Capítulo 12 - Day

Mais tarde, naquela noite, dirijo-me à sala principal de reuniões, e me junto aos outros, para tomar conhecimento da próxima fase da missão.
Razor está de volta. Quatro Patriotas continuam a trabalhar num grupo em um canto da sala, na maioria hackers, segundo me parece, analisando como os alto-falantes são instalados nos edifícios. Estou começando a reconhecer alguns deles. Um dos hackers é careca e parece um armário de tão forte, embora seja baixo; outro tem um narigão entre os olhos de meia-lua num rosto muito magro; uma hacker não tem um olho. Quase todos têm algum tipo de cicatriz.
Foco minha atenção em Razor, que se dirige à multidão à frente da sala; seu vulto está delineado em luz, com todas as telas com mapas-múndi atrás dele. Estico o pescoço para ver se consigo achar Tess entre eles, chamá-la de lado e tentar me desculpar. Mas, quando finalmente consigo vê-la, ela está com alguns outros médicos em treinamento, mostrando uma erva verde qualquer na palma da mão, e pacientemente explicando a eles como usá-la. pelo menos, é o que acho. Decido adiar minhas desculpas. Ela não parece precisar de mim neste momento. A idéia me faz sentir triste e estranhamente pouco à vontade.
- Day!
Tess finalmente repara em mim. Eu aceno.
Ela abre caminho até onde estou, tira duas pílulas e um pequeno rolo de ataduras do bolso, e põe tudo nas minhas mãos, respirando com dificuldade e me olhando fixamente:
- Cuide-se esta noite, tá bem? - Nem sinal da briga que rolou entre nós.
- Quando a adrenalina começa a bater, sei bem como você fica. Não faça nada muito doido - Tess aponta com a cabeça para as pílulas azuis na minha mão. - Elas manterão você aquecido se estiver muito frio lá fora.
Ela age como se fosse velha o bastante para cuidar de mim! A consideração de Tess me aquece o coração.
- Obrigado, amiga - digo então, guardando os seus presentes nos meus bolsos. - Olhe, eu queria...
Ela impede que eu me desculpe, pondo uma das mãos no meu braço. Seus olhos estão mais arregalados do que nunca, e são tão confortantes, que fico querendo que ela pudesse vir comigo.
- Deixa pra lá. Só me prometa que vai tomar cuidado.
Ela perdoa muito depressa, apesar de tudo... Será que ela disse aquelas coisas todas no calor do momento? Será que ela ainda está zangada comigo?
Eu me inclino para frente e a abraço rapidamente.
- Prometo. E você também trate de se cuidar.
Em resposta, ela aperta minha cintura, depois volta a se reunir com os outros jovens médicos, antes que eu possa tentar me desculpar mais uma vez.
Quando ela se vai, volto a me concentrar em Razor. Ele aponta para uma tela com imagem granulada que mostra uma rua perto dos trilhos de trem em Lamar, por onde Kaede e eu havíamos passado antes. Uma dupla de soldados se apressa na rua; suas golas levantadas para protegê-los da chuva com neve que cai. Ambos comem empanadas. Minha boca se enche d'água.
A comida enlatada dos Patriotas é um luxo, mas, porra, eu daria tudo por um pastel quente de carne.
- Antes de mais nada, gostaria de garantir a todos que nosso plano está seguindo seu curso. Nossa agente conseguiu se reunir com o Eleitor, e jogou a isca sobre nosso plano de assassinato - Razor faz um círculo com o dedo numa área da tela e continua. - Originalmente o Eleitor havia planejado visitar San Ângelo, durante o tour para elevar o moral das tropas, e depois viria para Lamar. Agora o boato que corre é que ele vai a Pierra, em vez disso. Alguns dos nossos soldados estarão acompanhando o Eleitor em substituição a sua guarda pessoal anterior.
Os olhos de Razor me examinam, e depois ele gesticula para a teia e se cala. Um vídeo substitui a cena dos trilhos de trem em Lamar. Estamos vendo as imagens de um quarto. A primeira coisa em que reparo é num vulto esbelto sentado na beira de uma cama, com os joelhos encostados no queixo. É June? Mas o quarto é bonito; certamente não é uma cela de prisão. A cama parece macia e tem camadas espessas de cobertores. O que não eu faria para conseguir cobertores assim, quando morava em Lake?
Alguém agarra meu braço.
- Oi! Aí está você, Sr. Celebridade!
Pascao está ao meu lado, com aquele permanente sorriso animado estampado no rosto, e os olhos cinzentos desbotados cheios de empolgação.
