Capítulo 17 - June

Quando eu tinha cinco anos, Metias me levou para ver as sepulturas dos nossos pais. Era a primeira vez em que ele ia ao local desde o enterro. Acho que não conseguia suportar ser lembrado do que havia acontecido. A maioria dos civis de Los Angeles - mesmo um bom número da classe A - recebe um pequeno compartimento de 930 centímetros, e uma só caixa de vidro opaco onde guardar as cinzas de um ente querido. Mas Metias subornou as autoridades do cemitério, e conseguiu um lóculo de quatro metros para mamãe e papai no cemitério vertical local, e lápides de cristal gravado. Ficamos lá em frente às lápides com nossas roupas brancas e flores brancas. Passei o tempo todo olhando para Metias. Ainda me lembro da sua mandíbula retesada, do cabelo bem escovado e das bochechas úmidas reluzentes. Recordo, principalmente, de seus olhos sérios de tristeza, maduros demais para um adolescente de dezessete anos.
Day tinha essa mesma aparência quando soube da morte do irmão John. E agora, à medida que percorremos o túnel subterrâneo, seus olhos estampam expressão idêntica.
Passamos cinqüenta e dois minutos (ou cinqüenta e um minutos? Não sei direito. Minha cabeça está febril e confusa) correndo na umidade escura do túnel. Durante algum tempo, ouvimos gritos raivosos vindo do outro lado da montanha de concreto retorcido que nos separa dos soldados dos Patriotas e da República. Contudo, esses sons acabaram por cessar completamente, à proporção que corríamos cada vez mais para o fundo do túnel. Os Patriotas provavelmente precisaram fugir das tropas que se aproximavam. Talvez os soldados estejam tentando escavar o túnel.
Não temos a menor idéia, por isso vamos adiante.
Agora está tudo silencioso. Os únicos sons são nossas respirações entrecortadas, nossas botas chapinhando em poças rasas de neve semi derretida, e o gotejar incessante de água gélida que cai do teto e escorre pelos nossos pescoços. Day agarra minha mão fortemente enquanto corremos. Seus dedos estão gelados e escorregadios da umidade, mas eu me mantenho agarrada a eles. Aqui embaixo é tão escuro que mal enxergo o contorno de Day à minha frente.
Será que Anden sobreviveu ao ataque? Ou os Patriotas conseguiram assassiná-lo? Esse pensamento faz com que meu sangue circule mais rápido.
Na última vez em que desempenhei o papel de agente dupla, fiz com que alguém fosse morto. Anden confiou em mim e, por causa disso, poderíamos ter morrido hoje. Talvez ele tenha morrido. Esse é o preço que as pessoas pagam por cruzarem o meu caminho.
Esse pensamento provoca outro: por que Tess não quis vir conosco? Tenho vontade de perguntar, mas, estranhamente, Day não disse uma palavra desde que entramos no túnel. Percebo que os dois haviam discutido. Espero que ela esteja bem. Preferiu ficar do lado dos Patriotas?
Finalmente, Day para em frente a uma parede. Quase caio em cima dele, e uma súbita onde de alívio e pânico me atinge. Normalmente consigo correr mais rapidamente e por mais tempo do que isso, mas estou exausta. Será que estamos em um beco sem saída? Será que essa parte do túnel também desabou, e agora estamos presos de ambos os lados?
- Podemos descansar aqui - ele murmura. Essas foram as primeiras palavras que ele pronunciou desde que chegamos aqui. - Fiquei num desses túneis em Lamar.
Certa vez Razor havia mencionado os túneis de fuga dos Patriotas. Day passa a mão ao longo da beira da porta onde ela se encontra com a parede.
Finalmente encontra o que está procurando, uma pequena alavanca deslizante que se projeta de uma pequena cavidade de trinta centímetros. Ele a puxa de uma extremidade à outra. A porta se abre com um estalo.
