Capítulo 18 - Day

Eu não devia ter gritado com ela. Como pude sertão cruel? Foi horrível o que eu fiz, e sei disso.
Mas, ao invés de me desculpar, dou uma volta pelo abrigo, e recomeço a examinar os cômodos. Minhas mãos continuam tremendo e minha mente ainda está se esforçando para reduzir o impacto da adrenalina. Eu disse as palavras que estavam me afligindo a cabeça há semanas. Elas foram ditas, não há como voltar atrás. Bem, e daí? Estou satisfeito que ela saiba. Ela precisava saber. E dizer que dinheiro nada significa?! Essa frase fluiu tranquilamente da sua boca, tão natural quanto água. Minha cabeça se enche de lembranças de quando todos da minha família precisavam de mais. Penso que tudo poderia ter sido melhor com mais dinheiro.
Houve uma tarde, durante uma semana especialmente penosa, quando cheguei cedo em casa vindo do ensino elementar. Encontrei o Éden, então com quatro anos, vasculhando a geladeira. Ele deu um pulo quando me viu entrar em casa. Ele segurava uma lata vazia de picadinho de carne. De manhã ela estava pela metade, com sobras preciosas da noite da véspera, que mamãe havia cuidadosamente embrulhado em papel laminado e guardado para o jantar do dia seguinte. Quando Éden me viu olhando fixo para a lata vazia na sua mão, ele a deixou cair no chão da cozinha e começou a chorar, implorando:
- Por favor, não conta pra mamãe!
Corri até ele e o segurei nos braços. Ele agarrou minha camisa com suas mãos de bebê, e enterrou o rosto no meu ombro.
- Não vou contar - sussurrei. - Prometo.
Ainda me lembro que seus bracinhos eram muito finos. Mais tarde, à noite, quando mamãe e John finalmente chegaram, eu disse à mamãe que havia fuçado na geladeira e comido as sobras do jantar da véspera. Ela me deu uma forte bofetada, e me disse que eu já tinha idade bastante pra saber que aquilo foi errado. John me pregou um sermão, desapontado, mas e daí? Eu não dei a mínima.
Furioso, bato com força uma porta no corredor. Será que June alguma vez precisou se preocupar em ter comido meia lata de picadinho de carne? Se ela tivesse sido pobre, será que perdoaria tão facilmente a República?
A arma que os Patriotas me deram está presa firmemente no meu cinto. O assassinato do Eleitor teria dado aos Patriotas a oportunidade de derrubar a República. Nós teríamos sido a fagulha que acenderia um barril de pólvora, mas por nossa causa - por causa de June - fracassou. E para quê? Para ver esse Eleitor se tornar igual ao pai? A idéia de que ele libertaria o Éden me faz rir! Mais uma grande mentira da República. Agora, não estou mais perto de salvá-lo, perdi a Tess, e voltei à estaca zero. E ainda estou fugindo dos soldados.
Essa é a história da minha vida. Como sou ridículo.
Meia hora depois, quando volto ã cozinha, a June não está mais lá. Provavelmente está em um dos corredores, anotando mentalmente todas as malditas fendas na parede.
Abro as gavetas da cozinha, esvazio um dos sacos de aniagem e começo a guardar nele pilhas de cada tipo de comida: arroz, milho, sopas de batata e cogumelo. E também três caixas de bolachas. (Que legal! Tudo está indo pro ralo, mas pelo menos posso encher a barriga.) Pego várias garrafas d'água para cada um de nós e fecho o saco. Por enquanto está bem. Em breve vamos botar o pé na estrada de novo. Não dá pra saber onde termina esse túnel ou quando vamos alcançar outro abrigo. Precisamos ir até as Colônias. Talvez eles possam nos ajudar quando chegarmos à outra extremidade. Por outro lado, não podemos chamar atenção, pois é verdade que arruinamos o assassinato apoiado pelas Colônias. Dou um suspiro profundo, desejando ter mais tempo de bater papo com a Kaede, para persuadi-la a me contar todas as histórias sobre a vida no outro lado da frente de combate.
Como é que nossos planos se transformaram numa bagunça tão grande?
Batem levemente na porta aberta da cozinha. Viro-me e vejo a June de pé, com os braços cruzados. Ela desabotoou o casaco da República; a blusa de gola e a jaqueta por debaixo estão amarrotados. Suas bochechas estão mais coradas do que o habitual e os olhos, vermelhos, como se ela tivesse chorado.
- Os circuitos elétricos não estão sendo alimentando pela rede da República.
