Capítulo 11 - June
Tive um pesadelo ontem à noite. Sonhei que Anden perdoou Day por todos
os seus crimes. Então, vi os Patriotas arrastando Day para uma rua escura e
metendo uma bala em sua cabeça. Razor virou-se para mim e disse: "Esse é
seu castigo, Srta. Iparis, por trabalhar para o Eleitor." Acordei
num sobressalto, suando e tremendo incontrolavelmente.
Passam-se um dia e uma noite (mais especificamente, 23 horas)
antes que eu volte a ver o Eleitor. Desta vez eu o encontro em uma sala de interrogatório
diante de um detector de mentiras. Enquanto os guardas me conduzem pelo
corredor até uma série de jipes que nos aguardam do lado de fora, reflito sobre
todas as coisas que aprendi na Drake sobre o funcionamento dos detectores de
mentira.
O examinador tentará me intimidar; vão usar meus pontos fracos contra
mim. Vão usar a morte de Metias, ou a dos meus pais, ou talvez até ameaçar matar
Ollie. Certamente vão usar Day. Por isso me concentro no corredor por onde
seguimos e penso em cada um dos meus pontos fracos, e depois eu os comprimo
todos no fundo da cabeça. E os silencio.
Percorremos vários quarteirões da capital. Desta vez, vejo a
cidade sufocada no brilho acinzentado da manhã nevada, soldados e trabalhadores
apressando-se nas calçadas sob os holofotes que os postes de luz lançam na
calçada escorregadia.
Aqui, os telões são enormes. Alguns chegam a ter quinze andares, e
os alto-falantes, que se enfileiram pelos edifícios, são mais novos que os de
LA; eles não fazem estalar a voz do locutor.
Passamos pela Capitol Tower. Analiso suas paredes lisas, a maneira
como as lâminas de vidro protegem todas as varandas para que a pessoa fazendo
um discurso esteja adequadamente protegida. O antigo Eleitor foi atacado antes
de colocarem os vidros, alguém tentou atirar nele, mesmo o Eleitor estando no
quadragésimo andar. Depois disso, a República rapidamente instalou as
barreiras. Os telões da Tower têm listras molhadas que distorcem as imagens nas
suas telas, mas consigo ler algumas das manchetes quando passamos por elas.
Uma dessas manchetes é conhecida e me chama a atenção:
DANIEL ALTAN WING EXECUTADO
26 DE DEZEMBRO PELO PELOTÃO DE FUZILAMENTO
Por que estão transmitindo isso, quando outras manchetes da mesma época
já pararam de ser transmitidas faz tempo. Talvez estejam tentando convencer
o povo de que é verdade.
Outra manchete aparece:
ELEITOR RENUNCIA HOJE
PRINCIPAL LEI DO ANO NOVO
NA CAPITAL TOWER DE DENVER
Tento fazer uma pausa e reler essa manchete, mas o veículo passa
141 em alta velocidade e então chegamos ao fim do percurso. Abrem a porta do
carro. Soldados me agarram pelos braços e me puxam para fora. Fico instantaneamente
ensurdecida pelos gritos da multidão de espectadores, e por dúzias de
repórteres da imprensa oficial apontando suas pequenas telas de câmeras
quadradas na minha direção e clicando. Quando percebo as pessoas que nos
rodeiam, reparo que, além daquelas que estão aqui só para me ver, há outras. Muitas
outras. Estão protestando nas ruas, berrando difamações contra o Eleitor e
sendo arrastadas pela polícia. Várias agitam cartazes feitos à mão sobre as
cabeças, mesmo enquanto os guardas as levam.
"June Iparis é Inocente!", afirma um cartaz.
"Onde Está Day?", pergunta outro.
Um dos guardas me cutuca pára que eu ande.
- Aqui não tem nada pra você ver! - ele exclama, enquanto
me apressa para que eu suba uma longa série de degraus e entre no corredor gigantesco
de um prédio do governo. Atrás de nós, o barulho do lado de fora diminui sob os
ecos de nossas botas no chão.
Noventa e dois segundos depois, paramos em frente a um conjunto de
amplas portas envidraçadas. Então alguém passa um cartão fino (com aproximadamente
sete centímetro de largura por doze centímetros de altura, preto, com um brilho
reflexivo e um selo dourado da República em um canto), na tela de abertura da
sala e entramos.