- Oi - respondo, cumprimentando-o rapidamente com um aceno de cabeça, antes de voltar minha atenção para a tela. Razor começou a dar ao grupo um panorama geral da próxima etapa dos planos, mas Pascao puxa minha manga de novo.
- Você, eu e mais uns corredores vamos nos mandar daqui a umas duas horas. - Seus olhos procuram o vídeo antes de se fixarem novamente em mim. - Preste atenção. Razor queria que eu desse à minha equipe um briefing mais detalhado do que esse que ele está transmitindo ao grupo. Eu acabei de falar com o Baxter e a Jordan.
Mal presto atenção ao Pascao porque agora estou certo de que o pequeno vulto na cama é June. Só pode ser ela, com aquele jeito de botar o cabelo atrás dos ombros e de analisar o quarto com um olhar atento. Ela está vestindo roupas de dormir que são bonitas e parecem confortáveis, mas estremece como se o quarto estivesse frio. Será que esse quarto elegante é mesmo sua cela de prisão? Relembro as palavras de Tess.
Day, você esqueceu que June matou sua mãe?
Pascao me cutuca de novo, obriga-me a olhar para ele e me leva para trás do grupo.
- Preste atenção, Day. Um embarque está chegando hoje à noite a Lamar, de trem. Vem trazendo grande quantidade de armas, maquinário, alimentos e mais um montão de coisas para os soldados da frente de batalha, além de muitos equipamentos de laboratório. Vamos roubar alguns suprimentos, e destruir um vagão cheio de granadas. Essa é a nossa missão hoje à noite.
Agora June está falando com o guarda perto da porta, mas mal consigo ouvi-la. Razor já acabou de se dirigir à platéia, e está empenhado numa conversa com dois outros Patriotas, que ocasionalmente gesticulam para a tela, e depois desenham algo nas palmas das mãos.
- Pra quê explodir um vagão de granadas?
- Essa missão é o falso assassinato. A agenda do Eleitor determinava que ele viesse aqui a Lamar, pelo menos antes que June conversasse com ele. Nossa missão desta noite deve convencer o Eleitor, se é que ele ainda não está convencido, de que June falou a verdade. Além disso, é uma ótima oportunidade para roubar algumas granadas - Pascao esfrega as mãos com uma alegria quase insana.
- Nitroglicerina... hum, que delícia! - brinco, erguendo uma sobrancelha.
- Eu e três outros corredores vamos cuidar da missão com o trem, mas vamos precisar de um corredor especial para distrair os soldados e guardas.
- O que você quer dizer com "especial"?
- O que eu quero dizer - Pascao responde, incisivamente - é que foi exatamente por isso que Razor decidiu recrutá-lo, Day. Essa é nossa primeira oportunidade de mostrar à República que você está vivo. Foi por isso que Kaede mandou você tirar a tintura do cabelo. Quando se espalhar a notícia de que você foi visto em Lamar, acabando com um trem da República, as pessoas vão entrar em parafuso. O famoso criminoso da República continua aprontando mesmo depois da tentativa do governo de executá-lo? Se isso não atiçar a revolta do povo, nada mais irá. E exatamente do que precisamos: o caos. Quando nós terminarmos, o povo vai estar tão empolgado com você que vai ficar doidinho para se rebelar. Esse é o ambiente perfeito para o assassinato do Eleitor.
A animação de Pascao me faz sorrir um pouco. Incomodar a República?
Eu nasci pra isso.
- Conta mais - peço.
Pascao se certifica de que Razor continua a discutir os planos com os outros, e então pisca para mim:
- Nossa equipe vai desenganchar o vagão com as granadas a uns três quilômetros da estação. Quando chegarmos ao local, não quero que tenha mais de um punhado de soldados vigiando o trem. Mas tome cuidado. Em geral, não há muita segurança perto dos trilhos, mas esta noite é diferente. A República vai estar de olho na gente agora que sabe do alerta da June sobre a tentativa de assassinato. Fique atento aos soldados extras. Enrole-os para nos dar o tempo de que precisamos e çertifique-se de que eles o vejam.
- Tudo bem, vou conseguir o tempo de que vocês precisam. Só me diga aonde preciso ir.
Pascao abre um sorriso maroto e me dá um forte tapa nas costas.
— Legal! Você é, de longe, o melhor de todos nós, corredores. Você vai enganar os soldados sem nenhum problema. Vamos nos encontrar daqui a duas horas perto da entrada por onde você chegou. A gente vai se divertir demais - ele estala os dedos e acrescenta: - Ah, não liga pro Baxter, não. Ele está meio aborrecido porque você recebe tratamento especial da Tess e de mim.