Mesmo que ela tenha derramado lágrimas, eu não as percebo em sua voz, prática, fria.
- Os cabos se estendem até a outra extremidade do túnel, a parte que ainda não cobrimos.
Volto a empilhar as latas de comida.
- E daí?
- Isso quer dizer que eles devem estar recebendo energia direto das Colônias, certo?
- Acho que sim. Faz sentido - endireito as costas e fecho bem apertados os dois sacos de aniagem que preparei. - Bem, pelo menos quer dizer que o túnel vai levar à superfície em algum lugar, com sorte nas Colônias. Quando estivermos prontos para partir, podemos simplesmente seguir os cabos. Mas é melhor a gente descansar antes.
Vou saindo da cozinha e passando por June quando ela pigarreia.
- Os Patriotas lhe ensinaram alguma coisa sobre luta corpo a corpo enquanto você esteve com eles?
Balanço a cabeça.
- Não, por quê?
June se vira para me encarar. A entrada da cozinha é bastante estreita, e seus ombros roçam os meus, causando-me arrepios nos braços. Fico irritado por ela continuar a exercer esse efeito em mim, apesar de tudo.
- Enquanto estávamos entrando no túnel, reparei que você estava golpeando os Patriotas girando o torso, mas isso não é muito eficaz. Você devia girar o corpo usando as pernas e os quadris.
Sua crítica me dá nos nervos, embora seu tom de voz seja estranhamente hesitante.
- Não quero fazer isso agora.
- Quando é que vamos fazer isso, se não agora? - June se encosta na moldura da porta, e aponta para a entrada do abrigo. - E se a gente der de cara com alguns soldados?
Suspiro e levanto as mãos por um segundo.:
- Se essa é a sua maneira de se desculpar depois de uma briga, você é péssima nisso. Escute uma coisa: lamento eu ter me zangado antes. – Hesito ao lembrar minhas palavras. Eu não lamento, mas dizer isso a ela agora não vai adiantar nada. - Daqui a uns minutos, vou me acalmar.
- Pare de fazer doce, Day. O que vai acontecer quando você encontrar Éden e precisar protegê-lo? - Ela está tentando se desculpar, à sua própria maneira sutil. Tudo bem. Pelo menos está tentando, embora seja muito ruim nisso.
Olho com raiva para ela durante alguns segundos.
- Está certo - digo afinal. - Então me mostre o que fazer, soldado. Que truques você esconde nas mangas?
June sorri levemente, depois me leva até o centro do cômodo principal do abrigo. Ela se posta ao meu lado.
- Você já leu A arte da luta, de Ducain?
- Você acha que já tive tempo livre para ler na vida?
Ela me ignora, e imediatamente lamento ter dito aquilo.
- Bem, você tem leveza nos pés e equilíbrio perfeito - continua ela. - Mas não usa esses pontos fortes quando ataca. É como se entrasse em pânico. Você esquece que tem a vantagem de ser rápido, e também não usa seu centro de massa.
- Meu centro de quê? - começo a dizer, mas June apenas dá uma pancada com sua bota no lado de fora da minha perna.
- Espalhe seu peso pelas plantas dos pés e mantenha as pernas abertas na mesma distância que a largura dos seus ombros - ela ensina. - Finja que você está de pé sobre trilhos de trem, com um pé à frente.
Fico surpreso. June tem estado observando detidamente meus ataques, embora isso geralmente aconteça quando todo tipo de balbúrdia está ao nosso redor. E ela tem razão. Eu não havia percebido que todos os meus instintos de equilíbrio voam pela janela quando tento lutar.
Faço como ela disse.
- Tudo bem. E agora?
- Para começar, mantenha o queixo para baixo. - Ela toca minhas mãos e depois as ergue de modo que um punho fica perto do lado das minhas bochechas, e o outro paira em frente ao meu rosto. Suas mãos percorrem meus braços, examinando minha postura. Minha pele coça.
- A maioria das pessoas se inclina para trás e mantém o queixo alto e proeminente - diz ela, com o rosto perto do meu. Ela dá um tapinha no meu queixo e fala: - Você faz a mesma coisa. Isso é o mesmo que estar pedindo um nocaute.
Tento me concentrar na minha postura ao levantar os dois punhos.
- Como você soca?
June toca suavemente a ponta do meu queixo, e depois a beira da minha sobrancelha.
- Lembre-se: o principal é você atingir com precisão uma pessoa; a força não é o elemento mais importante. Você pode nocautear alguém muito mais forte se o atingir nos lugares certos.
