Capítulo 20 - Day
June leva meia hora para finalmente voltar a dormir, sedada com as
drogas que uma enfermeira das Colônias injetou em seu braço. Ela estava chorando
de novo por causa do irmão, e foi como se ela tivesse caído num buraco e se
enrascado em si mesma; seu coração despedaçado estava aberto a quem quisesse
ver. Afirme expressão dos seus olhos escuros havia simplesmente...
desaparecido.
Eu me retraio. E claro que conheço exatamente a dor de perder um
irmão mais velho. Observo seus olhos se agitarem atrás das pálpebras fechadas, provavelmente
imersa em mais um pesadelo do qual não posso livrá-la. Por isso, faço apenas o
que ela sempre faz por mim: passo a mão suavemente no seu cabelo e beijo sua
testa, a face e os lábios úmidos. Não ajuda muito, mas eu faço isso mesmo
assim.
O hospital está relativamente silencioso, mas alguns sons formam
uma leve nuvem de ruídos na minha cabeça: há um débil zumbido que vem das luzes
do teto, e uma espécie de tumulto indistinto nas ruas lá de fora. Como na
República, uma tela instalada na parede transmite uma seqüência de notícias da
frente de batalha. Ao contrário da República, o noticiário está pontilhado de
comerciais de coisas que não consigo compreender, como nas ruas lá fora. Paro
de assistir depois de algum tempo. Fico pensando no modo como minha mãe
consolava o Éden quando ele foi infectado pela praga, o jeito com que ela
sussurrava palavras tranquilizadoras e tocava o rosto dele com suas mãos cheias
de ataduras, John se aproximando da cama com uma tigela de sopa nas mãos.
- Lamento tanto, tanto por tudo! - June
disse.
Vários minutos depois, uma oficial abre a porta do nosso quarto no
hospital e caminha até onde estou. É a mesma soldado que descobriu quem eu era,
e providenciou para que viéssemos para este hospital de vinte andares.
Ela para bem na minha frente e faz uma rápida mesura, como se eu
fosse um oficial ou algo assim. Igualmente surpreendente é o fato de ela ser o
único soldado no quarto conosco. Esses caras não devem nos considerar uma ameaça.
Nada de algemas, nem mesmo um guarda para vigiar nossa porta.
Será que eles sabem que impedimos o assassinato do Primeiro
Eleitor? Se estão financiando os Patriotas, certamente vão descobrir isso mais
cedo ou mais tarde. Talvez desconheçam quejá trabalhamos para os Patriotas.
Razor nos integrou à equipe há muito pouco tempo.
- Suponho que as condições de sua amiga sejam estáveis, não? –
Seus olhos se dirigem à June. Eu apenas faço um sinal afirmativo com a cabeça.
E melhor que ninguém aqui saiba que June é a garota prodígio da República.
- Em vista do seu estado de saúde - a moça acrescenta -, ela vai
precisar ficar aqui até melhorar o suficiente para se movimentar sozinha. Você
é bem-vindo para permanecer aqui com ela; se não quiser, a DesCon Corp terá
prazer em financiar um outro quarto para você.
DesCon Corp, mais um jargão das Colônias que não compreendo, mas nem
penso em começar a questionar a origem da generosidade deles. Se sou famoso o
bastante por aqui para receber tratamento de tapete vermelho em um hospital,
então vou aproveitar, mas não vou abusar.
- Obrigado, mas estou muito bem aqui.
- Vamos providenciar uma cama extra para você - diz ela, apontando
o espaço vazio do quarto. - De manhã voltaremos para ver como vocês estão.
Volto à minha vigília de June. Como a guarda não sai do cômodo, eu
a olho, levanto as sobrancelhas, ela enrubesce.
- Posso fazer alguma coisa pela senhora?
Ela dá de ombros e tenta parecer indiferente.
- Não. Eu só... Quer dizer que você é o Daniel Altan Wing, hem?l –
Ela diz meu nome como se o estivesse avaliando. - O Evergreen Ent não para de divulgar
histórias sobre você nos tabloides dele. O Rebelde da República, O Fantasma, A
Arma Secreta... Eles publicam um apelido e uma foto diferentes para você todos
os dias. Dizem que você escapou de uma prisão em Los Angeles sozinho. Ei, é
verdade que você namorou a cantora Lincoln?
A idéia é tão ridícula que tenho que rir. Eu não sabia que os
colonianos se mantinham a par das cantoras que o governo da República nomeava
para fazer propaganda oficial.
- Lincoln é um pouco velha para mim, você não acha?
Minha risada quebra a tensão, e a soldado ri comigo.
- Bem, pelo menos essa semana você é. Na semana passada a
Evergreen Ent informou que você se esquivou de todas as balas de um pelotão de
fuzilamento, e escapou de ser executado.
A soldado ri novamente, mas eu me mantenho calado.
Não, eu não me esquivei de bala nenhuma. Deixei que meu irmão mais velho
as recebesse no meu lugar.
