Capítulo 10 - Day
Mais um sonho.
Levanto-me muito cedo na manhã do meu aniversário de oito anos. A
luz começa a entrar pelas janelas, afastando os tons azul-marinho e cinzentos
da noite que está desaparecendo. Sento-me na cama, e esfrego os olhos. Um copo d'água
pela metade oscila na velha mesinha de cabeceira, quase caindo. Nossa única
planta - uma trepadeira que Éden tirou de um depósito de ferro-velho e arrastou
para nossa casa - está no canto, e seus galhos serpenteiam pelo chão, em busca
de sol. John está roncando alto no seu canto. Os pés se estendem para frente,
debaixo de um cobertor remendado, e pendem na extremidade do catre. Mão vejo
Éden. Provavelmente está com a mamãe.
Geralmente, se acordo muito cedo, continuo deitado, pensando em
alguma coisa boa, como um pássaro ou um lago, e fico tão calmo que acabo cochilando
mais um pouco, mas isso não está funcionando hoje. Balanço as pernas no lado da
cama e calço meias que não combinam.
No instante em que piso na sala de visitas, sei que alguma coisa
está errada. Mamãe está deitada dormindo no sofá, com Éden nos braços. Um
cobertor a cobre até os ombros, mas papai não está aqui. Meus olhos percorrem
rapidamente a sala. Ontem à noite, ele voltou da frente de batalha. Costuma
ficar em casa durante pelo menos três ou quatro dias. Demorou muito dessa vez
para ele voltar para casa.
- Papai? - sussurro. Mamãe se mexe, e me calo.
Então escuto um leve som de nossa porta de tela contra a madeira. Arregalo
os olhos. Corre até a porta e meto a cabeça para fora. Uma lufada de ar frio me
atinge.
- Papai? - murmuro de novo.
A princípio, não há ninguém, mas depois vejo seu corpo surgir das
sombras. Papai.
Começo a correr; não me importo se a terra e a calçada me machucam
através do tecido gasto de minhas meias. O vulto nas sombras dá mais alguns passos,
então me ouve e se vira. Agora vejo o cabelo castanho-claro do meu pai, os
olhos estreitos da cor de mel, o queixo mal barbeado, sua alta estatura, sua
postura elegante e natural. Mamãe sempre dizia que ele parecia haver saído
direto de uma antiga fábula da Mongólia. Corro até ele.
- Papai! - exclamo, quando chego até ele, nas sombras. Ele se
ajoelha e me abraça. Pergunto: - Você já está indo embora?
- Lamento, Daniel - ele sussurra. Parece cansado. - Fui chamado de
volta.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
- Mas já?
- Você deve voltar para casa agora. Não deixe que a polícia
municipal o veja perturbando a paz.
- Mas você acabou de chegar - tento argumentar. - Você... hoje é
meu aniversário, e eu...
Meu pai põe cada uma das mãos nos meus ombros. Seus olhos são duas
advertências, cheios de coisas que ele gostaria de dizer em voz alta. Eu
quero ficar, é o que ele está tentando me dizer, mas preciso ir embora.
Você já conhece o esquema. Não fique assim.
- Volte para casa, Daniel. Dê um beijo em sua mãe por mim - é tudo
que ele diz, no entanto.
Minha voz começa a tremer, mas me convenço de que preciso ser
corajoso. Pergunto a ele:
- Quando a gente vai ver você de novo?
- Em breve. Eu amo você, filho. - Ele põe uma das mãos na minha
cabeça. - Cuide de tudo para mim até eu voltar, está bem?
Concordo com a cabeça. Ele fica mais um instante comigo, depois se
levanta e vai embora. Volto para casa.
Essa foi a última vez em que o vi.
***
Passa-se um dia. Estou sozinho sentado na cama que me foi
designada pelos Patriotas num dos quartos com beliches, analisando o medalhão
em volta do meu pescoço. Meu cabelo cai no rosto, tenho a impressão de que estou
olhando para o medalhão através de um véu transparente. Antes de eu tomar
banho, Kaede me deu um vidro de gel que tirou a tinta spray do meu cabelo. Ela
me disse que era "para a próxima parte do plano".