Antes que eu me dê conta, já se passou meia hora. June me ensina uma sequência de táticas: manter o ombro para cima a fim de proteger o queixo, pegar o oponente desprevenido com movimentos falsos, golpes de cima para baixo e de baixo para cima, encostando para trás e em seguida disparando uma série de pontapés, saltar da frente do adversário com rapidez, visando os locais vulneráveis, como olhos, pescoço etc. Eu me arremesso com tudo, mas, quando tento apanhá-la de surpresa e a agarro, ela se solta como água entre pedras, fluida e em movimento constante e, num piscar de olhos, ela se põe atrás de mim e torce meu braço atrás das minhas costas.
Finalmente, June me dá uma rasteira e me prende ao solo. Suas mãos empurram meus pulsos para baixo e ela diz:
- Viu? Eu o enganei. Você fica sempre olhando para os olhos do adversário, mas isso lhe dá uma visão periférica ruim. Se você quer detectar meus braços e minhas pernas, precisa focalizar o meu peito.
Ao ouvir isso, ergo uma sobrancelha e falo, olhando para baixo.
- Nem precisa falar duas vezes.
June ri, depois enrubesce. Fazemos uma pequena pausa; suas mãos continuam prendendo meus braços para baixo, suas pernas estão na minha barriga e nós dois estamos arquejantes. Agora compreendo por que ela sugeriu o sparring improvisado: estou cansado, e o exercício fez minha raiva passar. Embora ela não o diga, dá pra ver claramente as desculpas no seu rosto, a inclinação dramática das sobrancelhas e o ligeiro estremecimento nos seus lábios das palavras não ditas. Essa visão acaba atenuando meu aborrecimento, embora só um pouco. É verdade que não lamento o que disse a ela antes, mas também não estou sendo justo. Seja lá o que perdi, June perdeu também. Ela era rica, mas depois desprezou tudo para salvar minha vida. Teve responsabilidade nas mortes da minha família, mas... passo a mão pelo cabelo, e me vem uma sensação de remorso. Não posso culpá-la por tudo. Nem posso ficar sozinho num período como este, sem aliados com quem possa contar.
Ela oscila o corpo.
Eu me escoro nos cotovelos e pergunto:
- Você está legal?
Ela sacode a cabeça, franze a testa e tenta fingir que está.
- Estou. Eu devo ter apanhado um vírus ou coisa assim, nada sério.
Eu a examino sob a luz artificial. Presto mais atenção à cor do seu rosto, vejo que ela está mais pálida do que o normal, e que suas bochechas parecem ruborizadas porque sua pele está muito descorada. Eu me aprumo, forçando-a a deslizar para baixo. Comprimo uma das mãos na sua testa e imediatamente a retiro.
- Cara, você está queimando de febre!
June começa a protestar, dizendo que nossa sessão de treinamento a enfraqueceu, ela oscila o corpo de novo e se firma com um braço.
- Vou ficar bem. De qualquer forma, precisamos pôr o pé na estrada.
E eu que me irritei com ela, esquecendo tudo pelo que essa garota havia passado. Eu sou mesmo o panaca do ano. Tentando me redimir, passo um dos braços nas suas costas, o outro sob os seus joelhos, e depois a levanto nos braços. Ela se apoia no meu peito; o calor da sua testa parece ainda maior contra minha pele fria.
- Você precisa descansar.
Eu a carrego para um dos cômodos do bunker, tiro suas botas, deito-a cuidadosamente numa cama, e a cubro com cobertores. Ela pisca para mim.
- Eu não queria dizer o que falei antes. - Seus olhos estão atordoados, mas a emoção continua presente. - Sobre dinheiro. E eu... não...
- Deixa isso pra lá.
Aliso fios de cabelos que lhe caíram na testa. E se ela pegou alguma doença grave enquanto esteve presa? Um vírus da praga, por exemplo. Mas acontece que ela é da elite. Deveria estar vacinada. Espero.
- Vou trazer um remédio pra você, está bem? Apenas feche os olhos.
June balança a cabeça, frustrada, mas não tenta discutir.
Depois de vasculhar o abrigo inteiro, finalmente consigo descobrir um vidro de aspirina ainda intacto, e volto com ele para a beira da cama de June. Ela toma dois comprimidos. Quando começa a tremer, pego mais dois cobertores das outras camas do cômodo, e a cubro com eles, mas não surte muito efeito.