A princípio, saltamos para um buraco escuro. Embora eu não consiga ver nada, presto muita atenção ao modo como nossas pegadas estão ecoando no cômodo, e deduzo que o teto é baixo, provavelmente apenas alguns centímetros mais alto do que o próprio túnel (três metros, talvez três metros e trinta), e quando ponho uma das mãos ao longo de uma parede, dá para ver que é reta, não curva. É um cômodo retangular.
- Aqui está - Day resmunga. Eu o ouço apertar e soltar algo, e uma luz artificial inunda o ambiente. -Vamos torcer para que esteja vazia.
Não é uma câmera grande, mas nela caberiam vinte ou trinta pessoas confortavelmente, até cem, se ficassem todas espremidas. Contra a parede preta há duas portas que conduzem a escuros corredores. Todas as paredes têm monitores, espessos e gastos, com um design diferente do que os usados na maioria dos halls da República. Eu me pergunto se foram os Patriotas que instalaram esses aparelhos, ou se eles são da época de quando estes túneis foram construídos.
Enquanto Day perambula, com a arma em punho, no primeiro hall nos fundos da sala principal, examino o segundo hall. Neste há dois cômodos menores, com cinco conjuntos de beliches em cada um, e na extremidade do hall há uma pequena porta que leva de volta ao túnel escuro e infindável. Estou disposta a apostar que o hall em que Day está tem também uma entrada para o túnel. Enquanto vagueio entre os beliches, passo a mão na parede onde pessoas rabiscaram seus nomes e iniciais. Este é o caminho para a salvação. J.D. Edward. Já um outro afirma:
A única saída é a morte. Maria Marques.
-Tudo vazio? - Day pergunta, atrás de mim.
Faço um sinal positivo com a cabeça.
-Tudo. Acho que estamos a salvo por enquanto.
Ele suspira, baixa os ombros e passa uma das mãos, cansado, no cabelo emaranhado. Faz apenas alguns dias desde que estivemos juntos, mas parece muito mais. Caminho até ele. Seus olhos examinam meu rosto interrogativamente, como se estivessem me vendo pela primeira vez. Ele deve ter um milhão de perguntas pra me fazer, mas apenas ergue uma das mãos e põe uma mecha do meu cabelo no lugar. Não tenho certeza se me sinto tonta por causa da doença ou de emoção.
Eu quase havia esquecido como o toque de Day me faz sentir. Quero penetrar na pureza que é Day, absorver sua sinceridade simples, seu coração receptivo e franco.
- Olá! - ele murmura.
Eu o abraço com força, e nós dois ficamos assim por um tempo. Fecho os olhos e me permito enterrar no corpo de Day e sentir o calor da sua respiração no meu pescoço. Suas mãos acariciam meu cabelo e descem até o pescoço, agarrado a mim como se tivesse medo de me soltar. Ele se afasta o suficiente para me olhar nos olhos; se inclina como se fosse me beijar, mas então, por algum motivo, ele se detém, e volta a me abraçar.
Isso é reconfortante, mas me decepciona um pouco. Alguma coisa mudou.
Vamos até a cozinha (que tem uns sessenta e oito metros, julgando pelo número de azulejos no chão), pegamos duas latas de comida, garrafas d'água e as colocamos nos balcões e nos acomodamos para descansar.
Day está calado. Espero ansiosa enquanto dividimos uma lata de massa cheia de molho de tomate, mas ele não pronuncia uma palavra. Parece estar pensando. Sobre o plano fracassado? Sobre Tess? Ou talvez não esteja pensando em nada, mas continua atordoado em silêncio. Eu também permaneço calada. Prefiro não pôr palavras na sua boca.
-Vi o seu sinal de advertência em um vídeo da câmera de segurança - ele acaba dizendo, depois que dezessete minutos se passaram. - Eu não sabia exatamente o que você queria que eu fizesse, mas entendi a idéia geral.
Reparo que ele não menciona o beijo entre mim e Anden, embora eu esteja certa de que o viu.
- Obrigada. - Minha visão escurece por um segundo, e pisco rapidamente para tentar me concentrar. - Eu lamento ter te forçado a entrar numa enrascada. Tentei fazer com que os jipes tomassem outro caminho em Pierra, mas não deu certo.
