Capítulo 13 - June
Faltam menos de dois dias para o assassinato do Eleitor, isto é,
tenho trinta horas para impedi-lo.
O Sol acabou de se pôr quando o Eleitor, seis senadores e pelo
menos quatro patrulhas de guardas (quarenta e oito soldados), embarcam num trem
que se dirige à cidade de Pierra, na zona de combate. Eu estou com eles. É a
primeira vez que viajo como passageira ao invés de prisioneira, por isso esta
noite estou vestindo malhas quentes de inverno e macias botas de couro (sem
saltos nem biqueiras de aço, para que eu não possa usá-las como armas) e um
manto de lã grossa com capuz escarlate e enfeites prateados. Nada de algemas.
Anden fez questão de que eu usasse luvas pretas e vermelhas de couro macio, e
pela primeira vez desde que cheguei a Denver não sinto frio nos dedos. Meu
cabelo está penteado como sempre, limpo e preso em um rabo de cavalo. Apesar
disso tudo, minha cabeça está quente e meus músculos doem. Todas as lâmpadas na
plataforma da estação estão apagadas e ninguém, sem contar o grupo do
Eleitor, está à vista. Entramos no trem em completo silêncio. O
repentino desvio feito por Anden, de Lamar para Pierra, provavelmente é algo
que a maioria dos senadores desconhece.
Meus guardas me levam para meu próprio vagão particular, um local tão
luxuoso, que sei que estou aqui só porque Anden insistiu.
Tem o dobro do comprimento dos vagões comuns (deve passar de oitenta
e três metros quadrados, tem seis cortinas de veludo, e o onipresente retrato
de Anden está pendurado na parede direita). Os guardas me conduzem para a mesa
de centro do vagão e puxam um assento para mim.
Sinto um estranho distanciamento disto tudo, como se nada fosse
real; é como se eu estivesse exatamente onde costumava estar: uma garota milionária
assumindo o lugar que lhe é devido na elite da República.
- Se a senhorita precisar de alguma coisa, é só falar - diz um
deles.
Ele é gentil, mas o enrijecimento de sua mandíbula denuncia que
está muito nervoso por estar perto de mim.
Não escuto nenhum som, exceto o sutil chocalhar do trem nos
trilhos. Tento não me concentrar diretamente nos soldados, mas, pelo canto dos olhos,
eu os observo detidamente. Haverá Patriotas disfarçados de soldados neste trem?
Se houver, será que desconfiam da transferência da minha lealdade?
Esperamos juntos num silêncio pesado. A neve recomeçou a cair e se
empilha nos cantos exteriores da minha janela. Caracóis de gelo branco enfeitam
o vidro. Isso me lembra do enterro de Metias, meu vestido branco, o traje
completo de Thomas, impecavelmente branco, os lilases brancos e os tapetes
brancos.
O trem ganha velocidade. Debruço-me na janela até que meu rosto quase
toca no vidro frio. Presto atenção silenciosamente à medida que nos acercamos
da gigantesca muralha ameaçadora que cerca Denver. Mesmo na escuridão, consigo
ver os túneis escavados na muralha; alguns estão completamente vedados com
sólidos portões metálicos, enquanto outros permanecem abertos para que as
cargas noturnas possam atravessá-los.
Nosso trem se move rapidamente num dos túneis - acho que os trens que
saem da capital não precisam parar para inspeção, especialmente se o Eleitor os
aprovou. Quando deixamos a enorme muralha para trás, vejo um trem parar para
ser inspecionado num posto de controle.
Nós continuamos, e vamos desaparecendo na noite. Os arranha-céus dos
bairros das favelas, desgastados pela chuva, passam correndo pelas janelas, uma
visão agora familiar de como vivem as pessoas nos arredores de uma cidade.
Estou muito cansada para prestar atenção nos detalhes.
Relembro o que Anden me disse ontem à noite, o que me leva de volta
ao problema incessante de como prevenir Anden e manter Day a salvo ao
mesmo tempo. Os Patriotas saberão que os traí, se eu revelar a Anden a
verdadeira trama do assassinato antes da hora. Preciso cronometrar meus passos
de modo que quaisquer desvios do plano aconteçam logo antes do homicídio,
quando eu puder chegar ao Day facilmente.