Alguém bate à porta.
- Day?
A voz soa abafada do outro lado da madeira. Levo um segundo para
me reorientar e reconhecer a voz de Tess. Eu havia acordado de um pesadelo sobre
meu aniversário de oito anos. Ainda consigo imaginar tudo como se tivesse acontecido
ontem, e meus olhos estão vermelhos e inchados de tanto chorar. Quando acordei,
minha mente começou a produzir imagens de Éden preso a uma maca, gritando
enquanto técnicos do laboratório lhe injetam substâncias químicas, e John de pé
e com os olhos vendados perante um pelotão de fuzilamento. E mamãe. Não consigo
evitar repassar essas cenas na minha mente, e isso me deixa enfurecido. Se eu
encontrar Éden, o que faço depois? E como diabos vou resgatá-lo das garras da
República? Devo presumir que Razor vai saber como me ajudar a trazer meu irmão
de volta.
Para isso, preciso garantir que Anden morrerá.
Meus braços estão doloridos porque passei a maior parte da manhã
sob a supervisão de Kaede e Pascao, aprendendo a atirar com uma arma.
- Não se preocupe se não acertar no Eleitor - disse Pascao, enquanto
me ajudava a ajustar a pontaria. Ele passou as mãos pelos meus braços de uma maneira
que me fez corar. - Não tem problema. Vai termais gente com você para dar cabo
do negócio, independentemente do que acontecer. Razor só quer uma imagem sua
apontando uma arma para o Eleitor. Não é perfeito? O Eleitor, na frente de
batalha pra fazer discursos a fim de elevar o moral dos soldados, é abatido a
tiros, com centenas de batalhões na vizinhança. Isso que é ironia, porra! -
Pascao dá então uma de suas gargalhadas características.
- O herói do povo mata o tirano. Isso vai dar uma história e
tanto!
É mesmo... que história!
- Day? - Tess pergunta, atrás da porta. - Você está aí? Razor quer
falar com você.
Beleza. Ela continua lá fora me chamando.
- Pode entrar - respondo.
Tess mete a cabeça dentro do quarto.
- Oi! Há quanto tempo você está aqui?
Seja gentil com ela, Kaede disse. Vocês dois combinam. Cumprimento
a Tess com um pequeno sorriso.
- Nem sei. Estava descansando um pouco, talvez algumas horas.
- Razor está pedindo para você falar com ele na sala principal.
Vão passar umas imagens ao vivo da June. Achei que você talvez quisesse...
Imagens ao vivo? Ela deve ter conseguido. Ela ainda está bem. Fico
de pé num pulo. Finalmente, notícias da June. A idéia de revê-la, mesmo por
uma câmera de segurança com imagem difusa, faz com que eu fique tonto de
expectativa.
- Já estou saindo.
Enquanto percorremos o pequeno hall rumo à sala principal, vários
outros Patriotas cumprimentam Tess. Ela sorri para todos eles, trocando
piadinhas e risos sutis como se os conhecesse há anos. Dois garotos lhe dão
pancadinhas amistosas nos ombros.
- Andem logo, garotos. Não podemos deixar Razor esperando.
Nós dois vemos Kaede correr à nossa frente na direção da sala
principal. Ela para, passa um braço ao redor do pescoço de Tess, desmancha seu
penteado afetuosamente e lha dá um beijo brincalhão no rosto.
- Vou te falar, hein, neném. Você é a lesma mais lerda do bando.
Tess ri e a empurra. Kaede dá uma piscadela para ela antes de
voltar a caminhar apressadamente, e desaparece no canto que leva à sala
principal. Fico olhando, surpreso com a demonstração de carinho de Kaede. Nem parece
coisa dela.
Nunca pensei nisso antes, mas agora me dou conta de que Tess tem muita
facilidade para criar novos vínculos. Percebo que os Patriotas se sentem à
vontade com ela, a mesma sensação que sempre tive a lado dela.