A sala de interrogatório, onde está o detector de mentiras é
cilíndrica, com teto de cúpula baixo e doze colunas prateadas enfileiradas ao
longo da parede arredondada. Ainda de pé, os guardas me prendem a uma máquina
que envolve meus braços e pulsos com tiras de metal, e comprimem frios nódulos
metálicos - catorze - no meu pescoço, nas bochechas e na testa, nas palmas das
mãos, nos tornozelos e nos pés.
Há muitos soldados aqui dentro: vinte, no total. Seis deles são da
equipe de análise do teste, e usam tarjas brancas nos braços e óculos escuros verdes
transparentes.
As portas são feitas de vidro perfeitamente claro. Um símbolo
esmaecido de um círculo cortado pela metade indica que se trata de um vidro à
prova de balas apenas de um lado. Se, de alguma forma, eu conseguisse me
libertar, os soldados do lado de fora da sala poderiam atirar em mim através do
vidro, mas eu não poderia revidar os tiros nem escapar.
Do lado de fora do recinto, vejo Anden ao lado de dois senadores e
mais vinte e quatro guardas. Ele parece infeliz, e está profundamente concentrado
na conversa com os senadores, que tentam disfarçar seu desagrado com sorrisos
falsos e subservientes.
- Srta. Iparis - diz a chefe dos examinadores. Seus olhos são de
um verde muito claro, o cabelo é louro e a pele alva feito porcelana. Ela analisa
calmamente meu rosto, antes de apertar um pequeno dispositivo preto que segura
na mão direita meu nome é doutora Sadhwani.
Vamos lhe fazer uma série de perguntas. Como a senhorita é uma
exigente da República, estou certa de que conhece tão bem quanto eu a eficiência
dessas máquinas.Vamos conseguir perceber o menor movimento seu, o mais ligeiro
tremor de suas mãos. Recomendo veementemente que a senhorita nos conte a
verdade.
Quanta baboseira. Ela está tentando me convencer do poder total do
dispositivo. Provavelmente acredita que, quanto mais medo eu tiver, mais reação
vou demonstrar. Olho atentamente para ela. June, respire normalmente.
Olhos relaxados, mantenha a boca firme.
- Entendido. Não tenho nada a esconder.
A doutora se ocupa vistoriando os nódulos presos à minha pele, e
depois as projeções do meu rosto que estão provavelmente sendo transmitidas ao
redor da sala atrás de mim. Seus próprios olhos se movimentam nervosamente, e
pequenas gotas de suor pontilham sua testa.
Aposto que ela jamais testou uma inimiga do estado tão famosa. Certamente,
nunca diante de alguém tão importante quanto o Eleitor. Como esperado, a
doutora Sadhwani começa com perguntas simples e irrelevantes:
- Seu nome é June Iparis?
- Sim.
- Quando é seu aniversário?
- Onze de julho.
- Qual é sua idade?
- Quinze anos, cinco meses e vinte e oito dias.
Meu tom de voz é monocórdio e inexpressivo. Cada vez que respondo,
paro por vários segundos para que minha respiração fique mais superficial, o
que por sua vez acelera meus batimentos cardíacos. Se eles tiverem mensurando
minhas taxas físicas, que vejam as flutuações durante as perguntas de controle.
Vai ficar mais difícil saber quando eu estiver mentindo.
- Em que escola de ensino elementar a senhorita estudou?
- Harion Gold.
- E depois?
- Seja específica - eu respondo.
A Sra. Sadhwani retrai-se ligeiramente, e depois se recompõe:
-Tudo bem, Srta. Iparis - ela diz, desta vez com voz irritada. –
Depois da Harion Gold, que escola secundária frequentou?
Encaro a platéia que me observa atrás do vidro. Os senadores
evitam meu olhar ao fingir estarem fascinados com os fios ao redor do meu corpo,
mas Anden me olha sem hesitação.
- Harion High.
- Por quanto tempo?
- Dois anos.
- E depois...
Fico nervosa sem hesitação, para que eles pensem que estou tendo
problema em controlar minhas emoções (e os resultados do meu exame).