Gostaria de poder contar ao Anden agora. Contar-lhe tudo e acabar logo
com isso. Num mundo sem o Day, é isso o que eu faria. Em um mundo sem Day,
muitas coisas seriam diferentes. Penso nos pesadelos que venho tendo, no
pensamento apavorante de Razor meter uma bala no peito do Day. O anel de clipes
de papel continua no meu dedo.
De novo, levanto dois dedos e os levo até a testa. Se o Day não
viu meu primeiro sinal, espero que veja este. Os guardas não acham que eu esteja
fazendo alguma coisa incomum; parece que estou apenas descansando a cabeça. O
vagão do trem balança para um lado e me deixa tonta. Talvez este resfriado que
está chegando - isto é, se for mesmo um resfriado, e não uma coisa mais séria -
esteja começando a afetar meu raciocínio. Ainda assim, não solicito um médico e
nem remédios. Remédios inibem o sistema imunológico, por isso sempre preferi
lutar contra doenças por conta própria (para desespero do meu irmão).
Por que será que tantos pensamentos me levam até Metias?
Uma voz irritada de homem me distrai. Dou as costas para a janela.
Parece a voz de um homem de idade. Eu me endireito na cadeira e vejo dois
vultos vindo em minha direção através da janela minúscula da porta do vagão.
Uma voz é do homem que acabei de ouvir, um sujeito baixo com gordura em torno
dos quadris, barba grisalha desmazelada e nariz pequeno e protuberante. O outro
é Anden. Esforço-me para ouvir o que estão falando; a princípio, tudo que
consigo distinguir são indícios entrecortados do que estão conversando, mas
suas palavras ficam mais ásperas à medida que se aproximam do meu vagão.
- Primeiro Eleitor, por favor! Estou dizendo isso para seu próprio
bem. Atos de rebelião devem ser castigados severamente. Se o senhor não reagir
de modo adequado, é apenas uma questão de tempo até que tudo se transforme num
levante!
Anden escuta pacientemente, com as mãos atrás das costas e a
cabeça inclinada para baixo, na direção do homem.
- Obrigado por sua preocupação, senador Kamion, mas já tomei minha
decisão. Não é hora de enfrentarmos a inquietação em Los Angeles com forças
militares.
Minhas orelhas se aguçam ao ouvir isso. O homem mais velho abre os
braços, num gesto de irritação.
- Faça o povo entrar na linha. O senhor precisa agir agora. Demonstre
sua força.
Anden sacode a cabeça.
- Senador, isso vai deixar o povo ainda mais tenso. Usar a força
fatal antes que eu tenha a oportunidade de divulgar todas as mudanças que tenho
em mente? De maneira alguma. Não vou ordenar nenhuma ação militar. Essa é
a minha vontade.
O senador coça a barba, irritado, e põe uma das mãos no cotovelo
de Anden.
- O público não está de braços abertos para você, e sua leniência
vai parecer fraqueza, não só externa, mas também internamente. Os
administradores da Prova de LA estão reclamando da sua falta de reação; os protestos
os forçaram a cancelar vários dias de exames.
A boca de Anden se estreita numa linha severa.
-Acredito que o senhor esteja a par da minha opinião sobre as
Provas.
- Estou - replica, em tom sério, o senador. - Essa é uma discussão
para outra hora, mas se o senhor não emitir ordens que nos permitam deter o
tumulto, posso lhe garantir que vai receber reprimendas do Senado e das
patrulhas de Los Angeles.
Anden ergue uma sobrancelha para ele.
- É mesmo? Lamento. Eu tinha a impressão de que nosso Senado e nossas
forças armadas entendiam exatamente o peso das minhas palavras.
O senador seca o suor da testa e diz:
- Bem, isso... é claro que o Senado vai se curvar aos seus
desejos, senhor, eu só quis dizer... bem...
- Ajude-me a convencer os outros senadores de que esta é a hora errada
para investir contra o povo. - Anden se cala, encara o homem e lhe dá um
tapinha no ombro. - Não quero fazer inimigos no Congresso, senador. Quero que
seus companheiros e o tribunal nacional respeitem minhas decisões, da mesma
forma que agiram em relação às tomadas pelo meu pai. Usar a força fatal para
debelar os rebeldes só incitará mais raiva contra o estadp.
