Capítulo 16 - Day

Finalmente chegou o dia do assassinato do Eleitor. Ele chega como um furacão avassalador de mudanças, prometendo tudo que estou prevendo e temendo. Prevendo: a morte do Eleitor. Temendo: o sinal de June.
Ou talvez seja ao contrário.
Ainda não sei o que interpretar daquele sinal. Isso me deixa nervoso; se fosse de outra maneira, eu sentiria apenas uma sensação crescente de entusiasmo. Bato, inquieto, no cabo da minha faca. Tenha cuidado, June. Esse é o único pensamento seguro que tenho na cabeça. Tenha cuidado: pelo seu bem, e pelo nosso.
Estou empoleirado precariamente na beira de um parapeito em ruínas, numa antiga fachada de um edifício, a quatro andares de altura, e oculto da rua, com duas granadas e uma arma enfiada com segurança no cinto.
Como os demais Patriotas, visto uma jaqueta preta da República, de modo que, à distância, pareço um soldado da República. Uma tira preta se estende mais uma vez de um lado a outro dos meus olhos. A única coisa que nos diferencia é uma faixa branca nos braços esquerdos (ao invés de nos direitos). Daqui, posso ver os trilhos de trem que passam ao longo de uma rua próxima, dividindo Pierra pela metade. À minha direita, num pequeno beco a três prédios de distância, fica a entrada para o túnel dos Patriotas em Pierra. Seu bunker subterrâneo está vazio agora. Estou sozinho neste prédio abandonado, embora tenha certeza de que Pascao pode me ver do seu ponto de observação num telhado do outro lado da rua. O ruído surdo do meu coração contra minhas costelas pode provavelmente ser ouvido a quilômetros de distância.
Pela centésima vez, começo a pensar sobre por que June quer impedir o assassinato. Terá descoberto alguma coisa que os Patriotas estão escondendo de mim? Ou será que fez o que Tess antecipou e nos traiu? Livro-me desse pensamento obstinadamente. June jamais faria isso, não depois do que a República fez com o irmão dela.
Talvez June queira impedir o assassinato porque está se apaixonando pelo Eleitor. Fecho os olhos, e a imagem dos dois se beijando me inflama a mente. Impossível. Será que a June que eu conheço é tão sentimental assim?
Todos os Patriotas estão em posição - os corredores no telhado, equilibrando explosivos; os hackers a um prédio de distância da entrada do túnel, prontos para filmar e transmitir o assassinato do Eleitor; há combatentes posicionados na extensão da rua abaixo de nós, em indumentária de soldado ou civil, preparados para atacar os guardas do Eleitor. Tess e alguns médicos estão espalhados, prontos para levar os feridos para o túnel. Tess, especificamente, está escondida na viela que beira a lateral esquerda do meu edifício. Após o assassinato, vamos precisar estar prontos para fugir, e ela vai ser a primeira que vou levar.
E eu, como fico nessa história? De acordo com o plano, June deve afastar o Eleitor da proteção de seus guardas. Quando virmos só seu jipe passar velozmente, os corredores vão eliminar com explosões suas rotas de fuga.
Nessa hora eu vou para a rua. Depois que os Patriotas arrastarem Anden para fora do veículo, atirarei nele.
Estamos no meio da tarde, mas as nuvens fazem com que o mundo ao meu redor seja de um cinzento frio e agourento. Olho para meu relógio. Está programado para tocar na hora em que os jipes do Eleitor devem dobrar zunindo a esquina.
Faltam quinze minutos para o espetáculo começar.
Estou tremendo. Será que eu mesmo vou matar o Eleitor daqui a quinze minutos? Será que esse plano vai funcionar? Depois que tudo terminar, quando é que os Patriotas vão me ajudar a encontrar e resgatar Éden?
