Eleitor da República morreu.
Outra voz animada fala pelos alto-falantes:
—Antes de continuarmos nosso juramento, devemos instruir todos os soldados e civis para que substituam o retrato do Eleitor nas suas casas. Vocês podem obter um novo retrato na sede da polícia local. Em duas semanas terão início as inspeções para garantir sua cooperação.
A voz anuncia os supostos resultados de uma eleição geral no país, mas não faz qualquer menção à morte do Eleitor, nem da promoção de seu filho. A República simplesmente trocou de Eleitor sem interromper o ritmo das atividades, como se Anden fosse a mesma pessoa que seu pai.
Minha cabeça está a mil; tento lembrar o que aprendi no colégio sobre a escolha de um novo Eleitor. O Eleitor sempre escolhia o sucessor, e uma eleição nacional deveria confirmar a escolha. Não me surpreende que Anden seja o primeiro na linha sucessória, mas nosso Eleitor estava no poder há décadas, muito antes de eu nascer. E agora ele se fora. Nosso mundo se transformou em uma questão de segundos.
Da mesma forma que eu e Day, todos na rua compreendem qual é a coisa adequada a fazer: como se tivéssemos sido instruídos, fazemos uma reverência aos retratos do Eleitor nos telões, e recitamos a parte que faltava no juramento, e que reaparece nas telas:
... a nosso Primeiro Eleitor, a nossos gloriosos estados, à unidade contra as Colônias, à nossa vitória iminente!
Repetimos essas palavras várias vezes, enquanto elas permaneciam nas telas, pois ninguém ousava parar de dizê-las. Olho de relance para os guardas em toda a extensão das ruas. Suas mãos apertam os rifles.
Finalmente, após o que parecem horas, as palavras desaparecem e os telões voltam à seqüência habitual de notícias. Todos nós recomeçamos a caminhar, como se nada tivesse acontecido.
E então, Day tropeça. Desta vez eu o sinto tremer, e meu coração se aperta.
— Não pare de andar — sussurro.
Para minha surpresa, quase digo "Não pare de andar, Metias".
Tento segurá-lo, mas ele escorrega.
— Não consigo — murmura. Seu rosto brilha de suor, e os olhos estão fechados firmemente, de tanta dor. Ele põe dois dedos na testa e para.
Não pode mais continuar.
Olho apavorada ao redor. Há um grande número de soldados, e ainda temos muito que andar.
— Nada disso, você precisa prosseguir — afirmo. — Ande comigo, você consegue.
Desta vez, porém, não adianta. Antes que eu possa apanhá-lo, ele cai com as mãos apoiadas no chão.

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