-Mas, senhor...
-Terminaremos essa discussão depois. Estou cansado.
Embora sua resposta seja abafada pelas portas entre nós, posso
sentir a frieza das suas palavras.
O senador resmunga alguma coisa e faz uma reverência. Quando Anden
assente com a cabeça, o homem dá meia-volta e sai apressadamente. Anden o
observa se afastar, e depois abre a porta do meu vagão.
Os guardas batem continência. Nós nos cumprimentamos à distância.
-Vim transmitir as condições de sua soltura, June.
Anden se dirige a mim com uma formalidade distante, talvez por conta
da ácida conversa que tivera com o senador. O beijo que ele me deu na noite
anterior parece uma alucinação. Ainda assim, vê-lo me dá uma estranha sensação
de consolo, e acabo à vontade na minha cadeira, como se estivesse na companhia
de um velho amigo.
- Ontem à noite fomos informados de que houve mesmo um
ataque em Lamar. Um trem foi destruído numa explosão, o trem em que eu deveria
estar. Não sei quem é o responsável, e não conseguimos prender os infratores,
mas supomos que foram os Patriotas. Temos equipes à procura deles neste
momento.
- Fico satisfeita por ter sido útil, senhor - digo. Minhas mãos se
apertam no meu colo, e me lembram a luxuosa maciez das minhas luvas. Será que
devo mesmo me sentir tão a salvo e segura neste vagão ferroviário de elite,
enquanto Day está provavelmente fugindo com os Patriotas?
- Se conseguir lembrar-se de outros detalhes, Srta. Iparis, por
favor, sinta-se à vontade para partilhá-los comigo. Você está de volta à
República, é uma de nós, e lhe dou minha palavra de que não tem nada a temer.
Quando chegarmos a Pierra, sua folha pregressa será zerada. Eu pessoalmente
providenciarei para que você seja reintegrada a seu posto anterior. Porém, você
será designada para outra patrulha metropolitana.
- Anden põe uma das mãos nos lábios e pigarreia: - Recomendei que você
passe a trabalhar em uma equipe de Denver.
- Obrigada - respondo. Anden está caindo direitinho na armadilha dos
Patriotas.
- Alguns senadores acham que temos sido generosos demais, mas todos
concordam em que você é nossa maior esperança de rastrear os líderes dos
Patriotas. - Anden se aproxima e se senta ao meu lado. – Estou certo de que
eles vão tentar de novo, e quero que você lidere meus soldados para interceptar
futuras tentativas.
- O senhor é muito generoso, Primeiro Eleitor. Sinto-me honrada - respondo,
e abaixo a cabeça, numa meia reverência. - Se não se importar que eu pergunte,
meu cachorro também vai ser perdoado?
Anden sorri.
- Seu cão está sendo tratado na capital, e estará à sua espera
quando a senhorita chegar.
Encaro fixamente os olhos de Anden; as pupilas estão dilatadas, e suas
bochechas, ligeiramente rosadas.
- Entendo bem por que o Senado está insatisfeito com a sua
leniência, mas é verdade que ninguém saberá protegê-lo melhor do que eu. - Preciso
de um minuto a sós com ele.
- Mas deve existir outra razão para ser tão generoso comigo, ou
estou errada?
Anden engole em seco e olha para seu próprio retrato na parede.
Meus olhos se fixam rapidamente nos guardas junto às portas do
vagão do trem. Como se soubesse o que estou pensando, Anden gesticula para que
os soldados saiam, e aponta para as câmeras no vagão. Os soldados vão embora, e
um momento depois as luzes vermelhas das câmeras piscam e se apagam. Pela
primeira vez, estamos realmente sozinhos.
- A verdade é que você se tornou muito popular com o
público. Se correr a notícia de que a prodígio mais talentosa do país está
sendo condenada por traição, ou mesmo que ela foi rebaixada de posto por deslealdade...
Bem, você deve entender que isso refletiria muito mal na República. E em mim.
Até o Congresso sabe disso.
Minhas mãos se crispam e se abrigam no meu colo.
- Ao que parece, você e os senadores de seu pai têm códigos morais
bem diferentes - digo, refletindo sobre a conversa que acabara de ouvir entre
Anden e o senador Kamion.