Quando contei a Razor sobre o menino que vi a bordo do trem, ele me deu uma resposta solidária, e disse que já está tomando providências para rastrear Éden. Tudo que posso fazer é acreditar nele. Tento visualizar a República sufocada por um completo caos, com o assassinato do Eleitor sendo transmitido para o povo em todos os telões da nação. Se o povo já está se amotinando, só posso imaginar como vai reagir quando me vir atirando no Eleitor. O que acontecerá? Talvez as Colônias se aproveitem da situação e invadam subitamente a República e a frente de batalha que manteve os dois lados separados por tanto tempo.
Um novo governo. Um novo comando. Estremeço, com energia mal contida. Nada disso explica o sinal da June, no entanto. Tento flexionar os dedos; minhas mãos estão pegajosas com um suor frio. Não tenho a menor idéia do que vai acontecer hoje.
A estática faz um zunido no meu fone de ouvido, e capto algumas palavras soltas ditas por Pascao.
-... ruas Orange e Echo... vazias. - Sua voz se eleva: - Day?
- Estou aqui.
- Quinze minutos - ele diz. - Recapitulando. Jordan vai detonar a primeira explosão. Quando a caravana com os jipes do Eleitor passar pela rua dela, ela vai detonar a granada dela. june vai separar o jipe do Eleitor dos outros. Aí eu jogo a minha granada, e os jipes seguirão na sua direção. Você joga a sua quando vir a caravana. Encurrale aquele jipe, e se atire no chão.
Entendido?
- Entendido - respondo. - Agora se manda rápido e vai logo para sua posição.
Esperar aqui me enjoa o estômago, pois me remete àquela noite em que 199 fiquei esperando que as patrulhas contra a praga aparecessem na porta da casa da minha mãe. Até aquela noite parece melhor que a de hoje. Naquela época, minha família ainda estava viva, e Tess e eu ainda nos entendíamos bem. Respiro profundamente diversas vezes, e solto o ar devagar. Em menos de quinze minutos vou ver a caravana do Eleitor - e June - passar por esta rua. Meus dedos roçam o topo das granadas no meu cinto.
Passa-se um minuto, depois outro.
Três minutos. Quatro minutos. Cinco minutos. Cada minuto se arrasta mais lentamente que o anterior. Minha respiração se acelera. O que será que June vai fazer? Será que ela está certa? E se ela estiver enganada? Acho que estou pronto para matar o Eleitor - há dias tento me convencer disso, o que tem até me empolgado. Será que conseguiria salvar a vida dele, a vida de uma pessoa na qual não consigo pensar sem ficar enfurecido? Estou mesmo preparado para ter o sangue dele em minhas mãos? O que será que June sabe que eu não sei? O que será que descobriu para querer salvar a vida dele.
Oito minutos.
A voz de Pascao aciona o microfone.
- Atenção. Temos um atraso.
Isso me deixa tenso.
- Por quê? - pergunto.
Ele demora a responde.
- Tem alguma coisa errada com a June. Ela desmaiou ao sair do tribunal. Mas não se apavore; Razor disse que ela está ótima. Vamos reajustar os relógios para um atraso de dois minutos, compreendido?
Estou agachado, e me levanto um pouco. Ela está em ação. Sei disso instantaneamente. Alguma coisa se agita no fundo da minha mente, um sexto sentido me dizendo que os pianos para o Eleitor podem mudar, dependendo do que June fizer em seguida.
- Por que ela desmaiou? - pergunto.
- Sei lá. Os batedores disseram que ela ficou tonta, uma coisa assim.
- Então, ela já voltou ao normal?
- Parece que temos sinal verde.
"Sinal verde?" Será que o plano de June não deu certo? Eu me levanto, dou alguns passos, e volto a me agachar. Há alguma coisa errada. Se vamos adiante com o plano, isso quer dizer que ela vai passar por aqui, segundo esperado, mesmo contra sua vontade? Será que os Patriotas vão ficar sabendo que ela tentou desviar a rota? Um mau pressentimento se recusa a ir embora, independentemente do meu esforço em ignorá-lo. Alguma coisa realmente não está se encaixando.