Sem dúvida esse é seu ponto forte. Ela cura. Ela é reconfortante. Nesse
instante, Baxter passa por nós. Tess abaixa os olhos quando ele roça no seu
braço, e reparo que ele a cumprimentou brevemente com a cabeça antes de me
olhar com raiva. Quando ele já não pode me escutar, inclino-me para Tess e
sussurro:
- Qual é a dele?
Ela apenas dá de ombros e roça meu braço com sua mão:
- Não ligue pra ele - ela responde, repetindo o que Kaede tinha
dito quando cheguei ao túnel. - O humor dele varia muito.
Não me diga!, penso sombriamente.
- Se ele se meter a besta com você, é só me falar - resmungo.
Tess dá de ombros mais uma vez:
- Deixa comigo, Day. Eu sei lidar com ele.
De repente me sinto meio idiota, oferecendo minha ajuda como um cavaleiro
arrogante numa armadura reluzente, quando Tess provavelmente tem meia dúzia de
novos amigos ansiosos para ajudá-la. Quando ela pode se virar muito bem sem
mim...
Quando chegamos à sala principal, uma pequena multidão se reuniu
na frente de um dos maiores telões na parede, onde estão sendo transmitidas imagens
captadas por uma câmera de segurança. Razor à frente da aglomeração, com os
braços cruzados informalmente, e Pascao e Kaede ao seu lado.
Eles me vêem e gesticulam para que eu me junte a eles.
- Day! - exclama Razor, me dando um tapinha no ombro. Kaede me
cumprimenta com um aceno de cabeça. - É um prazer vê-lo aqui. Tudo bem com você?
Soube que você estava meio para baixo hoje de manhã.
A preocupação dele comigo me faz bem; me faz lembrar da maneira como
meu pai costumava falar comigo.
- Estou ótimo - respondo -, só um pouco cansado da viagem.
- Isso é compreensível. Foi um vôo estressante. - Ele faz um gesto
para a tela. - Nossos hackers conseguiram essas imagens da June. O áudio é à parte,
mas logo você vai poder ouvir também. Achei que você gostaria dever o vídeo
mesmo assim.
Meus olhos estão grudados na tela. As imagens são vividas e
coloridas, como se nós estivéssemos pairando no canto daquela sala. Vejo uma
sala de jantar decorada, com uma mesa de jantar enfeitada e soldados alinhados junto
às paredes. O jovem Eleitor está sentado numa extremidade da mesa, enquanto
June está na outra, usando um vestido maravilhoso. Meu coração se acelera.
Quando eu era prisioneiro da República, eles me transformaram num saco
de pancadas, e me atiraram numa cela imunda. A prisão de June mais parece um resort.
Fico aliviado por ela, mas, ao mesmo tempo, sinto certo amargor. Mesmo
depois de trair a República, pessoas da elite como June conseguem tudo sem
nenhum esforço, enquanto pessoas como eu sofrem.
Todos me observam assistindo à June.
- Que bom que está se dando bem! - digo para a tela. Já ficando
enojado comigo mesmo por me preocupar com essas mesquinharias.
- Foi inteligente da parte dela começar a conversar com o Eleitor
sobre seus anos de faculdade na Drake - diz Razor, resumindo o áudio, enquanto o
vídeo é exibido. - Ela já plantou a história. Imagino que logo vão fazê-la passar
por um detector de mentiras, e então vamos ter um caminho direto até Anden, se
ela se sair bem. Nossa próxima etapa amanhã à noite deve correr sem problemas.
Se ela se sair bem. Essa é a primeira condição.
- Ótimo - comento, tentando não deixar meu rosto trair meus
pensamentos.
Mas à medida que continuam as imagens, e vejo Anden mandar que os
soldados saiam da sala, sinto um nó me apertando a garganta. Esse cara é todo
sofisticação, poder e autoridade. Ele se debruça para dizer alguma coisa à
June, e ambos riem e bebem champanhe. Dá para imaginar perfeitamente os dois juntos.
Eles combinam.