- Para dizer o mínimo... - desabafa, com um sorriso amargo.
- Eu não sabia que o senhor condenava tanto assim as Provas.
Anden assente.
Não parece surpreso por eu ter entreouvido a conversa.
-As Provas são uma forma obsoleta de escolher os melhores e mais brilhantes
cérebros de nosso país.
E estranho ouvir isso da boca do Primeiro Eleitor.
- Por que o Senado insiste tanto na realização delas? Qual é o
investimento deles nas Provas?
Anden dá de ombros.
- É uma longa história. No início, quando a República as
implementou, elas eram... meio diferentes do que são hoje.
Eu me inclino para frente. Nunca escutei nenhuma história sobre a
República que não fosse filtrada pela diretoria dos colégios ou pelos sistemas
de mensagens públicas, e agora o próprio Primeiro Eleitor vai me contar uma
delas.
- Elas eram diferentes de que forma? - pergunto.
- Meu pai era... muito carismático. - Anden parece estar meio na defensiva.
Resposta esquisita. Digo então, tomando cuidado para parecer
neutra:
-Tenho certeza de que ele tinha suas próprias convicções.
Anden cruza as pernas e encosta-se à cadeira:
- Não gosto do país em que a República se transformou - ele diz, pronunciando
cada palavra lenta e pensativamente -, mas não posso fingir que não sei por que
as coisas estão como estão. Meu pai tinha suas razões para fazer o que fez.
Franzo a testa. Sua frase é intrigante. Ele não havia acabado de
dizer que desaprovava a ofensiva militar contra os amotinados.
- Como assim?
Anden abre e fecha a boca, como se estivesse tentando encontrar as
palavras adequadas.
- Antes de meu pai se tornar o Primeiro Eleitor, as Provas eram
voluntárias.
- Ele para ao me ouvir sustar a respiração. - Pouca gente sabe disso;
foi há muito tempo.
As Provas eram voluntárias. Nunca ouvi falar nisso.
- Por que ele mudou o sistema?
- Como eu já disse, é uma longa história. A maioria das pessoas nunca
vai saber a verdade sobre a formação da República, e isso é bem fundamentado. -
Ele passa uma das mãos no cabelo ondulado, depois encosta um cotovelo no parapeito
da janela e me pergunta: - Você quer saber?
Que pergunta mais retórica!
Sob as palavras de Anden detecto certa solidão. Nunca havia
pensado nisso, mas agora me dou conta de que eu talvez seja a única pessoa com quem
ele já tenha se aberto. Inclino-me para frente, faço um sinal positivo com a
cabeça, e espero que ele continue.
- Originalmente, a República foi constituída no meio da pior crise
que a América do Norte, o mundo inteiro, por sinal, já havia vivenciado. Inundações
tinham destruído o litoral leste da América, e milhões de pessoas daquela
região estavam se dirigindo para o oeste. Nenhum de nossos estados tinha
capacidade para recebê-las. Não havia empregos, comida, ou abrigos. O país
enlouqueceu de medo e pânico. Os protestos saíram do controle. Os manifestantes
arrancavam soldados, policiais e pacificadores de seus carros, depois os
espancavam até a morte, ou os queimavam vivos. Todas as lojas foram saqueadas,
todas as vitrines quebradas - ele respira fundo. - O governo federal tentou ao
máximo manter a ordem, mas uma calamidade após a outra impossibilitou que isso
ocorresse. As autoridades não tinham dinheiro para lidar com todas as crises, e
o resultado foi uma anarquia total.
Houve um período em que a República não exercia controle sobre o
povo? Impossível. Tive dificuldade em imaginar isso, até perceber que Anden
poderia estar se referindo ao governo dos antigos Estados Unidos.
- Então nosso Primeiro Eleitor assumiu o poder. Ele era um jovem oficial
das forças militares, apenas alguns anos mais velho do que sou agora, e
ambicioso o bastante para conquistar o apoio das tropas insatisfeitas do oeste.
Ele declarou que a República era um país separado, dissidente da União, e impôs
a lei marcial ao oeste. Os soldados podiam atirar à vontade, e depois de ver
seus companheiros torturados e mortos nas ruas, não tiveram dúvida na hora de
aproveitar ao máximo seu recém-adquirido poder. Virou um nós contra eles, isto
é, os militares contra o povo. - Anden olha para seus mocassins reluzentes,
aparentemente envergonhado. - Muitas pessoas foram mortas antes que os
militares conseguissem tomar posse o controle da República.