- E depois passei três anos na Universidade de Drake – retruco abruptamente.
- Fui aceita aos doze anos, e me diplomei aos quinze, porque eu era ótima. Isso
responde à sua pergunta?
Ela está me odiando agora.
- Sim - responde, de modo tenso. - Ótimo. Então podemos continuar.
A examinadora aperta os lábios e olha para o dispositivo preto,
para que não tenha de me encarar.
- Já mentiu alguma vez?
Ela está avançando para perguntas mais complicadas. Respiro
rapidamente agora.
- Sim.
- 144 - A senhorita mentiu para alguma autoridade das forças
armadas ou do governo?
- Sim.
Logo depois que respondo a essa pergunta, vejo uma estranha série de
fagulhas nos cantos dos olhos. Pisco duas vezes. As fagulhas desaparecem e a
sala volta ao foco. Hesito um instante, mas quando a doutora Sadhwani repara
nisso e tecla alguma coisa no seu dispositivo, eu me obrigo a voltar à minha
expressão indiferente.
- A senhorita mentiu para algum dos seus professores na Drake?
-Não.
- Mentiu para seu irmão?
Subitamente a sala desaparece. Uma imagem reluzente a substitui. Surge
uma sala de visitas familiar, banhada pela tépida luz da tarde, e um filhotinho
branco de cachorro dorme junto aos meus pés. Um adolescente alto e de cabelos
escuros está sentado ao meu lado com os braços cruzados. É Metias. Ele franze a
testa e se inclina para frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos:
-Você já mentiu pra mim, June?
Pisco, atônita com a cena, e me digo então: Isso é tudo falso.
O polígrafo está escamoteando ilusões para minar minha resistência.
Já tinha ouvido falar que dispositivos como esse são usados perto
da frente de batalha. A máquina pode simular cenas dentro da mente de uma
pessoa, ao copiar a capacidade do cérebro de criar sonhos vividos.
Mas o Metias parece tão real, é como se eu pudesse estender o
braço e colocar o cabelo dele atrás da orelha, ou sentir minha mão minúscula dentro
da sua, enorme.
Quase posso acreditar' que estou lá na sala com ele. Fecho os
olhos, mas a imagem continua inserida na minha cabeça, tão viva como a luz do
dia.
- Sim - respondo. E verdade. Os olhos de Metias se arregalam,
surpresos e tristes, e em seguida ele desaparece com Ollie e o resto do apartamento.
Estou de volta ao recinto cinzento do detector de mentiras, diante da doutora
Sadhwani, que faz mais anotações. Ela inclina a cabeça indicando aprovação por
eu responder corretamente. Tento firmar as mãos enquanto elas permanecem
cerradas e trêmulas dos dois lados do meu corpo.
- Muito bem - ela murmura, um momento depois.
Minhas palavras soam frias como gelo.
- A senhora pretende continuar a usar meu irmão contra mim nas perguntas
que faltam?
Ela desvia o olhar das anotações.
-Você viu seu irmão?
Ela está mais descansada agora, e o suor na sua testa desapareceu.
Então é isso! Eles não podem controlar as visões que me surgem na cabeça, nem
conseguem ver o que eu vejo, mas podem impulsionar algo que faz essas
lembranças virem à tona. Mantenho a cabeça no alto, e meus olhos na doutora.
- Sim.
As perguntas continuam. Que ano a senhorita pulou durante sua estada
na Drake? O segundo. Quantas advertências de comportamento a senhorita
recebeu enquanto estudou na Drake? Dezoito. Antes da morte do seu irmão,
a senhorita já havia tido pensamentos negativos em relação à República? Não.
E continua por aí afora.
Percebo que ela está tentando dessensibilizar meu cérebro para que
eu baixe a guarda e ela possa ver uma reação física quando me perguntar algo relevante.
Vejo Metias mais duas vezes. Cada vez que isso ocorre, respiro fundo e me
obrigo a sustar a respiração por vários segundos.
Eles me submetem a um interrogatório cerrado sobre como fugi dos Patriotas,
e qual o objetivo da missão de bombardeio. Repito o que disse a Anden quando
jantamos juntos. Até aqui, tudo bem. O detector aponta que eu disse a verdade.
- Day está vivo?