- Tudo bem, pode deixar que eu me ajeito - ela murmura, quando me disponho a tentar achar mais cobertores. — Não importa muito se você conseguir uma pilha deles, só quero que minha febre diminua - Ela hesita, mas depois pega minha mão - Será que você pode ficar aqui?
A debilidade da sua voz me preocupa mais do que qualquer outra coisa. Subo na cama, deito-me ao seu lado, em cima dos cobertores, e a puxo para mim. June dá um sorrisinho e fecha os olhos. Sentir as curvas do seu corpo contra o meu causa ondas de calor em mim. Nunca pensei em descrever sua beleza como delicada, porque delicada não é uma palavra que descreva a June, mas agora que ela está doente, percebo como pode ser frágil. Suas bochechas são róseas, os lábios são pequenos e macios, em contraste com os olhos grandes atrás das curvas dos cílios escuros.
Não gosto de vê-la tão fragilizada assim. O calor da nossa discussão permanece no fundo da minha cabeça, mas, por enquanto, preciso esquecer isso. Brigar só vai conseguir retardar nossa viagem. Depois trataremos dos problemas entre nós.
Lentamente, nós dois cochilamos.

***

Alguma coisa interrompe meu sono de repente. É um som de bipe. Eu o escuto por um instante, tentando determinar sua localização embora me sinta meio grogue. Me arrasto lentamente para sair da cama sem acordar a June. Antes de sair do quarto, debruço-me para tocar a testa dela de novo.
Não houve melhora. Ela está suando, de modo que a febre deve ter diminuído pelo menos por um tempo, mas agora ela está tão febril quanto antes. Quando sigo o som do bipe até a cozinha, vejo um minúsculo sinal luminoso piscando acima da porta pela qual entramos no abrigo. Palavras faíscam abaixo dele, num tom de vermelho vivo e ameaçador.

DISTÂNCIA: 120 METROS

Um medo gelado toma conta de mim. Alguém deve estar vindo pelo túnel em direção ao abrigo: talvez soldados dos Patriotas ou da República. Não consigo decidir qual dos dois seria pior. Dou meia-volta e corro para o local onde havia empilhado nossos sacos de aniagem com comida e água, e tiro algumas latas de um deles. Quando o saco está suficientemente leve, puxo os braços pelos cordões dos dois sacos como se fossem uma mochila, e depois me apresso a voltar para o lado de June. Ela se mexe e geme baixinho.
- Ei! — sussurro, tentando soar calmo e confiante. Inclino-me até ela e acaricio seu cabelo. - Está na hora de ir. Vem cá. - Empurro os cobertores para o lado, e enrolo um deles ao redor de June, calço as botas nela, e a levanto para segurá-la nos braços. Ela se debate por um instante como se achasse estar caindo, mas eu a seguro mais apertado. - Calma! – murmuro através do seu cabelo. - Você está segura comigo.
Ela se acomoda no meu abraço, semiconsciente. Saímos do abrigo e nos dirigimos de volta à escuridão do túnel; minhas botas pisam em poças e lama. A respiração de June é superficial e curta; ela arde em febre. Atrás de nós, o alarme soa menos alto enquanto percorremos várias curvas, depois esmaece em um zunido baixo. Eu meio que espero ouvir pisadas nos perseguindo, mas logo o zunido do alarme também se reduz, e podemos caminhar em silêncio. Para mim, parece que horas se passaram, embora June murmure que "se passaram quarenta e dois minutos e trinta e três segundos". Continuamos a andar penosamente.
Este trecho do túnel é muito mais comprido do que o primeiro, e parcamente iluminado por ocasionais acessórios tremeluzentes. A certa altura, finalmente dou uma parada e desmorono num setor seco, bebericando água e sopa enlatada. Pelo menos, acho que é sopa. Não dá para ver muito nesta escuridão, por isso eu só arranco a tampa da primeira lata que agarro. June está tremendo de novo, o que não é surpresa. Aqui embaixo é frio, frio o bastante para eu ver as descoradas nuvenzinhas da minha respiração. Aperto o cobertor em volta de June, constato mais uma vez que sua testa continua quente, e tento dar-lhe um pouco de sopa, que ela recusa.
- Não estou com fome - resmunga. Quando ela mexe a cabeça no meu peito, sinto o calor da sua testa através da minha camisa.
Aperto sua mão. Meus braços se encontram tão entorpecidos que até isso é difícil.
- Tudo bem, mas você vai beber um pouco d'água, tá?