Não posso deixar de me perguntar que Metias teria pensado disso. Ou
meus pais.Teriam aprovado? Teriam obrigado a haver ordem em pleno caos, daquela
maneira?
- E as Colônias? - pergunto. - Elas se aproveitaram disso tudo?
- Na época, a metade ao leste da América do Norte estava ainda
pior. Metade de suas terras estava debaixo d'água. Quando o Primeiro Eleitor da
República fechou as fronteiras, o povo de lá ficou sem ter para onde ir, por
isso declarou guerra contra nós. - Anden se apruma. - Depois de tudo isso, o
Primeiro Eleitor se comprometeu a jamais permitir que a República desmoronasse
dessa forma, por isso ele e o Senado concederam aos militares um nível inédito
de poder, que dura até hoje. Meu pai e os Eleitores que o precederam garantiram
que tudo permanecesse dessa forma.
Ele balança a cabeça e esfrega o rosto com as mãos antes de
continuar.
- O objetivo das Provas era incentivar o trabalho duro e o
atletismo, para produzir mais pessoas com qualidades para serem militares, e
isso foi feito. Mas as Provas foram também usadas para extirpar os fracos e os
rebeldes. E, gradativamente, foram também usadas para controlar o excesso de
população.
Os fracos e os rebeldes. Estremeço. Day se encaixava na segunda categoria.
- Isso quer dizer que você sabe o que acontece com as crianças que
são reprovadas na Prova? Eles fizeram isso para reduzir a população?
- Sim. - E hesita antes de prosseguir com a explicação: - No
começo, as Provas faziam sentido. Elas visavam atrair os melhores e mais aptos a
entrarem para as forças armadas. Com o passar do tempo, acabaram sendo
aplicadas em todos os colégios. Mas isso não foi suficiente para meu pai... Ele
queria que só os melhores sobrevivessem. Quaisquer outros eram, sinceramente,
considerados um desperdício de espaço e recursos. Meu pai sempre me dizia que
as Provas eram absolutamente necessárias para que a República prosperasse. E
recebeu muito apoio do Senado ao tornar obrigatórios os exames, especialmente
depois que começamos a vencer mais batalhas graças a eles.
Minhas mãos começam a ficar dormentes. Pergunto baixinho:
-Você acha mesmo que as políticas do seu pai funcionaram?
Anden abaixa a cabeça, tentando encontrar as palavras apropriadas.
- Como posso responder a isso? As políticas do meu pai funcionaram.
As Provas fortaleceram nossas tropas. Mas será que isso classifica
como certo o que ele fez? Penso nisso o tempo todo.
Mordo o lábio, e de repente compreendo a confusão que Anden deve sentir,
porque o amor que sente pelo pai bate de frente com o que ele acredita ser agora
o melhor para a República.
- O certo é relativo, não é? - pergunto.
Anden concorda com a cabeça e acrescenta:
- Sob alguns aspectos, não importa por que tudo começou, ou se alguma
vez foi a coisa certa a fazer. O que importa é que, com o passar do tempo, as
leis evoluíram e se desvirtuaram. As coisas mudaram. A princípio, as crianças
não eram submetidas às Provas, e nem as Provas favoreciam os ricos. As
pragas... - Ele vacila ao pronunciar essas palavras, e depois muda
completamente de assunto. - O povo está zangado, mas o Senado receia mudar
coisas que poderiam fazer com que o governo voltasse a perder o controle de
novo. E, para os senadores, as Provas são uma forma de reforçar o poder da
Repiíblica.
Há uma profunda tristeza no rosto de Anden. Compreendo a vergonha que
ele sente por fazer parte desse legado.
- Lamento - digo em voz baixa.
Sinto o impulso de tocar na mão dele, de poder consolá-lo de
alguma forma.
Os lábios de Anden formam um sorriso hesitante. Vejo claramente seu
desejo, sua perigosa vulnerabilidade, a intensidade com que ele me deseja. Se
alguma vez duvidei disso, agora tenho certeza. Fico rapidamente de costas, na
esperança de que, ao contemplar a paisagem nevada lá fora, possa talvez
amenizar o rubor de meu rosto.