- Ela está fazendo um bom trabalho - diz Tess, colocando o cabelo
atrás das orelhas. - O Eleitor está totalmente a fim dela.
Quero rebater essa afirmação, mas Pascao reforça o que Tess disse.
- A Tess tem toda razão. Olha só o brilho no olhar dele! O cara
está caidinho por ela, não tenho dúvida. Ele está de quatro. Em poucos dias,
ela o terá nas mãos.
Razor concorda com a cabeça, mas seu entusiasmo é mais contido.
- Também acho, mas precisamos garantir que June não se encante com
ele também, que é um político nato. Vou encontrar um jeito de dar uma palavrinha
com June.
Os comentários de todos se esmaecem quando paro de ouvir. É claro que
a Tess está certa; dá pra ver o desejo nos olhos do Eleitor. Ele agora se levanta
e caminha até onde June está sentada e se inclina para falar com ela.
Eu me retraio. Como alguém pode resistir à June? Ela é perfeita em
todos os sentidos. Aí me dou conta de que não estou nervoso por causa da
atração de Anden por ela: afinal de contas, ele vai mesmo morrer em breve, não
é? O que me deixa perturbado é que June não parece estar fingindo ao rir neste
vídeo.
Parece até que está se divertindo. Sua posição social equivale à
dele. Ambos são aristocratas, feitos para a vida de classe A da República. Como
é que ela pode ser feliz com alguém como eu, um pé de chinelo que tem apenas um
punhado de clipes de papel nos bolsos? Viro-me e começo a me afastar da multidão.
Já vi tudo que queria ver.
- Espera aí!
Olho por cima do ombro e vejo Tess correndo para me alcançar; o
cabelo bate em seu rosto. Ela quase escorrega quando emparelha comigo.
- Você está legal? - pergunta, analisando minha expressão enquanto
percorremos o hall rumo a meu quarto.
- Vou ficar. Por que não ficaria? Já começamos com o pé direito...
-
Sorrio para ela, tenso.
- É, eu sei... Só queria ter certeza.
Tess dá uma gargalhada que acentua suas covinhas.
- Estou ótimo, amiga. Sério. Você está a salvo, eu estou a salvo,
os Patriotas estão no caminho certo, e eles vão me ajudar a encontrar o Éden.
Isso é tudo que posso querer - desabafo, um pouco mais calmo.
Tess se anima com minhas palavras e os lábios exibem um sorriso de
gozação.
- Está rolando um monte de boatos sobre você, sabia?
Levanto as sobrancelhas, sorridente
- Não diga! Que tipo de boatos?
- Os boatos de que você está vivo estão se espalhando como um
incêndio; é o assunto do momento. Seu nome está pintado em muros do país
inteiro. Em alguns lugares, até nos retratos do Eleitor. Dá pra acreditar?
Protestos estão pipocando em tudo que é canto. Todos estão saldando seu nome. –
O entusiasmo de Tess diminui um pouco. - Mesmo o pessoal que está sob quarentena
em Los Angeles. Acho que a cidade toda está de quarentena.
- Eles isolaram Los Angeles?-Isso me deixa perplexo. Eu
estava sabendo que os bairros dos ricos estavam de quarentena, mas a cidade
inteira? - Pra quê? Por causa das pragas?
- Não - os olhos de Tess se iluminam de empolgação. - Por causa
das revoltas. As transmissões oficiais da República afirmam que se trata
de uma quarentena contra as pragas, mas a verdade é que toda a cidade está se manifestando
contra o novo Eleitor. Segundo os boatos, o Eleitor está perseguindo você com
todos os recursos de que dispõe, e alguns Patriotas estão dizendo que foi Anden
que ordenou... Bem... a morte de sua família. – Tess faz uma pausa,
envergonhada. — De qualquer maneira, os Patriotas estão tentando fazer de Anden
um vilão ainda pior do que o pai. Razor garante que os protestos em LA são uma
grande oportunidade para nós. A capital teve de convocar milhares de soldados
extras.
- Uma grande oportunidade - repito, lembrando a maneira pela qual
a República havia reprimido o último protesto em Los Angeles.