Passam-se dois agonizantes minutos. Na minha ansiedade, descasquei uma boa parte de tinta do cabo da minha faca. Meu polegar está coberto de lascas pretas.
A várias ruas de distância, a primeira granada explode. O solo treme, o edifício estremece, e uma nuvem de poeira cai do teto. Os jipes do Eleitor devem ter aparecido.
Deixo meu posto de observação no parapeito, e me dirijo para o poço da escada e depois até o telhado. Mantenho-me abaixado, tomando cuidado para permanecer invisível. Daqui tenho uma vista melhor de onde está subindo a fumaça da primeira explosão, e dá para ouvir os gritos assustados dos soldados próximos a ela. Eles estão a cerca de três quarteirões de distância. Eu me achato em cima das telhas quebradas quando vários guardas vêm correndo pela rua. Estão gritando algo incompreensível; aposto que estão trazendo reforços para a área do bombardeio. Tarde demais. Quando chegarem aqui, o jipe do Eleitor já terá dobrado a esquina que queríamos que dobrasse.
Pego uma das minhas granadas e a seguro cautelosamente, repassando em minha cabeça seu funcionamento, ciente de que, se eu a atirar, estarei contrariando a advertência de June. "É uma granada de impacto" – Pascao explicou. - "Ela explode no segundo em que atinge o aluo. Pressione a alavanca de ataque, puxe o pino, atire, e se prepare". À distância, mais uma explosão sacode as ruas, acompanhada por uma nuvem de poeira. Baxter era o encarregado dessa; agora deve estar em algum lugar no chão, escondido num beco.
A duas quadras daqui, o Eleitor está se aproximando.
Ocorre uma terceira explosão. Essa foi muito mais perto, o jipe deve estar a apenas um quarteirão daqui. Eu me aprumo quando o chão treme com o impacto. Está chegando minha vez. June, onde você está? Se ela agir de repente, o que eu farei? No meu fone de ouvido, Pascao soa urgente:
- Preparar!
E então vejo uma coisa que me faz esquecer tudo que prometi fazer pelos Patriotas. A porta do segundo jipe se abre de súbito, e dela sai uma garota com um rabo de cavalo comprido escuro. Ela tropeça algumas vezes, depois faz um esforço, e se levanta. Olha para os telhados e movimenta a
mão freneticamente no ar.
É June. Ela está aqui, e agora não há dúvida de que ela não quer que eu separe o Eleitor dos seus guardas.
A voz de Pascao se faz ouvir de novo:
- Fique firme, ignore a June; mantenha o rumo, está entendendo?
Não sei o que acontece comigo: uma eletricidade me percorre a espinha. Não, June, você não pode parar agora - diz uma parte de mim. Quero o Eleitor morto. Quero salvar meu irmão.
Mas lá está June, acenando os braços no meio de uma rua muito perigosa, arriscando a vida para acionar o alarme para mim. Seja qual for sua razão, deve ser boa. Deve ser. O que eu faço? Confie nela, é o que me diz alguma coisa dentro de mim. Aperto os olhos para fechá-los, e inclino a cabeça. Cada segundo agora é uma ponte entre a vida e a morte. Confie nela.
De repente, dou um pulo e corro pelo telhado. Pascao grita alguma coisa raivosa no fone de ouvido. Eu o ignoro. Quando os veículos passam perto do edifício onde estou, puxo o pino da minha granada e a arremesso o mais longe que posso, bem no local onde os Patriotas pretendiam encurralar o carro do Primeiro Eleitor.
- Day! - berra a voz frenética de Pascao. - O que você está...
A granada atinge a rua. Cubro os olhos e no mesmo instante perco o equilíbrio, quando a explosão estremece o solo. O jipe freia com um ruído semelhante a um guincho bem em frente à explosão - o jipe do Eleitor tenta desviar dos fragmentos da granada, mas um dos pneus fura e o força a parar.
Bloqueei completamente a rua que os Patriotas queriam que o comboio percorresse. E os outros jipes do Eleitor continuam lá, a caravana inteira.