- Está bem. - June se aconchega mais junto de mim, e descansa a cabeça no meu colo. Eu queria bolar um jeito de mantê-la aquecida. - Continuam a nos seguir?
Aperto os olhos na direção das negras profundidades de onde viemos e acho melhor mentir:
- Não. Nós despistamos todo mundo. Descanse e não se preocupe, mas tente ficar acordada.
June concorda com a cabeça. Ela se distrai com alguma coisa na mão, e quando olho mais de perto, vejo que é o anel de clipes de papel. Ela o esfrega como se ele lhe desse força, e então pede:
- Seja bonzinho e me conte uma história.
Seus olhos estão semicerrados, embora dê pra ver que ela se esforça para mantê-los abertos. Ela está falando tão baixinho, que preciso me inclinar perto de sua boca para poder ouvi-la.
- Que tipo de história? - pergunto, determinado a impedir que ela enfraqueça na semiconsciência.
- Não sei - June inclina ligeiramente a cabeça para me encarar. Depois de um instante, ela diz, sonolenta: - Fale sobre seu primeiro beijo. Como foi?
Essa pergunta me confunde a princípio - nenhuma garota quejá conheci gostava que eu falasse de outras meninas na sua frente, mas depois me toco que essa aí é a June, e que talvez esteja usando o ciúme para impedir-se de cochilar. Não posso deixar de sorrir no escuro. Essa danadinha é sempre muito inteligente.
- Eu tinha doze anos, e a garota, dezesseis.
Os olhos de June ficam mais vividos:
- Você deve ter sido o rei das cantadas.
Dou de ombros e digo:
- Talvez. Eu era bem desajeitado naquela época - quase me mataram algumas vezes. Bem, vamos ao que interessa: ela estava trabalhando com o pai num píer em Lake, e me flagrou tentando roubar comida dos engradados deles. Eu consegui passar a conversa nela pra não me dedurar e, como parte do nosso trato, ela me levou para um beco nos fundos, perto da água.
June tenta rir, mas acaba tendo um acesso de tosse.
- E ela beijou você no beco?
Dou um largo sorriso, e respondo:
- Pode-se dizer que sim.
June ergue uma sobrancelha curiosa à minha curta resposta, o que interpreto como um sinal positivo. Pelo menos ela agora está acordada. Debruço-me para mais perto dela, e aproximo meus lábios da sua orelha. Minha respiração movimenta macios cachos do seu cabelo. Sussurro então:
- A primeira vez que vi você, quando você entrou naquele ringue de Skiz para enfrentar Kaede, achei que você era a garota mais bonita que eu já tinha visto. Eu poderia ter ficado ali para sempre, só olhando para você. A primeira vez em que eu a beijei... - Essa lembrança toma conta de mim e me surpreende. Recordo todos os detalhes da cena, quase o suficiente para afastar as imagens do Eleitor puxando June para ele. - Bem, aquele podia muito bem ter sido o primeiro beijo da minha vida.
Mesmo no escuro, percebo indícios de um sorriso se moverem furtivamente no seu rosto. Então ela diz:
- É, você é mesmo um fala mansa.
Faço uma expressão de mágoa fingida e pergunto:
- Meu bem, eu mentiria pra você?
- Nem tente. Eu perceberia logo!
Rio baixinho e digo:
- Está certo.
Nossas palavras são superficiais e quase despreocupadas, mas nós dois sentimos a tensão subjacente a elas. É o esforço de tentar esquecer, de diminuir a pressão. Nenhum de nós poderá jamais apagar as conseqüências das coisas que fizemos e dissemos.
Permanecemos lá por mais alguns minutos. Depois reúno nossos pertences, pego June no colo e continuamos percorrendo o túnel. Meus braços estão tremendo, e cada respiração é entrecortada. Não há sinais de abrigos à frente. Apesar da umidade e frio do túnel, suo muito, como se estivéssemos em pleno verão de Los Angeles. Paro cada vez mais freqüentemente, até que afinal me detenho em outro trecho do túnel e desabo, encostado à parede.
- Vamos só fazer um rápido intervalo - garanto à June quando lhe dou água. - Acho que estamos quase chegando.
Como June já tinha dito antes, ela sabe perfeitamente quando estou mentindo, e diz debilmente:
- Não dá pra continuar. Vamos descansar. Você não vai agüentar mais uma hora desse jeito.
Discordo das suas palavras.
- Este túnel tem que terminar em algum lugar. A gente deve estar bem debaixo da frente de batalha, o que quer dizer que já estamos em território das Colônias.
