Capítulo 14 - Day

Eu, Pascao e os outros corredores passamos metade do dia na superfície, depois do ataque ao trem. Amontoados em becos ou em cima de telhados abandonados, driblando os soldados que vasculham as ruas perto da estação. Só quando o sol começa a se pôr, podemos finalmente voltar, um de cada vez, para o quartel subterrâneo dos Patriotas.
Pascao e eu não falamos sobre o que aconteceu perto do trem. Jordan, a tímida corredora com tranças ruivas, pergunta duas vezes se estou bem. Eu apenas encolho os ombros.
Pois é, alguma coisa está errada, sim. Esse é o eufemismo do ano. Quando chegamos ao quartel, todos estão se preparando para partir para Pierra: alguns estão destruindo documentos, enquanto outros estão deletando dados dos computadores. A voz de Pascao é uma distração bem-vinda.
- Bom trabalho, Day - ele diz. Está sentado a uma mesa encostada na parede dos fundos do abrigo. Abre a lateral da jaqueta onde escondeu dúzias de granadas compactas roubadas do trem. Cautelosamente, amontoa cada uma delas em uma caixa abarrotada de engradados vazios de ovos.
- Dá só uma olhadinha. - Ele aponta para um monitor na extremidade à direita da parede dos fundos. Ateia mostra a imagem de uma grande praça da cidade, onde um grupo de pessoas se aglomerou ao redor desta palavra grafitada na lateral de um prédio.
Leio o que o povo grafitou na parede do edifício pelo menos três ou quatro vezes: "Day está vivo!". Os espectadores gritam alegremente, e alguns estão até segurando cartazes feitos à mão com aquela mesma frase escrita neles.
Se não estivesse tão concentrado no paradeiro de Éden, no sinal misterioso de June e na Tess, eu teria me empolgado ao ver o que incitei.
— Obrigado - respondo, talvez de maneira excessivamente ríspida. — Legal eles terem gostado da confusão.
Pascao cantarola alegremente num sussurro, sem tomar conhecimento do meu tom de voz.
- Vá ver se a jordan precisa de ajuda.
Enquanto caminho até o corredor, passo por Tess. Baxter está atrás dela. Levo só um segundo para perceber que ele está tentando passar um braço ao redor do pescoço dela, e falar alguma coisa em seu ouvido. Tess o empurra quando me vê. Estou abrindo a boca para falar com ela quando Baxter me dá um encontrão forte no ombro, forte o bastante para me obrigar a recuar uns dois passos, e fazer meu quepe cair. Meu cabelo se solta.
Baxter dá um risinho de deboche para mim. Atira preta de soldado lhe obscurece a maior parte do rosto.
- Dá um tempo, cara! - ele exclama. - pensando que é dono desse lugar?
Cerro os dentes, mas os olhos arregalados de Tess me detêm. Digo a mim mesmo: Ele não vale a pena.
- Sai logo da minha frente, seu babaca! - digo rispidamente, e dou as costas. Atrás de mim ouço Baxter resmungar algo baixinho, o que basta para eu parar e o encarar de novo. Meus olhos se estreitam.
- Repete o que você disse.
Ele sorri de orelha a orelha, enfia as mãos nos bolsos e levanta o queixo.
- Perguntei se você está com ciúme porque o Primeiro Eleitor está comendo sua garota.
Quase consigo engolir a provocação. Quase. Mas a Tess intervém e empurra Baxter com as duas mãos.
- Deixa Day em paz, falou? Ele teve uma noite difícil.
Baxter grunhe alguma coisa, irritado.
- Você é uma idiota por acreditar nesse adorador da República, garotinha. - ele fala, dando um empurrão na Tess.
Minha ira vem à tona. Nunca fui de briga. Sempre tentei me manter longe delas nas ruas de Lake, mas toda a raiva que estava se acumulando dentro de mim me faz perder a cabeça quando vejo Baxter tocar em Tess.
Eu me arremesso para frente e soco o queixo dele o mais forte que posso. Ele desaba em uma das mesas e depois cai no chão. No mesmo instante, as pessoas próximas explodem em berros e gritos, formando um círculo em volta de nós dois. Antes que Baxter possa ficar de pé, salto em cima dele, e meu punho acerta seu rosto duas vezes.
Ele emite um grunhido. De repente, o peso dele o ajuda a assumir o controle da luta. Ele me empurra com tanta força que me atira na lateral de uma mesa de computador, depois me levanta com um puxão, agarra minha jaqueta e me lança contra a parede. Baxter me ergue do chão, depois solta meu corpo e me dá um soco tão forte no estômago que fico sem ar.
- Você não é um de nós, você do lado deles - ele sibila. - Você se desviou da nossa missão no trem de propósito? - Sinto um joelho atingir a lateral do meu corpo. - Cara, eu vou matar você, seu traidor desgraçado! Vou esfolar você vivo!
