Capítulo 15 - June
TRIBUNAL DE OLAN, EM PIERRA
EM TORNO DE 9H.
2 °C DO LADO DE FORA.
Finalmente chegou o dia do assassinato de Anden, e tenho três
horas antes de os Patriotas agirem.
Na noite da véspera, recebi mais uma visita daquela soldado que me
dera a mensagem anterior dos Patriotas. Estou deitada, sem conseguir pregar o
olho, e ela sussurra no meu ouvido:
- Bom trabalho. Amanhã você vai ser perdoada pelo Eleitor e os senadores,
e eles vão libertá-la no Tribunal de Olan, em Pierra. Agora, preste atenção:
quando tudo tiver terminado no tribunal, os jipes do Primeiro Eleitor levarão
todos vocês até as instalações militares de Pierra.
Os Patriotas estarão esperando ao longo dessa rota.
A militar parou, para ver se eu tinha alguma pergunta, mas
continuei olhando direto para frente. De qualquer forma, sei exatamente o que
os Patriotas querem que eu faça: que separe Anden de seus guardas. Quando ele
estiver praticamente sozinho, os Patriotas o arrastarão para fora do seu jipe e
o matarão a tiros. Vão filmar e gravar o episódio, e depois divulgá-lo para a
República inteira, usando os alto-falantes e os telões sabotados da Capital
Tower, em Denver.
Como eu não disse nada, a soldado pigarreou e continuou, com voz
apressada.
- Fique atenta para uma explosão na rodovia. Quando você a
escutar, faça com que Anden mande seu comboio tomar outro caminho. Certifique-se
de separar o Primeiro Eleitor dos guardas dele; diga-lhe para confiar em você.
Se você tiver feito seu trabalho direito, ele vai seguir suas orientações. - A
moça deu um breve sorriso. - Quando Anden estiver separado dos outros jipes, o
resto é por nossa conta.
Passei o resto da noite pensando em mil coisas ao mesmo tempo.
Agora, enquanto sou levada para o edifício do tribunal de justiça,
examino os topos dos telhados e os becos dos outros prédios na rua, prestando atenção
nos olhos dos Patriotas, perguntando-me se dois deles são azuis brilhantes. Day
deve estar entre os Patriotas que se encontram aqui hoje. Dentro das minhas
luvas pretas, minhas mãos estão suando frio.
Mesmo que ele tenha visto meu sinal, será que entendeu o que eu
quis dizer? Saberá que precisa largar o que está fazendo e fugir?
A medida que me dirijo à grande entrada em arco da sala do
tribunal, memorizo, por puro hábito, os nomes das ruas e dos locais: onde fica
a principal base militar, onde o hospital de Pierra surge à distância. Acho que
posso perceber os Patriotas se posicionando. Há uma imobilidade no ar, muito
embora os edifícios estejam abarrotados de gente, e as ruas sejam estreitas;
soldados e civis - a maioria deles pobre, e designada para atender às tropas -
movem-se nas ruas, afobados. Alguns dos soldados uniformizados ficam olhando
para nós mais do que o necessário. Eu os observo cuidadosamente. Deve haver
Patriotas nos vigiando. Mesmo dentro do edifício, está frio o bastante para
minha respiração formar pequenas nuvens, e tremo sem parar. (O pé-direito tem
pelo menos seis metros de altura, e os pisos são de madeira sintética
envernizada - a julgar pelo som das botas sobre eles. Esse material não
favorece a retenção de calor no inverno.)
- Isso vai demorar muito tempo? - pergunto a uma dos guardas, quando
sou escoltada até meu assento na frente da sala do tribunal.
Minhas botas - quentes, de couro à prova d'água - ecoam
ruidosamente no piso. Estremeço, apesar do casaco transpassado.
A guarda com quem falei acena negativamente, constrangida.
- Creio que não, Srta. Iparis - ela responde, com uma gentileza estudada.
- O Eleitor e os senadores estão nas deliberações finais. Provavelmente deve
demorar pelo menos mais meia hora.