Assim que ele se afasta, meus olhos voltam para a tela e se concentram na figura de June. À medida que o vídeo continua, trechos da conversa de Razor com os outros Patriotas chegam aos meus ouvidos:
-... bastante para ouvir o que está acontecendo - Razor está dizendo. - Ela o tem na palma da mão.
No vídeo, June parece estar cochilando, com os joelhos encostados no queixo. Não há nenhum som, mas não me importo com isso. Então vejo um rapaz entrar na cela, um cara de cabelo escuro, e um elegante sobretudo preto. É o Eleitor. Ele se inclina e começa a falar com ela, mas não consigo distinguir o que está dizendo. Quando ele se aproxima, June demonstra tensão.
Dá pra perceber sua face ficando lívida. Toda a tagarelice e alvoroço ao meu redor diminuem como num passe de mágica. O Eleitor põe uma das mãos no queixo da June, e aproxima o rosto dela do dele. Ele está se apoderando
de algo que julguei apenas meu. Sinto uma súbita e dilacerante sensação de perda. Viro o rosto, mas mesmo pelo canto do olho consigo vê-lo beijando-a.
O beijo parece durar para sempre.
Observo, aturdido, quando eles finalmente se separam, e o Eleitor sai do quarto, deixando June sozinha, enrolada na cama. O que ela estará pensando?
Não tenho mais ânimo para assistir. Estou prestes a virar as costas, pronto para ir atrás do Pascao, fugir dessa cena.
Então, uma coisa me chama a atenção. Olho para o monitor, e bem nessa hora, vejo June levar dois dedos à testa: nosso sinal.
Passa da meia-noite quando Pascao, eu e três outros corredores pintamos largas tiras pretas de um lado a outro dos olhos, e nos vestimos com uniformes escuros de guerra, e quepes militares. Então, deixamos o esconderijo subterrâneo dos Patriotas pela primeira vez desde que cheguei. Alguns poucos soldados perambulam por ali de vez, mas vemos outros soldados, à medida que nos afastamos do bairro e atravessamos os trilhos de trem. O céu ainda está completamente coberto de nuvens e, sob a fraca luz dos postes de luz, vejo finas camadas de chuva e neve caindo. A calçada está escorregadia com garoa e lodo gelado, e o ar tem um cheiro azedo, uma mistura de fumaça e limo. Levanto ainda mais minha gola, engulo uma das pílulas azuis de Tess e desejo estar com ela de novo nas favelas úmidas de Los Angeles. Dou uma batidinha na bomba de poeira escondida na minha jaqueta militar para confirmar que está seca. A cena entre June e o Eleitor não me sai da cabeça.
O sinal da June foi para mim. Que parte do plano ela quer que eu não leve a cabo? Será que quer que eu desconsidere a missão dos Patriotas e fuja? Se eu desertar agora, o que acontecerá a ela? O sinal pode ter significado um milhão de coisas. Poderia até querer dizer que ela resolveu permanecer com a República. Tento, furiosamente, tirar essa idéia da cabeça. Não, ela não faria isso. Nem mesmo se o próprio Eleitor desejasse? Será que isso a faria ficar?
Também me lembro de que as imagens do vídeo eram mudas. Todos os outros vídeos a que assistimos tinham um som nítido. Razor até insistiu para que se aumentasse o volume. Teriam os Patriotas excluído o som desse vídeo?
Estarão escondendo alguma coisa?
Pascao nos para nas sombras de um beco não muito distante da estação de trem, e diz, com a respiração formando pequenas nuvens.
- O trem chega em quinze minutos. Baxter e Iris, venham comigo.
A garota chamada Iris - comprida e magra, com olhos profundos que estão sempre se movendo - sorri, mas Baxter enrijece a mandíbula. Eu o ignoro e tento não pensar sobre as bobagens que ele está tentando colocar na cabeça de Tess a meu respeito.
Pascao aponta para a terceira corredora, uma garota delicada de tranças ruivas, que não para de me olhar furtivamente.
- Jordan, você vai identificar o vagão certo para nós.
Ela faz um sinal positivo com os polegares.
Os olhos de Pascao agora se dirigem a mim.
- Você sabe o que fazer.
- Entendido, primo - respondo, dando um puxão na beira do meu quepe.
Seja lá o que June quis dizer, esta não é a hora de deixar os Patriotas na mão. Tess continua na casamata, e eu não tenho idéia de onde está Éden. De jeito nenhum vou colocá-los em risco.
Day
- Mostre àqueles soldados o que é bom pra tosse, hem?! Faça com que eles odeiem você.