- Foi isso que causou o atraso quando você desmaiou, não foi? Fiquei preocupado que você tivesse se machucado.
Reflito por um momento. A comida pode até estar boa, mas não sinto a menor fome. Eu deveria contar imediatamente a Day sobre Éden, mas seu humor - como o de uma tempestade no horizonte - realmente me impede. Será que os Patriotas conseguiram ouvir todas as minhas conversas com Anden? Talvez Day já soubesse.
- Razor está mentindo para nós sobre por que deseja que o Eleitor morra. Ainda não sei o motivo, mas as coisas que ele nos disse simplesmente não fazem sentido.
Paro de falar por um instante, e me pergunto se Razor já terá sido detido pelas autoridades da República. Se ainda não foi, isso acontecerá em breve. Ao final do dia de hoje, a República já deverá estar a par de que Razor instruiu expressamente os motoristas dos jipes para manterem o curso, levando Anden direto para uma armadilha.
Day dá de ombros e se concentra na comida.
- Quem sabe o que ele e os Patriotas estão fazendo agora?
Eu queria saber se ele diz isso porque está pensando em Tess. O jeito com que ela olhou para ele antes de fugirmos para o túnel... Decido não perguntar o que aconteceu entre eles. Ainda assim, vejo os dois juntos em um sofá, tão descontraídos e à vontade como da primeira vez em que nos deparamos com os Patriotas em Vegas, Day descansando a cabeça no colo de Tess, e ela debruçando-se sobre ele para beijar seus lábios. Meu estômago se contrai, perturbado. Então me lembro de que ela não veio conosco. Que aconteceu entre os dois? Quase posso ver Tess discutindo com Day sobre mim.
- E aí? - pergunta ele, em tom monocórdio. - Queria que você me contasse o que descobriu sobre o Eleitor que fez com que resolvesse trair os Patriotas.
Ele realmente não sabe sobre Éden. Descanso o copo d'água na mesa e aperto os lábios:
- O Eleitor libertou seu irmão.
O garfo de Day para no ar.
- O quê?
- Anden o soltou no dia depois que mandei o sinal. Éden está sob proteção federal em Denver. Anden detesta o que a República fez à sua família, e quer reconquistar nossa confiança; a sua e a minha. Estendo a mão para pegar a de Day, mas ele a afasta abruptamente. Suspiro decepcionada. Eu não tinha certeza sobre como Day receberia essa notícia, mas parte de mim esperava que ele ficasse... feliz.
Prossigo então:
- Anden se opõe completamente à política do falecido Eleitor. Ele quer desativar as Provas, e os experimentos com a praga. - Hesito. Day continua olhando fixo para a lata de massa com o garfo na mão, mas parou de comer.
- Ele quer fazer várias mudanças radicais, mas primeiro precisa ganhar a confiança do povo. Ele praticamente implorou nossa ajuda.
A expressão de Day se altera.
- Então é isso? É por isso que você decidiu atirar todo o plano dos Patriotas pela janela? - ele pergunta com amargura. - Para que o Eleitor me suborne em troca do meu apoio? Se quer saber, tudo isso é uma piada de mau gosto. Como sabe se ele está dizendo a verdade, June? Você obteve alguma prova de que ele soltou mesmo o Éden?
Ponho a mão no braço dele. Era exatamente essa a reação que eu temia, mas ele tem todo o direito de ficar desconfiado. Como posso explicar meu instinto visceral sobre a personalidade de Anden, ou o fato de que vi sinceridade no olhar dele? Eu sei que Anden libertou o irmão de Day. Eu simplesmente sei, mas Day não estava no quarto, e não conhece Anden. Não tem razão para acreditar nele.
- Anden é diferente.Você precisa acreditar em mim, Day. Ele soltou Éden, e não apenas porque quer que façamos algo por ele.
As palavras de Day são frias e distantes.
- Eu perguntei se você tem alguma prova disso.
Suspiro e tiro a mão do braço dele.
- Não - reconheço -, não tenho.