- Diga-me uma coisa... - Ele murmura. - O que você faria se
estivesse no meu lugar? Como Primeira Eleitora da República, qual seria seu primeiro
ato?
- Conquistar o apoio do povo - respondo sem hesitação. - O Senado não
teria nenhum poder sobre você, se a população pudesse ameaçar os senadores com
uma revolução. Você precisa que as pessoas o apoiem, e elas precisam de um
líder.
Anden se acomoda em seu assento; parte da tépida luz do vagão
incide sobre o casaco dele, e delineia seu vulto em dourado. Alguma coisa em
nossa conversa fez brotar uma idéia dentro dele, algo que ele talvez estivesse
acalentando há tempos.
-Você seria uma ótima senadora, June - diz ele. - Seria uma ótima aliada
para seu Primeiro Eleitor, e o povo adora você.
Minha mente começa a rodopiar. Eu poderia ficar aqui na
República, e ajudar Anden. E me tornar senadora quando tivesse idade
suficiente. Reaver minha vida. Deixar Day para trás junto com os Patriotas. Sei
que essa ideia é muito egoísta, mas não consigo abandoná-la. Afinal de
contas, o que há de tão errado em ser egoísta? Reflito amargamente.
Eu poderia contar agora mesmo ao Anden tudo sobre os planos dos Patriotas,
sem me importar se os Patriotas vão ficar sabendo, ou se vão machucar Day por
causa disso, e voltar a viver uma vida segura de uma garota rica, como uma
funcionária da elite do governo. Eu poderia homenagear a memória do meu irmão
ao mudar lentamente o país agindo dentro do sistema. Eu poderia mesmo fazer
isso, não?
Que horror! Ignoro essa fantasia soturna. A ideia de deixar Day para
trás dessa maneira, de traí-lo tão completamente, de nunca mais abraçá-lo, de jamais
voltar a vê-lo me faz cerrar os dentes de tanto sofrimento.
Fecho os olhos por um instante e sinto suas mãos gentis e calejadas,
sua ferocidade apaixonada. Não, eu jamais poderia abandoná-lo. Sei disso agora
com tanta certeza que chego a ficar assustada.
Depois de tudo que sacrificamos, é evidente que merecemos uma vida
- ou alguma coisa - juntos, quando tudo isso acabar. Talvez fugir para as
Colônias, ou reconstruir a República... Anden quer a ajuda de Day; nós podemos
todos trabalhar juntos. Como eu poderia suportar dar as costas a quem
representa para mim uma luz no fim do túnel? Preciso encontrá-lo.
Preciso contar tudo a Day.
Mas não devo me precipitar. Preciso primeiro encontrar a melhor maneira
de contar a verdade a Anden, agora que estamos finalmente sozinhos. Não há
muita coisa que eu possa dizer sem correr o risco de colocar tudo a perder. Se
contar muita coisa, ele pode fazer algo que alerte os Patriotas. Ainda assim,
resolvo fazer um esforço. No mínimo, preciso fazer com que ele confie cegamente
em mim. Preciso que ele me apoie quando eu sabotar os planos dos Patriotas.
-Você confia em mim?
Desta vez, coloco minha mão sobre a dele.
Anden se enrijece, mas não se afasta. Seus olhos examinam o meu rosto,
talvez se perguntando no que estava pensando quando fechei os olhos.
-Talvez eu devesse lhe fazer a mesma pergunta - ele responde, com um
sorriso hesitante.
Nós dois estamos falando sobre duas coisas distintas. Os segredos que
compartilhamos e os que deixamos de compartilhar. Faço um sinal afirmativo com
a cabeça, esperando que ele leve minhas palavras a sério.
- Faça exatamente o que eu disser quando chegarmos a Pierra.
Promete? Exatamente o que eu disser.
Ele inclina a cabeça; suas sobrancelhas estão franzidas,
demonstrando perplexidade. Ele dá de ombros e concorda com a cabeça. Parece compreender
que estou tentando lhe dizer algo, sem dizê-lo em voz alta. Quando chegar a
hora de os Patriotas agirem, espero que Anden se recorde de sua promessa.
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