Isso é muito interessante. Como o próprio Eleitor vai me perdoar hoje,
os guardas não sabem direito como se comportar. Escoltar-me como uma criminosa?
Ou tratar-me com deferência, como se eu fosse uma agente de alta patente de uma
das patrulhas da capital?
A espera se arrasta. Eu estou meio tonta. Deram-me um remédio depois
que finalmente comentei com Anden sobre meus sintomas, um H o d l . f i pouco
mais cedo, mas não ajudou muito. Minha cabeça continua quente, e estou com
dificuldade para contar o tempo mentalmente.
Afinal, quando contei 26 minutos (talvez com margem de erro de três
ou quatro segundos), Anden aparece vindo das portas na extremidade da sala, com
um grupo de autoridades atrás dele. É evidente que nem todos estão felizes;
alguns senadores mostram relutância, com as bocas repuxadas em linhas finas.
Reconheço o senador Kamion entre eles, o homem com quem Anden havia discutido
no trem a caminho daqui. Seu cabelo grisalho está desgrenhado. Vejo também a
senadora O'Connor, de quem me lembro por aparecer em algumas manchetes, gorda,
com cabelo ruivo e ralo, e boca semelhante ã de um sapo. Não conheço os demais.
Além dos senadores, dois jovens jornalistas ladeiam Anden. Um está com a cabeça
baixa, teclando freneticamente num notepad, enquanto o segundo se esforça para
manter seu gravador perto o bastante de Anden.
Levanto-me quando eles se aproximam de mim. Os senadores que estavam
discutindo entre si ficam em silêncio. Anden faz um sinal com a cabeça para
meus guardas e declara:
- June Iparis, o Congresso a perdoou por todos os crimes contra a República,
sob a condição de que a senhorita continue a servir à sua nação de acordo com o
melhor de sua capacidade. Temos um acordo, Srta. Iparis?
Faço um sinal positivo com a cabeça. Mesmo esse pequeno movimento me
deixa tonta.
- Sim, senhor Primeiro Eleitor.
O jornalista ao lado de Anden tecla rapidamente nossas palavras. A
tela de seu notepad bruxuleia sob os dedos velozes. Anden percebe minha
indiferença. Compreende que meu estado de saúde não melhorou.
- Meus senadores me informaram que a senhorita vai precisar se
submeter a um período probatório, durante o qual será atentamente vigiada,
até todos nós podermos concordar que está pronta para retornar ao serviço. A
senhorita será designada para as patrulhas da capital. Vamos discutir a
patrulha para a qual a senhorita será designada, depois que nos acomodarmos na
base de Pierra hoje à tarde. - Ele ergue as sobrancelhas e se vira para a
direita e a esquerda. - Algum comentário, senadores?
Eles permanecem calados. Um deles finalmente fala, com um mal disfarçado
sorriso de escárnio.
- Compreenda que a senhorita ainda não está livre de suspeita, agente
Iparis. Será vigiada de perto. A senhorita deve considerar nossa decisão um ato
de enorme piedade.
- Obrigada, Primeiro Eleitor - respondo, fazendo-lhe uma breve
continência.
- Obrigada, senadores.
- Obrigada à senhorita por toda sua ajuda - diz Anden, com
uma sutil mesura. - Mantenho a cabeça baixa, para não ter de encontrar o olhar dele,
e ver o duplo significado de suas palavras: ele está me agradecendo pela ajuda
que eu supostamente lhe prestei, e pela ajuda que deseja de Day e de mim.
Em algum lugar lá fora, Day está posicionado com os outros. Esse pensamento
me deixa nauseada de ansiedade.
Os soldados começam a escoltar nosso grupo de volta à frente da sala
de conferências, e em direção a nossos respectivos carros. Dou cada passo
devagar e com cuidado, esforçando-me para manter o foco. Não é hora de falhar
por causa de doença. Mantenho os olhos na entrada do salão. Desde nossa viagem
de trem, essa é a única das idéias que tive quepode dar certo. Algo que irá
atrapalhar o timing dos Patriotas, uma coisa que evitará que sigamos para a
base militar de Pierra.