Calo a boca, ao me dar conta disso, na mesma hora em que pronuncio aquelas palavras; um arrepio me percorre a espinha. Território das Colônias.
Como se aproveitando a deixa, ouvimos um som vindo de algum lugar além do túnel, algum lugar longínquo, acima de nós. Fico em silêncio. Escutamos durante algum tempo, e logo volta o som: é um barulho de zumbido intenso, abafado pela terra, e vindo de um objeto maciço.
- Será que isso é o som de um dirigível? - June pergunta.
O som diminui, mas não antes de fazer uma brisa gélida penetrar no túnel. Levanto os olhos num relance. Antes eu estava muito cansado para reparar, mas agora enxergo uma lasca minúscula e retangular de luz. E uma saída para a superfície. Na verdade, há várias dessas lascas alinhadas no teto, em intervalos esporádicos; é provável que estejamos passando por elas há um bom tempo. Obrigo-me a ficar de pé, e me espicho para passar o dedo na beira dessa lasca. É suave, de metal congelado. Tento empurrá-la.
Ela se move. Empurro o metal com mais força, e começo a deslizá-lo para um lado. Embora dê pra ver que lá fora já é noite, a luz que entra no túnel é forte para alguém que está há horas no escuro, e preciso estreitar os olhos.
Demoro um segundo para perceber que alguma coisa fria e leve está caindo suavemente no meu rosto. Confuso, dou um tapa no ar, supondo que sejam nsetos, mas então me dou conta de que são - creio - flocos de neve. Meu coração se acelera. Quando deslizei o metal para o mais longe que ele podia ir, tirei a jaqueta militar da República. Não ia ter a menor graça levar um tiro chegando à terra prometida.
Quando estou já de camisa de mangas compridas e de colete, pulo para cima e agarro as laterais da abertura, com braços trêmulos, depois dou um salto parcial para ver onde estamos: numa espécie de corredor escuro, sem ninguém à vista. Salto para baixo, e pego as mãos de June, que está começando a cair no sono de novo.
- Fique comigo, não durma - murmuro, e a recolho nos meus braços. - Veja se você consegue se erguer. - June se livra do cobertor. Eu me ajoelho e a ajudo a usar os meus ombros como apoio. Ela cambaleia, respirando pesadamente, mas consegue saltar até a; superfície. Eu a sigo com seu cobertor enfiado debaixo do braço, e depois alcanço a saída com um impulso.
Saímos num beco escuro e estreito, parecido com aquele de onde viemos, e por um instante eu me pergunto se será possível que tenhamos rodeado o túnel e voltado à República. Isso seria realmente genial! Depois de um tempo, contudo, percebo que este lugar tem nada a ver com a República.
O chão é plano e bem pavimentado, sob uma camada irregular de neve, e a parede está completamente coberta de cartazes vivamente coloridos, de soldados sorrindo de orelha a orelha e crianças sorridentes. No canto de todos os cartazes há um símbolo que reconheço após alguns segundos: um pássaro dourado, semelhante a um falcão. Tremendo de empolgação, percebo que ele se parece muito com o pássaro do meu medalhão.
June também repara nos cartazes. Seus olhos estão arregalados e enevoados de febre; de sua respiração emanam frágeis nuvens de vapor. Ao nosso redor há o que parece ser várias tendas militares, cobertas do chão ao topo com os mesmos vividos cartazes. Postes de luz se alinham em ambos os lados da rua em padrões harmoniosos e ordenados. E este local que deve gerar a eletricidade para o túnel e os abrigos subterrâneos. Um vento frio sopra mais neve nos nossos rostos.
De repente, June agarra minha mão. Ela aspira o ar ao mesmo tempo que eu e diz:
- Day... olhe lá.
Ela treme incontrolavelmente apoiada em mim, mas não sei dizer se é por causa da febre, ou por causa do que estamos vendo.
Estendida à nossa frente, espreitando através das lacunas entre os prédios militares, há uma cidade com altos e reluzentes arranha-céus que se elevam através das nuvens baixas e da neve frágil; cada edifício é iluminado por lindas luzes azuis que escapam de praticamente todas as janelas e todos os andares.
Jatos de combate se alinham nos topos dos telhados dos arranha-céus. Todo o panorama é incandescente. Minhas mãos apertam as de June. Nós dois simplesmente ficamos imóveis, incapazes, por um instante, de fazer qualquer coisa. A paisagem é exatamente como meu pai a havia descrito.
Chegamos a uma cidade resplandecente nas Colônias da América.

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