Estou furioso demais para sentir a dor. Consigo erguer uma perna e chutá-lo no peito o mais forte possível. Pelo canto do olho reparo que alguns Patriotas estão apostando em quem vencerá essa luta. Um duelo improvisado de Skiz. Por um instante, Baxter me faz lembrar de Thomas, e de repente tudo que vejo é minha antiga rua em Lahe, com Thomas apontando a arma para minha mãe e soldados arrastando John para um jipe que os esperava. Amarrando Éden com tiras numa daquelas maças metálicas de laboratório. Prendendo June. Machucando Tess. Sinto a raiva tingir meus olhos de vermelho. Eu me arremesso de novo contra ele, com um gancho de direita.
Mas Baxter está pronto para mim. Ele golpeia meu braço e joga todo o seu peso contra mim. Minhas costas batem com violência no chão. Baxter dá um largo sorriso, prende meu pescoço com uma da mãos e se prepara para socar meu rosto. Abruptamente, ele me solta. Respiro fundo quando seu corpo pesado sai de cima do meu peito e aperto a cabeça quando sinto começar uma das minhas fortes dores de cabeça. Em algum lugar acima de mim, ouço a voz de Tess, e Pascao gritando para Baxter parar com aquilo.
Todos falam ao mesmo tempo. Um... dois... três. Conto números mentalmente, esperando que esse pequeno exercício tire o foco da dor. Antigamente, era muito mais fácil combater essas enxaquecas. Talvez Baxter tenha batido na minha cabeça, e eu nem tenha me dado conta.
- Você está bem? - As mãos de Tess estão no meu braço, me puxando para eu levantar.
Ainda estou tonto com a dor da minha enxaqueca, mas a raiva passou. De repente sinto meu rosto ardendo, dolorido.
- Estou ótimo - respondo, com voz rouca, examinando o rosto dela. - Ele machucou você?
Baxter me olha furioso de onde Pascao está tentando acalmá-lo. Os que estavam ao nosso redor já voltaram ao que faziam, provavelmente desapontados porque a luta não durou mais tempo. Eu me pergunto quem eles decidiram que foi o vencedor.
- Eu estou legal - responde Tess. Ela passa a mão rapidamente pelo cabelo curto. - Não se preocupe.
- Tess! - Pascao grita. - Veja se o Day precisa de algum curativo. Temos um cronograma a seguir.
Tess me conduz pelo corredor, fora da sala comunitária. Entramos em um dos cômodos do bunker, que foi transformado em um hospital temporário, e fechamos a porta. Estamos rodeados por prateleiras empilhadas até o alto com um sortimento de vidros de comprimidos e caixas de ataduras.
No meio da sala há uma mesa, que só deixa um pequeno espaço para as pessoas se movimentarem. Eu me acomodo na mesa enquanto Tess enrola as mangas. Ela pergunta:
- Você está com dor em algum lugar?
- Estou ótimo - repito, mas no momento em que digo isso, estremeço e seguro o lado do corpo -, isto é, talvez eu esteja meio estropiado.
- Deixa eu ver - Tess diz, firmemente. Ela põe minha mão de lado e desabotoa minha camisa. Tess já me viu sem camisa antes (já perdi a conta de quantas vezes ela fez curativos em mim), mas agora há um visível constrangimento entre nós. Suas bochechas ficam quase vermelhas quando ela passa a mão no meu peito e depois no estômago, e apalpa as laterais do meu corpo.
Respiro fundo quando ela toca num local sensível.
- Foi bem aí que o joelho dele me atingiu.
Tess analisa meu rosto.
- Está com vontade de vomitar?
- Não.
- Você não devia ter feito aquilo - ela diz, enquanto age. - Diga "aa!" - Abro a boca. Ela toca o meu nariz com um lenço de papel, inspeciona minhas orelhas, e depois sai rapidamente.
Volta alguns segundos depois com uma bolsa de gelo.
- Coloque isto aqui no local que está doendo.
Faço o que ela me diz.
- Você se tornou uma profissional.
- Aprendi muito com os Patriotas.
Quando ela termina de examinar meu peito para finalmente olhar nos meus olhos, ela sustenta meu olhar com o dela.
- O Baxter não gosta da sua... atração por uma garota ex-militar da República - resmunga ela. - Mas não deixe que ele mexa com você daquele jeito, tá bem? Não faz sentido morrer por bobagem.
Lembro o braço de Baxter ao redor do pescoço de Tess; perco a calma de novo, e subitamente sinto necessidade de proteger Tess da maneira como fazia quando vivíamos nas ruas.
- Ei, amiga! - digo suavemente. - Mil desculpas pelo que eu disse. Sobre... você sabe.
Tess enrubesce ainda mais.
Luto para encontrar as palavras certas.
- Você não precisa que eu tome conta de você - digo, com um riso constrangido, e toco no nariz dela com a ponta do dedo. - Isto é, você já deve ter se preocupado comigo umas mil vezes. Sempre precisei mais da sua ajuda do que você da minha.