E então Day se materializa à minha frente. Ele está de pé a apenas
alguns metros de distância, e os olhos azuis espelham tanta coisa, que me posso
ver neles. Um amplo sorriso ilumina seu rosto quando me vê.
De repente sinto tanta saudade dele, que me sinto como se
estivesse caindo. Ele não é real. Isto é uma simulação. Estabilizo minha
respiração.
- Sim.
- Por que ajudou Day a fugir se sabia que ele é procurado por
tantos crimes contra a República? A senhorita tem sentimentos por ele?
Pergunta perigosa. Endureço meu coração para responder.
- Não. Eu simplesmente não queria que ele morresse pelas minhas mãos
pelo único crime que não cometeu.
A doutora para de fazer anotações e ergue uma sobrancelha para
mim.
- A senhorita se arriscou muito por alguém que mal conhecia...
Estreito os olhos e argumento.
- Esse comentário diz muito sobre o caráter da senhora. Talvez
devesse esperar até que alguém esteja na iminência de ser executado por um erro
que a senhora tenha cometido.
Ela não reage à severidade das minhas palavras. A ilusão de Day desaparece.
Ela faz mais algumas perguntas irrelevantes sobre controle, e então pergunta:
-A senhorita e Day estão afiliados aos Patriotas?
Day aparece de novo. Desta vez ele se inclina perto o bastante
para seu cabelo roçar, suave como a seda, nas minhas bochechas. Ele me abraça e
me beija demoradamente. A cena desaparece e é substituída de repente por outra
de uma noite de tempestade, em que Day luta contra a chuva, com sangue pingando
da perna, deixando uma trilha de sangue por onde passa. Ele cai de joelhos à
frente de Razor antes que a cena inteira desapareça novamente. Luto para manter
a voz firme.
- Eu estava.
-Vai haver uma tentativa de assassinato contra nosso glorioso
Eleitor?
Não preciso mentir sobre essa pergunta. Meu olhar vagueia até
Anden, que me faz um aceno positivo com a cabeça, no que suponho seja um sinal
de encorajamento.
- Sim.
- E os Patriotas sabem que você está a par dos planos deles de assassinato?
- Não, não sabem.
A doutora Sadhwani olha para seus colegas, e, após vários
segundos, faz um sinal afirmativo com a cabeça, e se vira para mim. O
detector registra que eu disse a verdade.
- Há soldados próximos ao Eleitor que podem compactuar com essa tentativa
de assassinato?
- Sim.
Passam-se muitos segundos de silêncio, enquanto ela examina minha resposta
com seus colegas. Mais uma vez, faz um sinal de assentimento com a cabeça, e
desta vez gira o corpo e encara Anden e os senadores.
- Ela está dizendo a verdade.
Anden faz o mesmo gesto de concordância, e diz, com a voz abafada pelo
vidro.
- Ótimo. Continue, por favor.
Os senadores mantêm os braços cruzados e os lábios apertados. As
perguntas da doutora Sadhwani não têm fim e me afogam numa torrente infindável.
Quando será a tentativa de assassinato? Quando o Eleitor estiver se
dirigindo à cidade de Lamar, zona de combate no Colorado. A senhorita sabe
onde o Eleitor estará a salvo? Sim. Para onde, então, ele deve
ir? Para outra cidade na divisa. Day vai participar dessa tentativa
de assassinato? Sim. Por que ele está envolvido nesse plano? Ele se sente
em dívida com os Patriotas por tratarem sua perna lesionada.
- Lamar - murmura a doutora Sadhwani ao teclar mais anotações no seu
dispositivo preto. - Suponho que o Eleitor vá mudar seu caminho.
Mais uma parte do plano que se encaixa no lugar. As perguntas
finalmente acabam. A doutora Sadhwani se afasta de mim para conversar com os
demais, enquanto eu expiro e me apoio debilmente no detector de mentiras. Estou
aqui dentro há exatas duas horas e cinco minutos . Meus olhos se encontram com
os de Anden. Ele continua de pé, perto das portas de vidro, cercado em ambos os
lados por soldados; seus braços estão cruzados firmemente no peito.
- Esperem - diz ele. Os examinadores param de deliberar e olham para
o Eleitor. - Tenho uma última pergunta para a nossa convidada.