- Essa é a minha especialidade.
Aponto para os telhados inclinados e as paredes em ruínas que nos rodeiam. Para um corredor, esses telhados são como gigantescos escorregadores que o gelo tornou lisos. Agradeço silenciosamente à Tess; sua pílula azul já está me aquecendo por dentro e é tão reconfortante quanto uma tigela de sopa quente numa noite gelada.
Pascao dá um grande sorriso .
- Senhoras e senhores, vamos dar início ao espetáculo!
Observo os outros se apressarem ao longo dos trilhos de trem, através do véu de chuva e neve. Depois penetro mais nas sombras, e estudo os edifícios. Todos eles são velhos e cheios de buracos que servem de apoio para os pés. Para tornar as coisas ainda mais divertidas, todos têm vigas metálicas enferrujadas presas às paredes. Alguns têm andares superiores que estão completamente detonados e abertos para o céu noturno. Outros têm telhados inclinados azulejados. Apesar de tudo, não consigo evitar sentir uma pontada de excitação. Esses prédios são o paraíso para um corredor.
Sigo caminhando pela rua rumo à estação de trem. Há pelo menos dois grupos de soldados, talvez mais, uma vez que não consigo ver bem o lado de lá. Alguns estão enfileirados ao longo dos trilhos na expectativa. Seus fuzis estão em punho; as tiras pretas de um lado a outro dos olhos reluzem molhadas sob a chuva. Toco no rosto para verificar minha pintura, e puxo para baixo o quepe na minha cabeça. Hora do show.
Acho um apoio seguro para os pés numa das paredes, e subo com cuidado até o telhado. Todas as vezes em que enfio a perna num apoio, minha batata da perna roça o implante artificial na coxa. Sinto o frio do metal mesmo através do tecido.
Vários segundos depois, estou empoleirado atrás de uma chaminé desmoronada, a três andares de altura. Daqui posso ver, exatamente como eu suspeitava, que há um terceiro grupo de soldados no outro lado da estação ferroviária. Vou até a outra extremidade do prédio, e depois salto silenciosamente entre os prédios até chegar ao topo de um telhado inclinado. Agora estou perto o suficiente para ver as expressões dos rostos dos soldados.
Enfio a mão na jaqueta, verifico que minha bomba de poeira continua quase toda seca, e então me agacho no telhado e espero. Passam-se alguns minutos.
Depois me levanto, pego a bomba de poeira e a atiro o mais longe possível da estação de trem.
Bum! Ela explode numa nuvem gigantesca, no momento em que atinge o solo. Instantaneamente a poeira devora o quarteirão inteiro e se estende rapidamente pelas ruas, em ondas reverberantes. Ouço gritos dos soldados perto da estação de trem.
- Lá! A três quadras daqui! - Todo trabalhado no óbvio. Muito bem, soldado.
Um grupo deles se afasta da estação e começa a correr na direção em que a nuvem de poeira cobriu as ruas.
Deslizo para baixo no telhado inclinado. Sarrafos se desprendem aqui e ali, enchendo o ar de saraivadas de neblina gelada, mas, através da gritaria e da correria que acontecem lá embaixo, não consigo nem escutar a mim mesmo. O próprio telhado está tão escorregadio quanto vidro molhado.
Aumento a velocidade. A chuva e a neve batem com força no meu rosto. Eu me seguro quando chego à parte inferior do telhado, e depois me lanço no ar. Do solo, provavelmente pareço uma espécie de fantasma.
Minhas botas alcançam o telhado inclinado do próximo prédio, que fica bem ao lado da estação de trem. Os soldados que continuam lá estão distraídos, olhando fixo para a poeira na rua. Dou um pequeno salto na parte debaixo deste segundo telhado, e depois me agarro num poste de luz, e deslizo até o chão. Atinjo as camadas de gelo na calçada, com um som abafado e de fragmentos.
- Sigam-me! - grito para os soldados. Eles me vêem pela primeira vez, como apenas mais um soldado comum, de uniforme escuro e riscas pretas de um lado a outro dos olhos. - Está havendo um ataque em um dos nossos depósitos! Vai ver são os Patriotas que estão finalmente mostrando as caras! - Gesticulo para os dois grupos que restaram. - Atenção, todos vocês!
O comandante ordenou que vocês se apressem! - Giro os calcanhares e começo a correr para fugir deles.
Obviamente, o barulho de suas botas no chão logo se faz ouvir. Não havia como esses soldados ousarem desobedecer às ordens de seu comandante, mesmo que isso significasse deixar a estação temporariamente sem proteção.