Day sai repentinamente do seu torpor e enfia o garfo na lata com tanta força, que dobra o cabo do garfo.
- Ele enrolou você. Logo você! A República não vai mudar. O novo Eleitor é jovem, burro pra cacete, e se acha o máximo. Ele quer apenas que as pessoas o levem a sério, e para isso é capaz de dizer qualquer coisa. Quando as coisas se acalmarem, você vai ver o que ele realmente é. Garanto. Ele não é diferente do pai: é só mais um maldito filhinho de papai, com muita grana e um punhado de mentiras.
Fico irritada por Day achar que sou tão crédula.
- Ele é jovem e se acha o máximo? - Dou um pequeno empurrão em Day, tentando desanuviar o ambiente. - Isso me lembra alguém...
Em outros tempos, isso teria feito Day rir, mas ele me olha furioso e continua.
-Vi um menino em Lamar, que devia ser da idade do meu irmão. Por um minuto, achei que fosse Éden. Ele estava sendo transportado numa gigantesca proveta, numa espécie de experimento científico. Tentei tirá-lo de lá, mas não consegui. O sangue do menino está sendo usado como uma arma biológica contra as Colônias - Day atira o garfo na pia. -É isso que seu amiguinho Eleitor está fazendo com meu irmão. Você ainda acha que ele libertou Éden?
Estendo o braço e ponho a mão na dele.
- O Congresso mandou Éden para a frente de batalha antes que Anden fosse Eleitor. Anden soltou seu irmão há poucos dias. Ele...
Day ignora o que eu disse; seu rosto expressa uma mistura de frustração e confusão. Ele enrola as mangas compridas da camisa até os cotovelos e pergunta:
- Por que você confia tanto nesse cara?
- Como assim?
Ele vai se exaltando.
- A única razão pela qual eu não arrebentei a janela do jipe do seu Eleitor e não enfiei uma faca no pescoço dele foi por sua causa. Porque eu sabia que você devia ter um bom motivo, mas agora parece que você simplesmente acredita nas palavras dele. O que aconteceu com todo aquele seu raciocínio lógico?
Não gosto da maneira como ele chama Anden de meu Eleitor, como se Day e eu continuássemos em lados opostos.
- Eu estou lhe dizendo a verdade - falo calmamente. - Além disso, até onde eu sei, você não é um assassino.
Day me vira as costas e resmunga alguma coisa baixinho, que não consigo ouvir. Cruzo os braços.
- Lembra-se de quando confiei em você, mesmo quando tudo que eu sabia a seu respeito me dizia que você era um inimigo? Dei a você o benefício da dúvida, e sacrifiquei tudo por aquilo em que acreditava. Pois eu lhe digo agora que assassinar Anden não vai resolver nada. Ele é a pessoa de que a República realmente precisa, alguém dentro do sistema com poder suficiente para mudar as coisas. Como você poderia conviver consigo próprio depois de matar uma pessoa daquele jeito? Anden é bom.
- E daí se ele for? - replica Day friamente. Ele está agarrando a parte superior do balcão tão fortemente, que suas juntas estão lívidas. - Bom, mau - que importa? Ele é o Primeiro Eleitor.
Estreito os olhos.
-Você acredita mesmo nisso?
Day sacode a cabeça e ri, desolado.
- Os Patriotas estão tentando começar uma revolução. É disso que este país precisa, não de um novo Eleitor, mas sim de nenhum Eleitor. A República está acabada, não tem mais conserto. Que as Colônias assumam logo o controle!
-Você nem sabe como são as Colônias...
- Sei que elas devem ser melhores do que esse inferno - retruca Day.
Dá pra ver que ele não está zangado só comigo, mas está começando a ser infantil, e isso está me aborrecendo.
-Você sabe por que concordei em ajudar os Patriotas? - Ponho uma das mãos na parte superior do braço dele, sentindo o leve contorno de uma cicatriz sob o tecido. Day se retesa ao meu toque. - Porque eu queria ajudar você.Você acha que é tudo culpa minha, não é? É minha culpa usarem seu irmão em experimentos. E culpa minha você ter precisado abandonar os Patriotas. É culpa minha a Tess ter se recusado a vir conosco.