A doutora Sadhwani pisca e faz um sinal para mim.
- Sem problema, Eleitor, por favor.
Anden se aproxima do vidro que nos separa.
- Por que você está me ajudando?
Ponho os ombros para trás e o encaro.
- Porque quero ser perdoada.
-Você é leal à República?
Uma colagem resumida de lembranças entra em foco. Eu me vejo segurando
a mão do meu irmão nas ruas do setor Ruby, com os braços levantados para
prestar continência aos telões enquanto recitamos o juramento. Vejo o rosto de
Metias, seu sorriso e sua expressão tensa de preocupação na última noite em que
o vi. Vejo as bandeiras da República no enterro do meu irmão. Vejo os registros
online secretos de Metias: suas palavras de advertência, sua raiva contra a
República. Vejo Thomas apontando a arma para a mãe de Day; vejo a cabeça dela
tombando para trás ao impacto da bala. Ela desmorona. A culpa é minha. Vejo
Thomas apertando a cabeça na sala de interrogatório, torturado, cegamente obediente,
para sempre um prisioneiro do que fez.
Já não sou leal. Ou será que sou? Estou bem aqui na capital da
República, ajudando os Patriotas a matar o novo Eleitor. Um homem a quem certa
vez jurei lealdade. Vou matá-lo, e depois fugir. Sei que o detector de mentiras
vai revelar minha traição; estou confusa, consumida pelo conflito de precisar
acertar as coisas com Day, mas odiando ter de deixar a República à mercê dos
Patriotas.
Um calafrio percorre todo o meu corpo. São apenas imagens.
Apenas lembranças.
Permaneço em silêncio até meus batimentos cardíacos se
normalizarem. Fecho os olhos, respiro fundo, e depois os abro de novo.
- Sim. Eu sou leal à República.
Espero que o detector de mentiras fique vermelho, bipe, e revele
que estou mentindo, mas a máquina continua sem se manifestar. A doutora Sadhwani
mantém a cabeça abaixada e tecla no seu notepad.
- Ela está dizendo a verdade - a doutora informa, finalmente.
Passei no teste! Não consigo acreditar. A máquina afirma que estou
dizendo a verdade. Mas é apenas uma máquina.
***
Mais tarde, naquela noite, sento na beira da cama, com a cabeça entre
as mãos. Algemas continuam a prender meus pulsos, mas estou livre para me movimentar.
Ainda consigo ouvir os sons de uma abafada conversa ocasional fora do quarto. Aqueles
guardas continuam lá.
Estou exausta. Tecnicamente, não deveria estar, pois não fiz nada
fisicamente estressante desde que fui presa. Mas as perguntas da doutora Sadhwani
rodopiam na minha mente, junto com tudo que Thomas havia dito, com tamanha
intensidade, que preciso apertar a cabeça, numa tentativa de aliviar a
enxaqueca. Em algum lugar, o governo está discutindo se deve ou não me perdoar.
Tremo um pouco, mesmo ciente de que a temperatura no quarto está alta.
Penso soturnamente:"Esses são sinais claros de uma doença
que vem por aí. Talvez seja a praga". A ironia disso me traz tristeza
e medo. Mas estou vacinada. Deve ser apenas um resfriado; afinal de
contas, Metias sempre dizia que eu era meio sensível às mudanças
climáticas.
Metias. Agora que estou sozinha, posso me preocupar à vontade. Minha
última resposta durante o teste do detector de mentiras deveria ter acendido
uma luz vermelha, mas não acendeu. Será que isso quer dizer que ainda sou leal
à República, sem me dar conta disso? Em algum lugar no fundo da máquina, ela
talvez tenha percebido minhas dúvidas sobre a seguir em frente com o plano de
assassinar Anden.
Mas se eu decidir não desempenhar meu papel, o que acontecerá a Day?
Vou precisar encontrar um meio de contatá-lo sem que Razor descubra.
E depois? Day certamente não vai julgar o Eleitor como
eu julgo que ele é. Além disso, não tenho nenhum plano B. Pense, June. Preciso
bolar uma estratégia que nos mantenha vivos.
Metias me disse uma vez: Se você quiser se rebelar contra o
sistema, faça- o de dentro dele. Reflito sobre essa lembrança, embora
esteja tremendo tanto que tenho dificuldade para me concentrar.