- Pois é, e isso tudo é graças a você, Day. Foi você que provocou
os motins - ou, pelo menos, os rumores de que você está vivo. O povo está possesso
com a forma pela qual você está sendo tratado. Parece que você é a única coisa
que a República não consegue controlar. Todo mundo está de olho em você, Day.
Estão esperando para ver o que você vai fazer em seguida.
Engulo em seco, incrédulo. Isso não é possível. A República jamais
permitiria que as revoltas saíssem tanto do controle, logo em uma das maiores cidades
do país. Ou permitiria? Será que as pessoas estão realmente sobrepujando as
forças militares por lá? E estão se revoltando por minha causa?
"Estão esperando para ver o que você vai fazer em
seguida."
Mas, porra! Nem eu sei o que isso quer dizer. Só estou
tentando encontrar meu irmão - só isso, nada mais. Sacudo a cabeça. Uma súbita
onda de medo toma conta de mim. Eu sempre quis a chance de poder retaliar...
Era isso que eu estava tentando fazer todos esses anos, não era? Agora
estão me entregando esse poder, mas não sei o que fazer com ele!
- Tá bom - consigo responder. - Você está me sacaneando? Eu não passo
de um trapaceiro de LA.
- Eu sei... mas é um trapaceiro famoso.
O sorriso contagiante de Tess instantaneamente levanta o meu
moral. Ela me cutuca no braço quando chegamos à porta do meu quarto. Entramos.
- Pare com isso, Day. Pra começo de conversa, você não se lembra
por que os Patriotas concordaram em te recrutar? Razor disse que você poderia se
tornar tão poderoso quanto o próprio novo Eleitor. Todo mundo neste país sabe
quem é você, e a maioria das pessoas gosta de você. Isso deveria deixar
você orgulhoso, não é mesmo?
Caminho até minha cama e me sento. Nem reparo quando Tess senta-se
a meu lado.
Ela fica pensativa diante do meu silêncio e diz, alisando as
cobertas da cama com uma das mãos:
- Você gosta mesmo dessa garota, não é? Ela não é como as outras
com quem você costumava ficar, lá em Lake.
- Como é que é? - digo, confuso por um instante. Tess acha que
ainda estou emburrado por conta da atração de Anden por June. O rosto de Tess está
ficando vermelho, e de repente me sinto estranhamente quente, sentado sozinho
aqui com ela, com seus olhões fixos em mim, deixando evidente sua paixonite.
Sempre soube lidar com garotas que estavam a fim de mim, mas acontece que elas
eram desconhecidas. Eram gurias que entravam e saíam da minha vida sem maiores
conseqüências. Tess é diferente. Não sei o que fazer com a idéia de que
poderíamos ser mais do que amigos.
- Bem, o que você quer que eu diga? - pergunto. Tenho vontade de
me dar uma porrada logo que acabo de falar.
- Pare de se preocupar. Tenho certeza de que ela vai se dar muito
bem.
Ela expele essas últimas palavras com uma súbita irritação, depois
se cala. É, eu pisei mesmo na bola.
- Olha, eu não entrei para os Patriotas porque quis - Tess se
levanta da cama e fica de pé, com as costas retesadas, as mãos se fecham e se
abrem sem parar. - Eu entrei para os Patriotas por sua causa, porque
fiquei muito preocupada depois que June prendeu você. Achei que podia convencer
os Patriotas a te salvar, mas não tenho o poder de barganha que a June tem. Ela
pode fazer o que quiser e, ainda assim, você a aceitaria de volta. June
pode fazer o que der na telha com a República e, ainda assim, eles também
a aceitariam de volta. Sempre que a June quer alguma coisa, ela consegue.
Mas ninguém se importa com o que eu quero. Talvez se eu fosse a
queridinha da República, você se importasse comigo também.
Essas palavras são como facadas no meu peito.
- Isso não é verdade - digo, ficando de pé e segurando as mãos
dela. - Como você pode dizer uma coisa dessas? Nós crescemos juntos nas ruas. Você
tem alguma idéia do que isso significa pra mim?