Espero que dê certo. Não posso me dar o luxo de cometer erros. Faltando
uns três metros para chegar às portas, tropeço. No mesmo instante me aprumo e
continuo a andar, porém tropeço mais uma vez.
Ouço murmúrios dos senadores atrás de mim.
- Qual é o problema?
Anden aparece; seu rosto paira sobre mim. Dois de seus guardas pulam
à sua frente, e uma deles diz:
- Senhor Primeiro Eleitor, por favor, recue. Nós nos encarregamos do
problema.
- O que aconteceu? - Anden pergunta primeiro aos soldados, e depois
a mim - A senhorita está ferida?
Não é muito difícil fingir que vou desmaiar. O mundo ao meu redor desvanece,
e depois se anima de novo. Minha cabeça dói. Levanto a cabeça, olho para Anden
e me deixo cair no chão.
Ouço exclamações atônitas à minha volta. Depois meus ouvidos se aguçam
quando escuto Anden acima delas todas, dizendo exatamente o que eu esperava que
ele dissesse.
- Levem-na para o hospital. Imediatamente.
Ele se lembrou do meu último conselho, o que eu lhe disse no trem.
- Mas, senhor Primeiro Eleitor... - protesta a mesma guarda que
havia interferido segundos antes.
A voz de Anden assume um tom gélido.
- Está questionando minhas ordens, soldado?
Mãos fortes me ajudam a ficar de pé novamente. Atravessamos as portas
e saímos para a luz da manhã nublada. Entrecerro os olhos e examino-os
arredores, sempre procurando rostos desconfiados. Os guardas me carregando
seriam Patriotas disfarçados?
Olho de relance para eles, mas suas expressões estão completamente
impassíveis. A adrenalina percorre meu corpo: já tomei uma atitude.
Os Patriotas sabem que me desviei do plano, mas não sabem se o fiz
intencionalmente. O importante é que o hospital fica em um local oposto ao que
leva à base de Pierra, onde nos espreitam os Patriotas. Anden vai me seguir. Os
Patriotas não terão tempo de reajustar suas posições.
E se os outros Patriotas tomarem conhecimento disso, Day também tomará.
Fecho os olhos, e espero que ele chegue ao fim sem fraquejar. Tento mandar-lhe
uma mensagem silenciosa. Fuja! Quando você souber que me desviei do
plano, corra o mais rápido possível.
Um guarda me levanta e me coloca no assento traseiro de um dos jipes
que estão à espera. Anden e seus soldados entram no jipe à nossa frente. Os
senadores, perplexos e indignados, dirigem-se para seus carros oficiais.
Preciso me obrigar a não sorrir quando sento, displicente, espiando pelas
janelas. O jipe sai com uma arrancada. Através do para-brisa, vejo o jipe de
Anden se afastando do tribunal.
Então, no momento em que começo a me parabenizar pela brilhante execução
do meu plano, reparo que os jipes continuam a se dirigir para a base. Não estão
indo para o hospital. Minha alegria temporária desaparece e é substituída pelo
medo.
Um dos guardas também nota sentido que os jipes tomaram, e vira-se
irritado para o soldado que está dirigindo.
- Ei, motorista! Este caminho está errado. O hospital fica no lado
esquerdo da cidade. - Ele suspira. - Alguém me coloque em contato com o
motorista do Primeiro Eleitor. Nós...
O motorista o ignora e comprime uma das mãos fortes e nodosas no ouvido
para escutar melhor, depois olha de relance para nós, no banco traseiro, com
desagrado.
- Negativo. Acabamos de receber ordens para manter o trajeto
original.
O Comandante DeSoto disse que o Primeiro Eleitor quer que a Srta. Iparis
seja levada ao hospital depois.
Fico gelada. Razor deve estar mentindo para o motorista de Anden. Duvido
seriamente que Anden desse essa ordem a seus motoristas. Razor vai adiante com
o plano; ele vai nos obrigar, de qualquer maneira, a percorrer o caminho
pretendido.
Não importa a razão: continuamos a nos dirigir direto para a base
de Pierra, isto é, direto para as garras dos Patriotas.
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