De repente, escuto um tumulto do lado de fora da porta. Ouço o som
de saltos de botas no chão; o sinal revelador de que um oficial vem falar comigo.
Espero calmamente. A maçaneta finalmente gira e Anden entra.
- Sr. Eleitor, tem certeza de que o senhor não quer que alguns
guardas fiquem....
Anden balança a cabeça e faz um gesto para que os soldados saiam.
- Por favor, não se preocupem. Quero dar uma palavrinha com a
Srta. Iparis. E só um minuto.
Suas palavras me lembram as que eu mesma disse quando visitei Day na
sua cela no Batalla Hall.
O soldado presta uma rápida continência a Anden, e fecha a porta, deixando-nos
a sós. Levanto os olhos de onde estou sentada na beira da minha cama. As
algemas que me prendem as mãos refinem no silêncio.
O Eleitor não está usando sua habitual indumentária formal; veste
um sobretudo preto com uma faixa vermelha na frente, e o resto de suas roupas é
elegantemente simples (camisa social preta, um colete escuro com seis botões
reluzentes, calças pretas, botas pretas de piloto). O cabelo está lustroso e
bem penteado. Uma única arma pende da sua cintura, mas ele não seria capaz de
sacá-la rápido o bastante para atirar em mim, se eu decidisse atacá-lo. Ele
está verdadeiramente empenhado em me mostrar que confia em mim.
Razor disse que, se eu tivesse a oportunidade de assassinar Anden sozinha,
eu não deveria desperdiçá-la. Deveria aproveitar o momento.
Agora, porém, que ele está aqui, vulnerável na minha frente, não
faço um único gesto. Além disso, se eu tentar matá-lo agora, perco qualquer chance
de voltar a ver Day... ou de sobreviver.
Anden senta-se ao meu lado, com cuidado para deixar alguma distância
entre nós. De repente, sinto-me constrangida por minha aparência, largada e
exausta, com o cabelo despenteado e roupa de dormir, sentada ao lado do belo
príncipe da República. Mesmo assim, endireito e inclino a cabeça o mais
graciosamente possível. Repito para mim mesma: Eu sou June Iparis. Não
posso permitir que ele veja o caos que
estou sentindo.
- Queria informá-la de que você estava certa - ele começa a dizer.
-
Dois soldados da minha guarda desapareceram hoje à tarde. Fugiram.
Os dois soldados dos Patriotas que serviram de isca fugiram, como planejado.
Suspiro e dirijo a ele o olhar de alívio que havia ensaiado, caso
Razor esteja observando.
- Onde é que eles estão agora?
- Não sabemos direito. Batedores estão tentando rastreá-los. – Por
um instante, Anden esfrega as mãos enluvadas. - O Comandante DeSoto instituiu
uma nova rotatividade para os soldados que nos acompanharão.
Razor. Ele está pondo seus próprios soldados para "protegerem"Anden,
e pouco a pouco está fechando o cerco para o assassinato.
- Gostaria de agradecer-lhe pela ajuda, June - continua Anden. - Quero
pedir desculpas pelo teste do detector de mentiras ao qual você teve de se
submeter. Sei que deve ter sido desagradável, mas era necessário. De qualquer
maneira, agradeço-lhe pelas respostas sinceras. Você vai permanecer aqui
conosco por mais alguns dias, até estarmos certos de que o pior já passou e que
sabotamos verdadeiramente os planos dos Patriotas. Talvez ainda tenhamos
algumas perguntas para você. Depois disso, vamos determinar como reintegrá-la
às fileiras da República.
- Obrigada - digo, embora as palavras sejam completamente vazias.
Anden se debruça e sussurra, com palavras rápidas e com a boca mal
se abrindo.
- Eu falei sério no nosso jantar.
Ele está nervoso. Uma súbita paranóia se apossa de mim; dou uma pancadinha
nos lábios com um dedo e olho firmemente para ele. Seus olhos se arregalam, mas
ele não se retrai: segura suavemente meu queixo, depois me puxa para junto do
seu corpo, como se fosse me beijar. Ele para os lábios bem ao lado dos meus, e
os roça ligeiramente na parte inferior da minha bochecha. Um formigamento
percorre minha espinha e, junto com ele, um sentimento de culpa.