Às vezes, é impossível não adorar a disciplina férrea da República. Continuo a correr.
Depois que conduzo os soldados por quatro ou cinco quarteirões, passando pela nuvem de poeira e vários depósitos, subitamente dou uma guinada por um estreito corredor. Antes que eles possam dobrar a esquina, corro direto até uma das paredes do beco e, quando estou a alguns metros de distância, dou um pulo e chuto a parede de tijolos para tomar impulso.
Minhas mãos ficam livres. Eu me agarro na marquise do segundo andar e é só deixar a gravidade seguir seu curso. Meus pés pisam solidamente a parte superior da marquise.
Quando os soldados chegam correndo ao mesmo beco, já me escondi à sombra de uma janela do segundo andar. Ouço os primeiros deles pararem e, em seguida, suas exclamações perplexas. Penso então: É agora ou nunca. Tiro o quepe, e solto meu cabelo louro como trigo. Um dos soldados vira a cabeça para cima, a tempo de me ver sair rapidinho do esconderijo e dobrar a esquina, andando pela estrutura do segundo andar.
- Vocês viram isso? Aquele era Day? - grita um deles, incrédulo.
À medida que comprimo os pés nos vãos entre os velhos tijolos para conseguir subir ao terceiro andar, o tom de voz dos soldados vai de confuso a raivoso. Alguém grita para que os outros atirem em mim. Cerro os dentes, e salto para o terceiro andar.
As primeiras balas ricocheteiam na parede. Uma delas quase atinge minha mão. Não paro; continuo a esquivar o corpo rumo ao andar superior, e me atiro no telhado inclinado em um só movimento. Mais fagulhas iluminam os tijolos abaixo de mim. Vejo a estação à distância: o trem chegou, meio escondido pelo vapor, e parou desacompanhado, à exceção dos vários soldados que vinham nele.
Saio correndo do telhado, deslizo para baixo no outro lado, e depois dou mais um grande salto para o próximo telhado. Lá embaixo, alguns soldados começaram a correr de volta para o trem. Talvez tenham finalmente se dado conta de que isso tudo é apenas para distraí-los. Só deixo de olhar para a estação quando dou mais um enorme salto rumo ao próximo telhado.
Dois quarteirões de distância. Acontece uma explosão. Uma nuvem resplandecente e forte se forma mais longe nos trilhos da ferrovia, estremecendo até o local onde estou no topo do prédio. O impacto me faz perder o equilíbrio e cair de joelhos. É essa a explosão que Pascao mencionou.
Reflito enquanto absorvo o inferno por um instante. Um grande número de soldados vai se dirigir para lá. É perigoso, mas, se minha tarefa é informar à República que estou vivo, é melhor eu garantir ser visto pelo maior número de pessoas possível. Fico em pé, corro o mais rápido que posso e volto a meter o cabelo no quepe. Os soldados lá embaixo se dividiram em dois grupos: um corre rumo à explosão, e o outro continua atrás de mim.
De repente, derrapo e paro. Os soldados passam correndo pelo edifício em que estou. Sem desperdiçar mais um segundo, deslizo pelo telhado e me balanço a partir da beira da calha. As botas se apoiam nos parapeitos. Um após o outro. Salto até a calçada. Os soldados provavelmente acabaram de entender que perderam minha pista, mas já estou me misturando às sombras no chão. Começo a correr firmemente na rua, como se eu fosse apenas mais um soldado. Dirijo-me ao trem.
Chuva e neve começam a cair mais intensamente. As chamas que restaram da explosão iluminam o céu da noite, e estou perto o bastante do trem para ouvir os gritos e as passadas pesadas. Será que Pascao e os outros conseguiram sair a salvo? Acelero o passo. Outros soldados se materializam através da chuva e da neve, e eu me incorporo harmoniosamente à fileira à medida que corremos ao longo do trem. Eles correm em direção ao fogo.
- Que aconteceu? - grita um deles para outro.
- Sei lá! Disseram que uma fagulha detonou a carga.
- Isso é impossível! Todos os vagões são cobertos...
- Alguém precisa falar com o Comandante DeSoto. Isso é coisa dos Patriotas. O Eleitor deve ser informado. Eles...