Agora june corre em direção ao veículo do Eleitor. Se ela está tentando salvá-lo, não tenho tempo a perder. Em um pulo, fico de pé novamente, giro o corpo para a lateral do prédio, e me agarro à calha na beira do edifício.
Em seguida, deslizo para baixo. A calha arrebenta e me desequilibra, mas me arremesso para fora e agarro a beira de um parapeito próximo.
Meus pés tocam o peitoril do segundo andar. Salto para o primeiro andar e giro o corpo.
A rua é um completo caos. Através dos gritos e da fumaça, consigo ver soldados da República correndo para os jipes, enquanto os soldados nos outros jipes se apressam a chegar ao Eleitor. Alguns dos Patriotas disfarçados hesitam, confusos com minha explosão mal cronometrada. Agora é tarde demais para separar o jipe do Eleitor dos demais. Há soldados demais no local.
Estou entorpecido. Sob certos aspectos, tão atônito quanto eles. Ainda não sei bem por que estou fazendo exatamente o contrário do que planejei.
-Tess! - grito. Ela está exatamente onde se espera que esteja – paralisada nas sombras do meu prédio. Chego até ela e a agarro pelos ombros.
- O que está acontecendo? - ela também grita, mas eu apenas a faço girar o corpo na direção oposta ao tumulto.
- Vá para a entrada do túnel, entendeu? Não faça perguntas!
Aponto para a direção do bunker dos Patriotas, onde deveríamos nos esconder depois do assassinato. Tess está boquiaberta de pavor, mas faz o que digo, corre para a segurança das sombras do prédio, e desaparece de vista.
Mais uma explosão abala a rua atrás de mim. A granada deve ter sido atirada por outro corredor. Apesar de estar claro que eles não vão conseguir levar o Eleitor para o local planejado, estão tentando bloquear os jipes, para fazer uma barricada. Os Patriotas devem estar correndo como baratas tontas em tudo que é lugar. Eles vão literalmente me matar pelo que fiz. Tess e eu precisamos chegar ao túnel antes que nos encontrem.
Corro até June logo que ela alcança o jipe do Eleitor. Lá dentro está um homem de cabelo escuro ondulado, e ela grita para ele, enquanto as mãos pressionam a janela do veículo. Outra explosão acontece em algum lugar, obrigando June a ficar de joelhos. Eu me atiro em cima dela quando uma chuva de escombros e fragmentos nos atinge, de todas as direções. Um bloco de cimento atinge meu ombro, o que me faz estremecer de dor. Os Patriotas estão realmente tentando recuperar o tempo perdido, mas o atraso já lhes custou caro. Se eles se desesperarem, sei que vão simplesmente ignorar o plano de executar a tiros o Eleitor na frente das câmeras, e explodirão o jipe do Eleitor em vez disso. Tropas de soldados da República estão chegando à rua. Tenho certeza de que já me viram. Espero que Tess esteja a salvo no esconderijo. 203
- June!
Ela parece tonta e perplexa, mas me reconhece. Não há tempo para cumprimentos.
Uma bala zune acima de nossas cabeças. Eu me esquivo e uso o corpo como um escudo para proteger June; um dos soldados perto de nós é atingido por um tiro na perna. Por favor, pelo amor de..., por favor, permita que Tess chegue em segurança à entrada do túnel. Giro então o corpo e me deparo com os olhos arregalados do Eleitor através da janela. Então é esse o sujeito que beijou a June! Ele é alto, bonito e rico, e vai apoiar todas as leis do pai. O rei menino que simboliza tudo o que a República é: a guerra contra as Colônias que transformou Éden em um rato de laboratório, as leis que levaram minha família para as favelas e a matou, as leis que decretaram minha execução porque fui reprovado em um maldito teste quando eu tinha dez anos. Esse cara é a República. Eu devia matá-lo agora quando tenho a chance.