- Não... - diz Day, menos exaltado, retorcendo as mãos, frustrado. - Nem tudo é culpa sua. A Tess não veio por minha causa.
Há dor verdadeira na expressão dele; a esta altura, não sei dizer por quem. Muita coisa aconteceu. Sinto uma curiosa ponta de ressentimento que faz o sangue corar minhas orelhas e me envergonho desse sentimento.
Não é justo que eu sinta ciúme. Afinal de contas, Day conhece a Tess há anos, há muito mais tempo do que me conhece, portanto, por que não deveria sentir-se ligado a ela? Além disso, Tess é meiga, altruísta, reconfortante. Eu não. E claro que sei por que Tess o abandonou: por minha causa. Examino o rosto dele e pergunto.
- O que aconteceu entre você e Tess?
Day olha fixamente para a parede do outro lado de onde estamos; está perdido em pensamentos, e dou uma pancadinha no seu pé para tirá-lo do transe.
- A Tess me beijou - resmunga. - Ela acha que eu a traí... com você.
Minhas; bochechas se enrubescem. Fecho os olhos para expulsar da cabeça a imagem dos dois se beijando. Isso é muito idiota... não é? Tess conhece o Day há anos, e tem todo o direito de beijá-lo. O Eleitor não me beijou também? E eu gostei...
De repente, parece que Anden está a milhões de quilômetros de distância. E que ele não tem a menor importância. A única coisa que consigo enxergar é Day e Tess juntos. E como um soco no estômago. Estamos em meio a uma guerra. Não seja ridícula.
- Por que você me contou isso?
-Você preferiria que eu guardasse segredo?
Não entendo o motivo, mas Day não tem dificuldade em me fazer sentir uma idiota. Tento fingir que a revelação não me incomodou.
-Tess vai perdoá-lo.
Minhas palavras, que eu queria que soassem gentis e maduras, ao contrário disso, soam ocas e falsas. Enquanto estive presa, passei no teste do detector de mentiras sem nenhum problema; por que é tão difícil lidar com esse assunto envolvendo Day?
Após um momento, ele pergunta, com voz mais baixa.
- O que você acha dele? Sinceramente.
- Acho que ele é verdadeiro - respondo, impressionada com a calma da minha voz. Fico satisfeita que nossa conversa tome outra direção.
- Ambicioso e compassivo, mesmo que isso o torne pouco prático. Ele certamente não é o ditador brutal que os Patriotas afirmaram que ele se tornará. E jovem, e precisa que o povo da República fique do seu lado. E vai precisar de ajuda, para mudar as coisas.
- June, nós mal nos livramos dos Patriotas, e você está tentando dizer que devemos ajudar Anden mais do que já ajudamos, que devemos continuar arriscar a vida por esse sacana riquinho que você conhece tão pouco?
O veneno nos seus olhos quando ele praticamente cospe a palavra "riquinho//me assusta, e me faz sentir que ele está me insultando também.
- O que a classe social dele tem a ver com isso? - Estou muito irritada.
-Você está dizendo que ficaria satisfeito se ele morresse?
- É isso mesmo. Eu ficaria satisfeito se Anden morresse - Day confirma, com os dentes cerrados. - E ficaria satisfeito de ver todos os membros do governo dele mortos também, se isso significasse ter minha família de volta.
- Esse nem parece você. A morte de Anden não consertaria as coisas - insisto. Como posso fazê-lo entender? - Você não pode achar que todos são farinha do mesmo saco, Day. Nem todos os que trabalham para a República são maus. Olhe o meu exemplo. E o do meu irmão e dos meus pais. Há, sim, pessoas boas no governo, e são elas que podem ser a ponta de lança de mudanças permanentes na República.
- Como é que você tem coragem de defender o governo, depois de tudo que eles fizeram a você? Como é possível que você não queira que a República desmorone?
-Acontece que eu não quero - digo com raiva. - Quero que a República mude para melhor. No começo, o país teve suas razões para controlar o povo...