Eles continuam a falar; não consigo ouvir o resto da frase. Vou reduzindo o ritmo até ficar na final da fileira, depois me lanço para dentro da minúscula fenda entre dois vagões. Todos os soldados podem ver que continuo a me dirigir para as chamas. Outros estão na área onde detonei a bomba de poeira, e os que me perseguiam devem continuar atônitos, esquadrinhando as ruas por onde eu estava correndo. Espero até ficar certo de que mais ninguém está atrás de mim. Depois vou me esquivando entre os vagões e corro ao longo do lado oposto dos trilhos onde estavam os soldados. Solto o cabelo mais uma vez. Agora, só preciso escolher o momento certo de fazer minha grandiosa aparição. Há pequenas marcas em todos os vagões por que passo.
Carvão. Armas controladas. Munição. Alimentos. Fico tentado a entrar no último, mas esse é meu lado Lahe se manifestando. Recordo a mim mesmo que já não estou procurando comida no lixo, e que os Patriotas têm despensas abarrotadas nos quartéis. Eu me obrigo a prosseguir. Mais marcas nos vagões. Mais suprimentos para as frentes de batalha.
Então, passo por uma pequena marca que me força a parar. Um arrepio percorre meus braços e pernas. Volto correndo até o vagão com marcas, para verificar se não imaginei algo.
Não imaginei não: lá está ele, incrustado no metal. Eu o reconheceria em qualquer lugar.
O X de três linhas. Minha cabeça roda; visualizo o símbolo de spray vermelho pixado na porta da minha mãe, as patrulhas contra a praga indo de casa em casa em Lake, Éden sendo levado embora. Não há como esse símbolo ter outro significado a não ser o fato de que meu irmão, ou algo relacionado a ele, está nesse trem.
Todo o interesse pelo plano dos Patriotas desaparece no mesmo instante da minha cabeça. Éden talvez estivesse aqui.
Dá pra ver que as duas portas deslizantes estão trancadas, por isso recuo alguns passos, e depois corro até elas. Quando estou perto o bastante, dou um pulo, ando três passos rápidos contra o lado do vagão, agarro a beira superior e me puxo para cima.
Existe uma chancela metálica circular no meio do teto desse vagão, que eles provavelmente usam para acessar o interior. Engatinho até ela, passo os dedos pelas bordas, e encontro quatro travas que prendem a chancela.
Agitado, consigo soltá-las. Os soldados devem estar voltando em instantes. Empurro a chancela com toda a força. Ela se entreabre, o que é suficiente para eu entrar.
Com um barulho surdo, piso no chão. Está bastante escuro, por isso não consigo ver muito a princípio. Estendo as mãos e toco o que me parece ser uma superfície redonda de vidro. Lentamente, começo a definir o ambiente.
Estou de pé em frente a um cilindro de vidro, quase tão alto e largo quanto o vagão; ele tem um revestimento metálico harmonioso no topo e na parte inferior, e emite um brilho azul muito esmaecido. Um pequeno vulto está deitado no chão; tubos saem de um dos braços dele. Percebo imediatamente que é um menino. Seu cabelo é curto, limpo, e ondas suaves se misturam.
Ele veste um macacão branco que o destaca na escuridão.
Um zumbido alto nos meus ouvidos bloqueia todo o resto ao redor. E Éden. É Éden! Deve ser ele. Tirei a sorte grande! Não posso acreditar na minha boa estrela. Ele está bem aqui; eu o encontrei no meio do nada, em toda a vastidão da República, num golpe de insana coincidência. Posso libertá-lo.
Podemos fugir para as Colônias antes do que eu julgava possível. Podemos fugir hoje à noite.
Corro até o cilindro, e bato com o punho no vidro, esperando que se espatife, embora dê pra ver que tem pelo menos trinta centímetros de espessura e é, provavelmente, à prova de balas. Por um instante, não sei dizer se o garoto pode escutar o barulho, mas então ele abre os olhos, que se movimentam de forma estranha e confusa, antes de tentar se fixar em mim.
Demoro muito para compreender que esse menino não é o Éden. O gosto amargo do desapontamento me ferroa a língua. Ele é tão pequeno. Deve ter a idade do meu irmão. Não consigo impedir que a imagem de Éden me esmague. Existem outros que também foram marcados com esse sinal?
Certamente que devem existir. Por que Éden seria o único no país inteiro?
O menino e eu nos encaramos por um tempo. Acho que ele me vê, mas parece não conseguir fixar o olhar; fica me olhando de forma enviesada, algo que a miopia de Tess também a obriga a fazer. Éden. Relembro como suas íris sangraram com a praga... Da maneira pela qual esse garoto está tentando me analisar, percebo que ele é quase totalmente cego, sintoma esse que meu irmão deve ter também.
De repente ele sai do transe e engatinha, o mais rápido possível, até onde estou. Comprime as mãos no vidro. Seus olhos são castanhos esmaecidos e opacos, não têm o tom preto assustador dos olhos de Éden quando o vi pela última vez, mas as metades da parte inferior estão profundamente roxas de sangue.