Mas aí penso em June. Se ela sabe a razão pela qual devemos protegê-lo dos Patriotas, e acredita nisso o bastante para arriscar sua vida - e a minha - vou confiar nela. Se me recusasse, estaria rompendo meus vínculos com ela para sempre. Eu poderia viver com isso? Esse pensamento faz até meus ossos gelarem. Aponto a rua onde houve a explosão, e faço uma coisa que nunca pensei que faria na minha vida. Berro o mais alto que posso para os soldados: Recuem os jipes! Obstruam a rua com barricadas! Protejam o Eleitor!
E então, à medida que outros soldados chegam onde o Eleitor está, grito freneticamente para eles:
- Tirem o Eleitor do jipe! Levem-no para longe daqui! Eles vão explodir o veículo!
June nos puxa para baixo quando mais uma bala atinge o chão perto de nós.
- Venha! - eu grito. Ela me segue. Atrás de nós, dezenas de soldados da República chegaram ao local. Vemos de relance o Eleitor sair do jipe e ser levado às pressas, sob a proteção dos seus soldados. Balas voam por todos os lados. Será que acabei de ver uma delas atingir o Eleitor no peito? Não, ela acertou a parte superior do braço dele. O militar desaparece, perdido num mar de soldados.
Ele está salvo. Ele vai sobreviver. Mal consigo respirar. Não sei se devo ficar feliz ou furioso. Depois de toda aquela maquinação, o assassinato do Eleitor fracassou por minha causa e de June.
O que foi que eu fiz?
- Olha lá o Day! - grita alguém. - Ele está vivo!
Não me atrevo a girar o corpo de novo. Aperto mais a mão de June, e corremos, tentando nos desviar dos cascalhos e da fumaça. Então nos deparamos com nosso primeiro Patriota, Baxter. Ele se detém ao nos ver, e agarra o braço de June, vociferando:
- É você, sua infeliz!
Ocorre que ela é mais ágil que ele. Antes que eu consiga sacar a arma da minha cintura, June já se livrou dele. Ele tenta nos agarrar de novo, mas alguém o faz se esborrachar com o rosto no chão, antes que possamos fazer qualquer coisa; dou de cara com os olhos flamejantes de Kaede.
Ela agita as mãos furiosamente em nossa direção e berra.
- Escondam-se e fiquem em segurança, antes que os outros encontrem vocês!
Seu rosto expressa choque profundo: estará atônita porque o plano fracassou? Será que sabe o que fizemos? Deve saber. Por que ela também está contra os Patriotas? Ela foge correndo. Meus olhos a seguem por um instante. E claro que Anden não está à vista, e os soldados da República já começaram a revidar os tiros vindos dos telhados.
Anden não está à vista, penso mais uma vez. Terá a tentativa de assassinato falhado oficialmente?
Continuamos correndo até chegarmos ao outro lado da explosão. De repente, aparecem Patriotas em todos os lugares; alguns estão correndo na direção dos soldados e procurando uma forma de atirar no Eleitor, e outros estão fugindo para o túnel. Correndo atrás de nós.
Mais uma explosão sacode a rua: alguém tentou em vão deter o Eleitor com outra granada. Talvez tenham finalmente conseguido explodir o jipe em que ele se encontrava. Onde estará Razor? Visualizo seu rosto calmo e paternal transformado pela ira.
Chegamos finalmente ao beco estreito que leva ao túnel, pouco à frente dos Patriotas que nos perseguem alucinados.
Tess está lá, encolhida nas sombras contra a parede. Tenho vontade de gritar. Por que ela não pulou para o túnel e rumou para o esconderijo?
Digo-lhe então:
- Já pra dentro. Você não devia estar aqui me esperando.
Ela, porém, nem se mexe. Está parada na nossa frente com os punhos cerrados, olha para mim e depois para June. Eu me aproximo rápido, agarro sua mão e a puxo para junto de nós até uma das pequenas grades metálicas que se estendem até onde as paredes do beco chegam ao solo. Dá para ouvir os primeiros sinais dos Patriotas atrás de nós. Imploro em silêncio: Por favor, permita que nós sejamos os primeiros a alcançar o esconderijo!