- Pare agora com essas loucuras. Já! - Day levanta as mãos. Seus olhos brilham com uma ira que jamais vi. - Eu desafio você a repetir essas coisas. No começo o país teve suas razões? As ações da República são razoáveis?
- Você não conhece toda a história da formação da República. Anden me contou como o país começou a partir da anarquia, e que foi o povo que...
- Quer dizer que agora você acredita em tudo que ele diz? Você está dizendo que é culpa do povo o fato de a República estar do jeito que está? - Day eleva o tom de voz - Que fomos nós que causamos essa merda de situação contra nós mesmos? E essa a justificativa para o governo torturar o povo?
- Não, eu não estou tentando justificar isso.
De alguma forma, a história parece muito menos viável do que quando Anden a estava contando.
- Agora você acredita que Anden pode nos consertar com suas idéias imbecis? Esse filhinho de papai vai salvar nós todos?
- Pare de chamá-lo assim! São as idéias dele que podem fazer isso,não o dinheiro dele! Dinheiro não significa nada quando...
Day me aponta um dedo.
- Nunca mais diga isso na minha cara. Dinheiro significa tudo.
Minhas faces coram.
- Não, não significa.
- Porque você nunca ficou sem ele.
Hesito. Quero desesperadamente responder, explicar que não foi isso que eu quis dizer. Dinheiro não me define, nem a Anden, nem a nenhum de nós. Por que eu não disse isso? Por que Day é a única pessoa com quem tenho dificuldade em argumentar com coerência?
- Day, por favor ... - começo a falar.
Ele salta do balcão.
- Quer saber? Talvez Tess tivesse razão sobre você.
- Como é que é? - retruco imediatamente. - Tess tem razão em quê?
- Você pode ter mudado um pouco nas últimas semanas, mas no fundo, continua a ser uma militar da República. Da cabeça aos pés. Você ainda é leal àqueles carniceiros. Esqueceu como minha mãe e meu irmão morreram? Esqueceu quem matou sua família?
Minha raiva atinge o auge. Você está deliberadamente se recusando a ver as coisas do meu ponto de vista? Pulo do balcão para encará-lo.
- Nunca me esqueço de nada. Estou aqui para o seu bem, desisti de tudo por você. Como se atreve a meter minha família nesse assunto?
- Foi você que meteu minha família nisso! - ele berra. - Nisso tudo! Você e sua adorada República! - Day abre os braços. - Como você se atreve a defender esses caras, como você se atreve a racionalizar e justificar por eles serem como são? Pra você é muito fácil dizer isso, não é? Você viveu a vida inteira em um palácio enorme financiado pela República.
Aposto que não teria tanta facilidade em justificar tudo, se tivesse passado a vida vasculhando lixo nas favelas para se alimentar. Teria?
Estou tão furiosa e magoada, que tenho dificuldade em respirar.
- Isso não é justo, Day. Eu não escolhi nascer na classe em que nasci. Jamais quis prejudicar sua família...
- É, mas prejudicou. E muito. - Estremeço e desmorono, arrasada com o olhar furioso dele. - Foi você que levou os soldados direto à porta da minha família. É por sua causa que eles estão mortos.
Day me dá as costas e sai possesso da cozinha. Fico lá sozinha num súbito silêncio; pela primeira vez estou desorientada e não sei o que fazer. O nó na minha garganta ameaça me sufocar. Minha visão está encoberta por lágrimas.
Day acha que estou sendo cegamente fiel ao Eleitor, ao invés de ser lógica. E que não há como eu estar do seu lado, e ser leal ao estado. Bem, será que ainda sou leal? Será que respondi corretamente a essa pergunta do detector de mentiras? Será que estou com inveja da Tess? Inveja porque ela é uma pessoa melhor do que eu?
E então me vem um pensamento tão doloroso que mal consigo suportá-lo, independentemente da raiva que as palavras de Day me causaram: ele tem razão, não posso negar. Sou eu a culpada por Day ter perdido todos que amava.

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