- Quem está aí? - ele pergunta. O vidro lhe abafa a voz. Ele ainda não consegue concentrar-se em mim, mesmo eu estando tão perto.
Eu também saio do meu transe e respondo, com um aperto na garganta:
- Um amigo. Vou tirar você daí.
Ao ouvir isso, seus olhos se arregalam, e seu rostinho instantaneamente expressa esperança. Minhas mãos percorrem o vidro e procuram alguma coisa, qualquer coisa, que possa abrir este maldito cilindro.
- Como se abre esta droga? Onde estão as travas?
O menino bate freneticamente no vidro. Ele está aterrorizado, e diz, com a voz trêmula:
- Me tira daqui, me tira daqui, por favor!
Suas palavras partem meu coração. Será isso o que Éden está fazendo, apavorado e cego, esperando que eu o salve, num vagão escuro de trem?
Preciso libertar esse menino. Eu me apoio no cilindro e digo:
- Você precisa se acalmar, certo, garoto? Não entre em pânico. Qual é seu nome? De que cidade é sua família?
Lágrimas começaram a escorrer no rosto do garoto:
- Meu nome é Sam Vatanchi, e minha família é de Helena, no estado de Montana. - Ele sacode a cabeça vigorosamente. - Eles não sabem aonde fui.
Será que você pode dizer a eles que quero voltar pra casa? Você pode... Não, não posso. Sinto-me como uma merda de um impotente. Tenho vontade de socar as laterais de metal do vagão.
- Vou fazer o que puder. Como se abre este cilindro? - pergunto de novo. - É seguro fazer isso?
O menino aponta freneticamente para o outro lado do cilindro. Dá pra ver que ele está se esforçando para conter o medo.
- Espera aí um pouco. - Ele para, numa tentativa de pensar em algo. - Sim, é seguro. Acho. Tem uma coisa ali que eles teclam. Dá pra ouvir os bipes que fazem o tubo se abrir.
Corro para onde ele aponta. É a minha imaginação, ou estou ouvindo débeis sons de botas se aproximando?
- É uma espécie de tela de vidro - digo. A palavra TRANCADO em vermelho se estende na tela. Viro-me para o garoto e bato no vidro. Seus olhos se dirigem para o som. - Existe uma senha? Como é que eles a teclam?
- Eu não sei! - O menino levanta as mãos, impotente; suas palavras se distorcem com um soluço. - Por favor, só...
Porra! Ele me lembra muito Éden. Suas lágrimas também me fazem chorar.
- Vamos lá! - eu o incentivo, lutando para manter um tom firme nas minhas palavras. Preciso me controlar. - Pense bem. Existe outra maneira de este troço abrir, além do teclado?
Ele sacode a cabeça e repete:
- Eu não sei, eu não sei!
Imagino o que Éden diria, se fosse esse garoto. Diria alguma coisa técnica, raciocinando como o pequeno engenheiro que é. Alguma coisa como "Você está com algum objeto agudo? Tente encontrar um mecanismo manual!".
Prepare-se para fazer algo difícil. Pego o canivete que está sempre no meu cinto. Já vi Éden abrir geringonças, e reconfigurar toda a fiação interior e as placas de circuitos. Talvez eu deva tentar fazer o mesmo.
Coloco a lâmina contra a minúscula fenda que se estende ao longo da borda do teclado, e cautelosamente faço pressão. Quando nada acontece, empurro mais forte até que a lâmina se dobra. Isso não ajuda em nada. Resmungo então:
- É muito apertado.
Se pelo menos June estivesse aqui... Ela provavelmente descobriria como esta coisa funciona em meio minuto. O menino e eu partilhamos um breve instante de silêncio. Ele expressa profunda tristeza, e seus olhos se fecham. Sabe que não há maneira de se abrir a porta. Preciso resgatá-lo.
Preciso salvar Éden. Tenho vontade de gritar.
Não é minha imaginação - ouço os soldados se aproximando. Devem estar verificando os compartimentos.
- Fale comigo, Sam. Você ainda está doente O que eles estão fazendo com você?
O menino enxuga o nariz. A luz da esperança já desapareceu do seu rosto.
Ele me pergunta:
- Quem é você?
- Alguém que quer ajudar - sussurro. - Quanto mais você me contar, mais fácil será para mim dar um jeito neste troço.