O riso da soldado se esvanece constrangidamente quando ela vê
minha expressão. Ela pigarreia e diz:
- Nós vedamos aquele túnel pelo qual vocês vieram. Foi o terceiro
que vedamos em menos de um mês. De vez em quando, refugiados da República chegam
aqui igualzinho como vocês fizeram, e as pessoas que vivem em Tribune já se
cansaram de lidar com eles. Ninguém gosta de civis do território inimigo
chegando de repente pra morar na sua cidade natal. Nós costumamos expulsar essa
gente na frente de batalha. Você deu sorte. – A soldado suspira. - Há um tempo,
toda esta região eram os Estados Unidos da América. Você sabe disso, não?
De súbito, meu medalhão pesa no meu pescoço.
- Sei sim.
- Bem, você está a par das inundações? Elas chegaram de repente,
em menos de dois anos, e arrasaram metade do sul cuja altitude era baixa.
Desapareceram lugares dos quais republicanos como você jamais ouviram falar. A Louisiana
sumiu, assim como a Flórida, a Geórgia, o Alabama, o Mississippi, as Carolinas
do Sul e do Norte. Tudo foi tão rápido que dava pra jurar que esses estados
nunca existiram, pelo menos se ainda não desse para ver o todo de alguns dos
edifícios lá longe no oceano.
- E foi por isso que vocês vieram pra cá?
- Aqui no oeste tem mais terra. Você consegue imaginar o número de
refugiados? E então, o oeste construiu uma muralha para evitar que o pessoal do
leste superlotasse seus estados, desde Dakota até o Texas. – Ela bate um punho
na palma da outra mão. - Então a gente teve de construir túneis para entrar na
cidade. Havia milhares deles quando a migração estava no auge, mas aí veio a
guerra. Quando a República decidiu começar a usar os túneis para realizar
ataques-surpresa contra nós, vedamos todos. A guerra está demorando
tanto que a maioria das pessoas nem se lembra que a luta é motivada por uma
disputa de terras. Quando as enchentes finalmente se acalmaram, as coisas aqui
se estabilizaram e nós nos tornamos as Colônias da América. - Ela diz isso com
o peito estufado. - Esta guerra não vai durar muito mais; já faz um tempo que
estamos vencendo.
Eu me lembro de Kaede me dizendo, logo que chegamos a Lamar, que as
Colônias estavam vencendo a guerra. Até então, eu não tinha pensado muito no
assunto -- afinal de contas, o que é a suposição de uma pessoa?
O que é um boato? Mas agora essa oficial está afirmando que as
Colônias estão ganhando.
Nós dois nos calamos quando o tumulto fora do prédio fica mais
alto. Inclino a cabeça. Desde que chegamos ao hospital, multidões têm entrado e
saído, mas eu não havia pensado a respeito. Nesse instante, penso ouvir meu
nome.
- Você sabe o que está acontecendo lá fora? Podemos transferir
minha amiga para um quarto mais silencioso?
A soldado cruza os braços e pergunta:
- Você quer ver a confusão?
Ela faz um gesto para que eu me levante e a siga. A gritaria iá
fora alcançou um nível ameaçador. Quando ela abre as portas giratórias da
varanda e nos leva para o ar da noite, sou cumprimentado por uma lufada de
vento gelado e por um enorme coro de vivas! Luzes faiscantes me deixam cego;
por um instante tudo que posso fazer é ficar lá contra as balaustradas de metal
e absorver a cena. E muito tarde, mas deve haver centenas de pessoas abaixo da
nossa janela, indiferentes ao chão coberto de neve. Todos os olhos estão
concentrados em mim. Muitas pessoas erguem cartazes feitos à mão. Um deles diz:
Bem-Vindo, nosso aliado! Outro diz: O Fantasma está vivo! Leio em
um terceiro: Destrua a República!Há dezenas de cartazes: Day É Nosso
Coloniano Honorário! Bem-vindo a Tribune, Day! Nosso Lar É Seu Lar!
Eles sabem quem sou.
O soldado aponta para mim, sorri para a multidão.
- Esse é o Day!
Mais uma explosão de vivas. Fico paralisado onde estou. O que se
deve fazer quando um monte de gente grita seu nome como se não batessem bem da
cabeça? Não tenho a menor idéia, por isso levanto a mão e aceno, o que os faz
gritar ainda mais alto.
- Você é uma celebridade pra nós - diz a soldado para mim, mais
alto do que o barulho. Ela parece muito mais interessada nisso do que eu. -
Você é o único rebelde que a República não consegue silenciar. Escute o que
estou dizendo: amanhã você vai estar em todos os tabloides. A Evergreen Ent vai
ficar louca para entrevistá-lo.
Ela continua a falar, mas já não presto atenção. Uma das pessoas
segurando um cartaz no alto me chama a atenção. E urna garota com um cachecol
ao redor da boca, e um capuz que lhe cobre parte do rosto.
Mas dá pra ver que é Kaede.
Minha cabeça está zonza. No mesmo instante penso no alarme
vermelho piscante lá do bunker avisando que alguém se aproximava do
esconderijo. E eu também me lembro da pessoa que eu julguei que estivesse nos
seguindo nas ruas da cidade. Era a Kaede. Isso quer dizer que outros 245
Patriotas também estão aqui? Ela está segurando um cartaz quase perdido no
oceano de tantos outros.
Ele diz: Você
precisa voltar. AGORA!
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