Tess aperta os lábios e olha para cima, tentando não chorar.
- Day, você já se perguntou por que gosta tanto da June?
Porque... bem... você foi preso e tudo o mais...
- O que você quer dizer com isso?
Ela respira fundo.
- Eu vi isso em algum lugar antes, não sei se nos telões quando
estavam falando sobre prisioneiros das Colônias, é sobre como as vítimas de
seqüestro se identificam emocionalmente com seus captores.
Franzo a testa. A Tess que conheço está desaparecendo numa nuvem
de desconfiança e idéias sombrias.
- Você pensa que gosto de June porque ela me prendeu? Você
acha mesmo que sou tão pirado assim?
- Day - Tess diz cautelosamente a June denunciou você.
Largo as mãos de Tess.
- Não quero falar disso.
Tess sacode a cabeça pesarosamente, os olhos brilhando com
lágrimas contidas.
- Ela matou sua mãe, Day.
Dou um passo para trás e me afasto dela. Sinto como se tivessem me
esbofeteado.
- Não foi ela que matou minha mãe.
- Mas é como se tivesse matado - sussurra.
Sinto o muro que uso para me proteger voltando a se erguer a minha
volta, me isolando de tudo.
- Você se esqueceu de que ela também me ajudou a fugir. Ela me salvou.
Escute aqui, será que você...
- Eu salvei você muitas vezes, mas se eu o denunciasse e
sua família morresse por causa disso, você me perdoaria?
Engulo em seco.
- Tess, eu perdoaria qualquer coisa que você fizesse.
- Mesmo se eu fosse responsável pela morte da sua mãe?
Duvido muito!
- Ela fixa os olhos nos meus. Sua voz tem um tom severo, com uma
ponta de aço. - É isso que quero dizer. Você trata June de outro modo.
- O que não significa que não me importo com você.
Tess ignora minha resposta e continua, desalentada:
- Se você tivesse de escolher entre salvar June e eu, e não
tivesse tempo a perder, o que você faria?
Sinto meu rosto ficando quente à medida que minha frustração
aumenta.
- Quem você salvaria?
Tess limpa o rosto com uma das mangas e espera minha resposta. Suspiro,
impaciente. Diga logo a verdade, penso.
- Você, tá bom? Eu salvaria você.
Ela se abranda, e nesse momento a feiúra do ciúme e do ódio é
amenizada. Só é preciso um pouco de doçura para que a Tess volte a ser um anjo.
- Por quê?
- Não sei - passo uma das mãos no cabelo, incapaz de determinar
por que não consigo assumir o controle desta conversa. - Porque a June não precisaria
da minha ajuda.
Que imbecil! Eu não poderia ter escolhido nada pior pra
dizer. As palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse evitar, e agora
era tarde demais para voltar atrás. E esse nem é o real motivo. Eu teria
salvado Tess porque não consigo nem imaginar algo de ruim acontecendo a ela.
Mas não tenho tempo de me explicar.
- Agradeço muito a sua piedade - ela diz, seguindo em disparada em
direção à porta.
Eu tento alcançá-la, mas, quando pego sua mão, ela a puxa de volta
com violência.
- Desculpa, não era essa minha intenção. Eu não tenho pena de
você, Tess. Eu...
- Tudo bem! Você só estava dizendo a verdade, não é? Pode ficar
tranqüilo. Daqui a pouco você estará junto dela novamente. Quer dizer, isso se ela
não resolver voltar para a República.
Ela sabe que suas palavras machucam, mas parece não se importar.
- Para sua informação, Baxter acha que você vai nos trair. Por
isso ele não gosta de você. Ele tem tentado me convencer disso desde que entrei
para o movimento. Sei não... talvez ele tenha razão.
Ela me deixa sozinho no hall. O remorso corta minha pele, e sai
cortando veias também pelo caminho. Parte de mim está com raiva: quero defender
June, e contar à Tess todas as coisas de que June abriu mão por minha causa.
Mas...
será que Tess tem razão? Será que eu estou mesmo me iludindo?
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