- Já não estou doente - Sam responde, apressado, porque sabe que nosso tempo está se esgotando -, mas eles dizem que tem alguma coisa no meu sangue, que eles chamam de vírus dormente. - Ele para e pensa. - Eles me dão remédio pra eu não ficar doente de novo. - Ele esfrega os olhos sem visão, e em silêncio me implora para salvá-lo. - Toda vez que o trem para, pegam uma amostra do meu sangue.
- Você sabe em que cidades já esteve?
- Não sei. Uma vez ouvi o nome Bismarcfc... - o garoto interrompe o que diz e depois continua: - E Yanhton, acho.
Ambas são cidades nas zonas de combate em Dakota. Penso no transporte que estão usando para ele. O ambiente do vagão provavelmente é mantido estéril, para que as pessoas possam entrar e coletar uma amostra de sangue, e depois a misturar com alguma coisa que ative o vírus dormente.
Os tubos no braço dele podem ser apenas para alimentá-lo. Calculo que eles o estejam usando como uma arma biológica contra as Colônias. Eles o transformaram numa cobaia de laboratório. Igualzinho ao Éden.
A idéia de meu irmão sendo transportado de lá para cá ameaça me sufocar.
- Para onde eles vão levá-lo agora?
- Eu não sei! Eu só quero ir pra casa!
Em algum lugar da frente de batalha. Só posso imaginar quantos outros estão sendo levados para cima e para baixo nas zonas de combate. Visualizo Éden amontoado num desses trens. O menino recomeçou a choramingar, mas eu me obrigo a interrompê-lo.
- Preste atenção: você sabe alguma coisa sobre um garoto chamado Éden? Já ouviu esse nome mencionado em algum lugar?
- Não!!! Eu... não sei... quem é ele!! - ele grita mais alto.
Não posso mais ficar aqui. Com esforço, desvio o olhar de Sam, e corro para as portas deslizantes do vagão. As pisadas dos soldados soam mais fortes; eles não podem estar a mais do que cinco ou seis vagões de distância.
Dou um último olhar de relance para o menino.
- Desculpe, mas preciso mesmo ir embora. - Fico muito angustiado ao dizer essas palavras.
O garoto começa a bater forte no vidro espesso do cilindro e exclama, com voz entrecortada.
- Não! Eu contei tudo que sei! Por favor, não me deixe aqui!
Não suporto mais ouvir nada. Eu me obrigo a subir nas travas laterais de uma porta deslizante, e me aproximo o bastante do teto do vagão para me agarrar à beira da chancela circular do topo, de onde salto e me embrenho  no ar da noite novamente, e volto à chuva e à neve que me açoitam os olhos e me fustiga o rosto com gelo. Luto para recompor minha postura. Estou morrendo de vergonha de mim.
Esse guri me ajudou no que pôde, e é desta maneira que eu retribuo? Fugindo para salvar minha pele?
Os soldados estão inspecionando os vagões a cerca de quinze metros daqui. Deslizo a chancela de volta ao lugar, e praticamente me achato no telhado até chegar à beirada. Balanço o corpo para baixo e chego ao chão. Pascao se materializa das sombras; os olhos cinzentos faíscam no escuro.
Ele deve estava me procurando.
- Porra! Por que você está aqui? O combinado era você fazer um estardalhaço perto da explosão, não é? Onde você estava?
Não estou a fim de ser educado.
- Agora não, tá? - retruco de maneira rude quando começo a correr ao lado de Pascao. Está na hora de voltar a nosso túnel subterrâneo. Tudo se move rapidamente por nós, numa neblina surreal. Pascao abre a boca para dizer outra coisa, hesita ao ver minha cara e decide deixar quieto. Recomeça a falar, desta vez com mais calma.
- Você se saiu muito bem. Provavelmente já devem saber que você está vivo, mesmo sem todo o alvoroço que a gente esperava. Sua corrida lá em cima no telhado foi muito maneira. Amanhã de manhã vamos ver como o povo reage à sua aparição aqui.
Não respondo. Ele morde o lábio e me deixa quieto.
Não tenho escolha: preciso esperar até Razor concluir seu plano antes que os Patriotas me ajudem a resgatar o Éden. Uma onda de raiva contra o jovem Eleitor se forma em mim. Eu odeio você. Detesto você com todas as minhas forças, e juro que vou meter uma bala em você na primeira oportunidade que tiver. Pela primeira vez desde que me juntei aos Patriotas, fico empolgado com o assassinato. Vou fazer o possível para garantir que a República nunca mais toque no meu irmão.
Em meio ao caos do incêndio e aos gritos das tropas, nós nos esquivamos pelo outro lado da cidade, e penetramos de novo na noite.

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