Capítulo 22 - Day
Depois que a soldado e eu saímos da varanda e deixamos a multidão
do lado de fora do nosso quarto do hospital, pedi que guardas permanecessem do
lado de fora da porta ("Caso alguns admiradores tentem invadir o quarto",
disse à soldado antes que ela fosse embora), pedi mais cobertores e remédios
para June. Eu não queria me levantar e ver a Kaede de novo da sacada.
Gradativamente, os gritos da multidão começaram a diminuir e tudo acabou
ficando em silêncio. Agora estamos completamente sozinhos, à exceção dos
guardas que vigiam nossa porta.
Já peguei tudo de que precisava, mas permaneço imóvel à cabeceira
de June. Aqui não há nada que eu possa transformar em uma arma, se vamos mesmo
fugir hoje à noite, tudo o que podemos esperar é não ter de lutar com ninguém.
E que só reparem que desaparecemos quando for de manhã.
Eu me levanto e vou até a varanda. A neve no chão lá embaixo está completamente
pisada e escura, com a sujeira das botas. É claro que Kaede não está mais lá.
Absorvo a paisagem das Colônias por um tempo e volto a pensar no cartaz de
Kaede.
Por que ela me diria para voltar para a Republica? Estará tentando
me levar para uma armadilha, ou me prevenir? Mas se ela quisesse nos
prejudicar, por que bateu em Baxter e nos ajudou em Pierra?
Ela até insistiu que fugíssemos antes que os outros Patriotas nos
alcançassem. Volto a deitar ao lado de June, que continua dormindo. Sua respiração
está mais regular agora, e suas faces estão menos coradas do que várias horas
atrás. Ainda assim, não me atrevo a perturbá-la.
Os minutos passam lentamente. Espero para ver se a Kaede vai
tentar de novo. Depois da velocidade estonteante de tudo que nos aconteceu, não
estou acostumado a ficar "enjaulado" assim. De repente, tenho todo o
tempo do mundo.
Um barulho surdo ecoa nas portas da varanda. Fico de pé com um
pulo. Talvez um galho de uma árvore tenha se quebrado, ou uma telha tenha se
soltado. Fico à espera, alerta. Durante um tempo, nada acontece, mas depois
mais um ruído seco atinge o vidro.
Levanto-me da cama e caminho até as portas da sacada. Espreito
cuidadosamente através do vidro. Não vejo ninguém. Meus olhos se fixam no chão
da varanda. Lá, em plena vista, estão duas pedrinhas, um bilhete atado a uma
delas.
Destranco a porta da sacada, faço-a deslizar um pouco, e solto o
bilhete da pedra. Depois tranco a porta novamente, e abro o bilhete.
As palavras foram rabiscadas às pressas:
Venha para baixo, precisamos conversar — K.
Emergência. Amasso o bilhete. O que ela julga ser uma
emergência? Tudo é emergência nesse momento. Kaede havia mesmo nos
ajudado a fugir, mas isso não quer dizer que eu esteja disposto a confiar nela.
Nem um minuto se passou antes que uma terceira pedra atinja o
chão. Desta vez, a mensagem diz:
Se não
vier conversar comigo, vai se arrepender — K.
Fico furioso com essa ameaça. Kaede tem mesmo o poder de nos
denunciar por sabotar o plano dos Patriotas. Permaneço onde estou, relendo o
bilhete amassado. Digo então a mim mesmo: Talvez só por alguns minutos.
É isso aí. Só o tempo suficiente para ver o que a Kaede quer. Depois
volto aqui pra dentro.
Agarro o casaco, respiro fundo e recuo de novo até as portas da
sacada. Meus dedos abrem as portas com o maior cuidado. Um vento frio me
fustiga o rosto quando saio sorrateiramente na varanda, agacho-me, e tranco as
portas da sacada. Se alguém quiser invadir o quarto para machucar June, vai
precisar fazer barulho suficiente para alertar os guardas do lado de fora.
Salto pela lateral da varanda, giro o corpo e me agarro ao parapeito. Vou
descendo até ficar pendurado entre o primeiro e o segundo andares, e então me
solto.
Minhas botas aterram em flocos de neve, com um suave esmigalhar.
Dou uma última olhada para o parapeito do segundo andar, memorizo onde fica na
rua o edifício do hospital, meto o cabelo dentro do casaco e me espremo contra
a parede.
A essa hora, as ruas estão vazias e silenciosas. Espero na lateral
do edifício por um minuto, antes de sair dali. Anda logo, Kaede. Minha
respiração é expelida em curtas nuvens de vapor. Meus olhos vasculham os
refúgios e as fendas ao meu redor, verificando se há perigo, mas estou
completamente sozinho. Você não queria me encontrar aqui fora? Pois bem,
estou aqui.
- Fale comigo - sussurro, contendo a respiração enquanto caminho
ao lado do prédio. Meus olhos procuram patrulhas municipais, mas aqui não há
nenhuma.
De repente, paro. Uma sombra sutil está agachada num dos becos
próximos. Fico tenso, e falo alto o bastante para a pessoa me escutar:
- Saia logo! Sei que você está aí.
Kaede se materializa fora das sombras, e acena para que eu me
junte a ela e sussurra.
- Vamos dar um volta. Ande logo!