- Eles estão vindo - diz June, com os olhos fixos num lugar no beco.
- Que venham!
Passo as mãos freneticamente pela grade metálica, e então forço até ela se abrir.
Os Patriotas estão se aproximando.
- Saiam do caminho - grito para as duas.
Puxo então uma segunda granada do cinto, arranco o pino e a atiro na abertura do beco. Nós nos jogamos no chão, e cobrimos a cabeça com as mãos.
Há um estrondo ensurdecedor. A granada deve retardar os Patriotas por algum tempo, mas já consigo ver silhuetas avançando através dos escombros. June corre ao meu lado para a entrada aberta do túnel. Deixo que ela pule para dentro primeiro, depois me viro para Tess e lhe estendo a mão.
- Venha logo, Tess. Não temos muito tempo.
Tess olha minha mão aberta e recua um passo. Neste instante, o mundo ao redor parece congelar. Ela não virá conosco. Seu rosto pequeno e magro expressa ao mesmo tempo raiva, choque, culpa e tristeza.
Tento de novo.
- Anda! - grito. - Por favor, Tess. Não posso deixar você aqui.
Os olhos de Tess abrem fendas no meu corpo.
- Desculpe, Day - ela diz, arquejante -, mas posso me virar sozinha. Nem adianta vir atrás de mim.
Ela desvia de mim os olhos lacrimejantes, e corre de volta para os Patriotas. Será que vai voltar a se unir a eles? Eu a observo ir, atônito e silencioso, com a mão ainda estendida. Os Patriotas estão muito próximos.
Lembro as palavras de Baxter. Todo esse tempo ele preveniu Tess de que eu os trairia. E traí mesmo. Fiz exatamente o que Baxter disse que eu faria, e agora Tess tem de conviver com isso. Eu a decepcionei.
É June quem me salva, gritando, e me tirando do estado de torpor em que me encontro.
- Day, pule
Eu me obrigo a dar as costas a Tess, e pular para dentro do buraco. Minhas botas respingam água rasa gelada, quando ouço o primeiro Patriota nos alcançar. June agarra minha mão.
-Vamos!
Corremos a toda no túnel escuro. Atrás de nós escuto outra pessoa pular e começar a correr atrás de nós. Depois, mais uma. Todos estão vindo.
- Você tem mais granadas? - grita June enquanto corremos.
Passo a mão no cinto.
- Uma.
Pego a última granada e tiro o pino. Se usarmos essa granada, não há como voltar. Poderíamos ficar presos aqui para sempre, mas não temos outra alternativa e June sabe disso.
Grito uma advertência para trás de nós, e atiro a granada. O Patriota mais próximo me vê fazer isso e para assustado. Começa então a berrar aos companheiros que recuem. Continuamos a correr velozmente.
A explosão nos faz levantar do chão e sair voando. Bato com força no chão, derrapando na água gelada e na neve semi derretida por vários segundos, antes de conseguir parar. Minha cabeça gira sem cessar. Pressiono as mãos com força nas têmporas, numa tentativa de deter o mal-estar, mas em vão. Uma enxaqueca parece que faz minha cabeça explodir, afogando todos os meus pensamentos, e aperto os olhos com força, porque a dor é enlouquecedora.
Um, dois, três...
Os segundos se arrastam. Minha cabeça lateja com o impacto de mil martelos. Eu me esforço para respirar.
Depois, piedosamente, a dor começa a desaparecer. Abro os olhos na escuridão. O solo está firme de novo, e apesar de conseguir ouvir pessoas falando atrás de nós, a voz delas é abafada, como se estivesse vindo do outro lado de uma porta maciça.
Cautelosamente eu me aprumo para sentar. June está encostada na lateral do túnel, esfregando o braço. Nós dois estamos olhando de frente para o espaço de onde saímos.
Havia um túnel oco naquele local há apenas alguns segundos, mas agora uma pilha de concreto e escombros vedou completamente a entrada.
Conseguimos, mas tudo que sinto é um vazio.

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