- Para que as câmeras de segurança não nos denunciem - ele
murmura.
Esse é um meio melhor de conversar em particular; se um guarda metesse
a cabeça pela porta, pareceria que Anden estava roubando um beijo meu, não
sussurrando segredos. Seria um boato mais seguro de se espalhar. E os Patriotas
pensariam apenas que eu estava agindo de acordo com os planos deles.
A respiração de Anden me aquece a pele.
- Preciso da sua ajuda. Se você fosse perdoada por seus crimes contra
a República, e libertada, teria condições de contatar Day? Ou seu
relacionamento com ele acabou, agora que você já não está ao lado dos
Patriotas?
Mordo o lábio. A maneira como Anden diz "relacionamento"
deixa transparecer que ele pensa que houve algo mais entre mim e Day.
- Por que você quer que eu o contate?
Suas palavras têm uma urgência tranqüila e dominadora que me dá arrepios.
-Você e Day são o casal mais celebrado da República. Se eu puder formar
uma aliança com vocês dois, conseguirei conquistar o povo. E então, em lugar de
debelar revoluções e tentar evitar que as coisas desmoronem, posso me
concentrar em implementar as mudanças de que este país necessita.
Eu me sinto zonza. Isso é repentino e surpreendente, e por um
instante não consigo pensar numa boa resposta. Anden está se arriscando muito
ao falar essas coisas comigo. Engulo em seco, minhas bochechas ainda estão
ardendo com a proximidade dele. Mexo o corpo um pouco para poder ver seus
olhos. Pergunto então, com voz firme:
- Por que devemos confiar em você? O que o faz pensar que Day quer
ajudá-lo?
Os olhos de Anden expressam um propósito determinado:
- Eu vou transformar a República, e vou começar libertando o irmão
dele.
Minha boca se resseca. De repente tenho vontade de que
estivéssemos falando alto o suficiente para Day escutar.
-Você vai soltar o Éden?
- Para começo de conversa, ele nunca deveria ter sido preso. Vou libertá-lo,
junto com outros que estão sendo usados na frente de batalha.
- Onde ele está? - sussurro. - Quando é que você...
- Éden tem viajando pela frente de batalha nas últimas semanas. Meu
pai o havia levado, junto com uma dúzia de outros, como parte de uma iniciativa
de guerra. Eles estão sendo basicamente usados como armas biológicas vivas. - O
rosto de Anden fica sombrio. -Vou dar um fim a essa palhaçada maluca. Minha
ordem será divulgada amanhã: Éden será retirado da frente de batalha, e tratado
na capital.
Isso é novidade. Isso muda tudo.
Tenho de encontrar uma forma de contar a Day sobre a libertação de
Éden, antes que ele e os Patriotas matem a única pessoa com o poder de soltá-lo.
Qual é a melhor maneira de me comunicar com ele? Os Patriotas devem
estar vigiando todas as minhas ações através das câmeras de segurança, penso,
enquanto minha mente gira sem parar. Vou precisar enviar um sinal para Day. Seu
rosto aparece nos meus pensamentos, e tenho vontade de correr até ele. Quero
muito dar a ele a boa notícia.
Será mesmo uma boa notícia? Meu lado prático se manifesta,
e me adverte para ir com calma. Anden pode estar mentindo, e tudo isso pode ser
uma armadilha. Mas, se fosse apenas mais uma tentativa de prender Day, por que
Anden simplesmente não ameaçaria matar o Éden? Isso faria com que Day saísse do
seu esconderijo. Ao invés disso, Anden vai soltar Éden.
Ele espera pacientemente enquanto fico em silêncio. Mirrmura
apenas.
- Quero que o Day confie em mim.
Passo os braços ao redor do seu pescoço, e aproximo os lábios da
sua orelha. O cheiro dele é de sândalo é lã bem cuidada.
-Vou precisar encontrar um jeito de contatá-lo e convencê-lo, mas se
você soltar o irmão dele, Day vai confiar em você - sussurro também.
-Vou ganhar a sua confiança também. Quero que você tenha fé em mim.
Eu tenho fé em você. Há muito tempo que tenho fé em você.