Tess se aproxima de mim e baixa os olhos timidamente; esse gesto me faz esquecer meus problemas. Às vezes, esqueço como é legal a dedicação constante de Tess; ela é uma rocha na qual posso me apoiar, mesmo nas horas mais difíceis. Embora nossos dias em Lake tenham sido uma constante luta por sobrevivência, hoje eles parecem tão mais simples. Desejo poder voltar àquele tempo, dividindo migalhas de comida e qualquer outra coisa que conseguíssemos encontrar. Se june estivesse aqui, o que teria acontecido? Ela provavelmente também teria atacado Baxter, e se saído muito melhor do que eu, em todas as outras coisas também. Ela não teria precisado de mim.
A mão de Tess permanece no meu peito, embora ela já não esteja procurando ferimentos. Eu me dou conta de como ela está perto. Seus olhos grandes e castanhos vagueiam até encontrar os meus. Ao contrário dos de June, são muito fáceis de interpretar. A imagem de June beijando o Primeiro Eleitor volta a surgir na minha cabeça, o que faz meu estômago se contorcer.
Antes que eu possa pensar sobre outra coisa, Tess se inclina e comprime os lábios contra os meus. Minha mente fica vazia, completamente atônita. Um rápido frêmito percorre meu corpo.
Entorpecido, deixo que ela continue.
Depois, eu me afasto bruscamente. Minhas mãos suam frio. Que foi aquilo? Eu devia ter imaginado que isso aconteceria, e deveria ter impedido Tess imediatamente. Ponho as mãos nos ombros dela. Quando vejo a mágoa que seus olhos expressam, compreendo o tamanho do meu erro.
- Não posso, Tess.
- Por quê? Você está casado com a June, por acaso?
- Não, mas é que... - Minhas palavras hesitam, tristes e impotentes. - Desculpe, eu não devia ter feito isso, pelo menos, não agora.
- O que você me diz do fato de June estar beijando o Primeiro Eleitor? O que você acha disso? Você vai mesmo ser fiel a uma pessoa que nem sua é?
June, sempre June. Eu a odeio por um instante, e me pergunto se tudo teria sido melhor se nós nunca tivéssemos nos conhecido.
- Isso não tem nada a ver com a June. Ela está apenas desempenhando um papel, Tess - afasto-me até estarmos a um palmo de distância um do outro. - Ainda não consegui entender direito esse lance que está rolando entre a gente. Você é minha melhor amiga; não quero enganar você quando nem eu sei o que estou fazendo.
Tess ergue as mãos, indignada.
- Você sai beijando qualquer garota da rua sem pensar duas vezes, mas quando é comigo...
- Você não é qualquer garota da rua - retruco. - Você é a Tess.
Seu olhar reluz de tanta raiva, e ela expressa sua frustração mordendo o lábio com tanta força que sangra.
- Eu não entendo você, Day. - Todas as palavras me atingem com força calculada. - Eu não entendo mesmo, mas, mesmo assim, vou tentar ajudá-lo. Você não percebe mesmo como a sua preciosa June mudou sua vida?
Fecho os olhos e pressiono as duas mãos nas têmporas.
- Pare.
-Você acha que está apaixonado por uma garota que conhece há menos de um mês, uma garota que... que é responsável pela morte da sua mãe e pela morte de John?
Ecos do que ela disse no meu quarto.
- Que droga, Tess! Não foi culpa dela...
- Não foi? - diz Tess, irada. - Day, atiraram na sua mãe por causa da June! E você age como se a amasse? Eu sempre ajudei você, tenho estado ao seu lado desde que nos conhecemos. Você acha que estou sendo infantil? Bem, não estou nem aí. Eu nunca disse uma palavra sobre as outras garotas com quem você andava, mas não posso agüentar ver você escolher uma garota que só faz magoar você. A June alguma vez sequer pediu desculpas pelo que aconteceu, ela precisou se esforçar para ter o seu perdão? Qual é o seu problema, cara?
Em resposta ao meu silêncio, ela põe a mão no meu braço e fala com mais calma agora.
- Você a ama? Ela ama você?
Se eu a amo? Eu disse isso a ela naquele banheiro em Vegas, e fui sincero. Ela não disse que me amava também. Talvez ela nunca tenha sentido o mesmo que eu; se duvidar, só estou me iludindo.
- Eu não sei, tá satisfeita? - minhas palavras soam mais raivosas do que o necessário.
Tess está tremendo. Ela faz um sinal afirmativo com a cabeça, silenciosamente tira a bolsa de gelo da lateral do meu corpo e abotoa minha camisa.
O abismo entre nós aumenta. Eu me pergunto se algum dia vou conseguir alcançar o outro lado novamente.
- Você não tem nada grave - afirma num tom monótono ao virar as costas para mim. Para em frente à porta e, ainda de costas, diz: - Confie em mim, Day. Estou falando isso para o seu bem. June ainda vai partir seu coração. Ela vai despedaçar você em um milhão de pedaços.

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