Ele se cala por um instante. Sua respiração se acelerou, e os
olhos mudam abruptamente. A autoridade respeitosa e distante se evapora..
Neste momento ele é apenas um rapaz, um ser humano, e a
eletricidade entre nós é enorme. Num instante, ele vira o rosto e seus lábios encontram
os meus.
Fecho os olhos. O beijo é muito leve, mal posso senti-lo, mas não posso
deixar de querer mais. Com Day, há sempre fogo e fome entre nós, mesmo raiva,
um desespero e uma necessidade profunda. Entretanto! com Anden, o beijo é só
delicadeza e encanto refinado, modos aristocráticos, poder e elegância. Prazer
e vergonha me invadem. Será que Day pode ver isso pelas câmeras?
Esse pensamento me dilacera.
O beijo dura somente alguns segundos, e depois Anden se afasta. Solto
a respiração, abro os olhos, e deixo que o resto do quarto entre em foco. Ele
está comigo já faz algum tempo; se demorar mais, os guardas do lado de fora vão
começar a se preocupar.
- Lamento perturbá-la - diz, fazendo uma leve mesura com a cabeça antes
de se levantar e endireitar o sobretudo. Voltou a se esconder atrás da
formalidade, mas há um ligeiro aturdimento na sua postura, e um leve sorriso
nos lábios. - Descanse um pouco. Amanhã nos veremos.
Depois que ele sai e o quarto volta a um silêncio pesado, me
encolho toda, deitada na cama. Meus lábios queimam com o toque de Anden. Deixo
que minha mente reflita sobre o que ele acabou de me dizer, e brinco com o anel
de clipes de papel no meu dedo. Os Patriotas quiseram que Day e eu nos
uníssemos a eles para assassinar esse jovem Eleitor.
Afirmaram que, ao matá-lo, estaríamos atiçando uma revolução que
nos libertaria da República. E que assim traríamos de volta a glória dos
antigos Estados Unidos. Mas o que isso significa de verdade? O que terão
os Estados Unidos que Anden não possa dar à República? Liberdade? Paz? Prosperidade?
Será que a República se tornará um país cheio de arranha-céus lindamente
iluminados e bairros bem cuidados e ricos?
Os Patriotas prometeram a Day que encontrariam seu irmão e nos ajudariam
a fugir para as Colônias. Mas se Anden pode fazer tudo isso com o apoio adequado
e a determinação certa, se nós não precisarmos escapar para as Colônias, então,
a que propósito esse assassinato vai servir?
Anden não é, nem de longe, igual ao pai. De fato, seu primeiro ato
oficial como Eleitor vai ser desfazer uma coisa que seu pai pôs em prática: ele
vai libertar Éden, talvez até deter os experimentos com as pragas. Se nós o
mantivermos no poder, será que ele mudará a República para melhor?
Não seria ele o catalisador que Metias havia desejado, nas
anotações provocantes que fez no seu diário?
Existe um problema ainda maior que me intriga. Razor deve saber,
de alguma maneira, que Anden não é um ditador como seu pai era. Afinal de
contas, a patente de Razor é alta o bastante para que ele fique ciente pelo
menos dos boatos sobre a natureza rebelde de Anden. Ele disse a Day e a mim que
o Congresso não gostava de Anden, mas nunca nos disse por que eles estavam em
conflito.
Por que ele iria querer assassinar um jovem Eleitor que ajudaria
os Patriotas a estabelecer uma nova República?
Em meio aos meus pensamentos turbulentos, contudo, um fica
perfeitamente claro.
Agora tenho certeza a quem devo minha lealdade. Não vou ajudar Razor
a assassinar o Eleitor, mas preciso prevenir Day, para que ele não dê
continuidade aos planos dos Patriotas.
Preciso de um sinal.
Aí me dou conta de que pode haver uma forma de fazer isso, se ele estiver
acompanhando a vigilância sobre mim, junto com o resto dos Patriotas. Ele não
vai saber por que estou fazendo isso, mas é melhor do que nada. Abaixo ligeiramente
a cabeça, depois levanto a mão com o anel de clipes de papel, e comprimo dois
dedos no lado da minha testa. Esse é o sinal que combinamos quando chegamos a Vegas.
Pare.
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