Ela se apressa até um estreito beco escondido atrás de uma fileira
de arbustos cobertos de neve. Percorremos a passagem até chegarmos a uma rua
mais larga, para onde Kaede se dirige imediatamente. Apresso-me para ir atrás
dela. Meus olhos examinam os cantos. Avalio todos os lugares por onde eu possa
subir para um andar mais alto, caso alguém tente me atacar de surpresa. Todos
os pelos da minha nuca se eriçam, rígidos de tensão.
Pouco a pouco Kaede diminui a velocidade, até ficarmos lado a
lado. Ela está usando as mesmas calças e botas da tentativa de assassinato que
aconteceu mais cedo naquele dia, mas trocou a jaqueta militar por um manto e um
cachecol de lã. Ela excluiu a faixa preta do rosto.
- Vamos direto ao assunto - digo a ela. - Não quero deixar a June
sozinha por muito tempo. O que você está fazendo aqui?
Tomo a precaução de manter boa distância entre nós, para o caso de
ela decidir bancar a engraçadinha com uma faca ou algo parecido. Parece que
estamos sozinhos, ponto pra ela, mas me certifico de que ficaremos numa da ruas
principais, de onde eu possa fugir com mais facilidade, se precisar. Alguns operários
das Colônias passam apressados por nós, avermelhados pelas luzes dos comerciais
dos edifícios. Os olhos de Kaede brilham com uma ansiedade quase frenética:
essa é uma expressão completamente diferente da habitual.
- Eu não podia escalar a parede até o seu quarto - ela diz. O
cachecol ao redor da sua boca abafa suas palavras, e ela o puxa impacientemente
para baixo. - Os desgraçados dos guardas me ouviriam. Por isso você é o
corredor, não eu. Juro que não estou aqui para prejudicar sua preciosa June. Se
eia está sozinha no quarto, vai ficar legal. Nós não vamos demorar.
- Você seguiu a gente pelo túnel?
Kaede concorda com a cabeça.
- Dei um jeito de me livrar dos entulhos pra conseguir entrar
nele.
- Onde estão os outros?
Ela aperta as luvas que usa, sopra ar quente nas mãos e resmunga
contra o tempo.
- Eles não estão aqui. Só eu. Eu precisava alertar você.
Uma sensação de temor me invade a barriga.
- Sobre o quê? Tem alguma coisa a ver com a Tess.
Kaede para o que está fazendo e me cutuca as costelas com força.
- O plano do assassinato não deu certo. - Ela ergue as mãos antes que
eu possa interromper. - Sei que você já está a par disso. Um
monte de Patriotas foi preso. Um punhado deles fugiu, pelo menos a nossa Tess
escapou. Ela fugiu com alguns dos nossos pilotos e corredores. Pascao e Baxter também
fugiram.
Digo um palavrão. Tess. Sinto uma súbita compulsão de ir atrás
dela para garantir que esteja a salvo e então lembro da última coisa que ela me
disse.
Kaede prossegue com suas informações enquanto caminhamos:
- Não sei onde eles estão agora, mas tem uma coisa que você não
sabe, e que nem eu sabia, até que você e June impediram o
assassinato. Jordan – a garota corredora, lembra-se dela, não é? - descobriu
todas essas informações num drive de computador, e o entregou a um de nossos
hackers.
Ela respira fundo, para, e vira a cabeça para observar o chão. O
vigor costumeiro de sua voz se reduz.
- Day, Razor enrolou todo mundo. Ele mentiu para os Patriotas e
depois os entregou à República.
Paro subitamente de andar.
- O quê?
- Razor nos disse que as Colônias nos contrataram para matar o
Eleitor e começar uma revolução, mas isso não é verdade. Descobri no dia da tentativa
de assassinato que o Senado da República está financiando os Patriotas.
- Ela balança a cabeça. - Dá pra acreditar nisso? A República foi quem
contratou os Patriotas para assassinar Anden!
Fico em silêncio, perplexo. As palavras de June ecoam na minha
cabeça: ela me disse que o Congresso não gostava do seu novo Eleitor, e que, na
opinião dela, Razor estava mentindo. Disse também que as coisas que ele nos
falou não faziam sentido.
- Todos nós fomos apanhados de surpresa, exceto Razor - diz Kaede,
quando não respondo. Recomeçamos a caminhar. - Os senadores querem que Anden
morra. Eles acharam que poderiam nos usar e pôr a culpa na gente. Meu sangue
está tão acelerado, que mal consigo me ouvir falar.
- Por que Razor trairia os Patriotas assim? Ele não está do lado
deles há décadas? E eu que pensei que o Congresso estava tentando evitar uma revolução...
Kaede baixa os ombros de repente; sua respiração é uma nuvenzinha de
vapor.
- Há uns dois anos, Razor foi apanhado trabalhando para os
Patriotas, por isso ele fez um trato com o Congresso: convenceria os Patriotas
a matarem Anden, o jovem revolucionário de pavio curto, e o Congresso
"esqueceria" sua traição. No final, Razor seria o novo
Eleitor, e com você e June trabalhando pra ele, ele acabaria sendo o herói do
povo ou algo parecido. As pessoas pensariam que os Patriotas assumiram o
governo. Razor não quer que os Estados Unidos sejam reconstituídos. Ele quer
apenas se safar e vai se unir a qualquer um que o ajude a fazer isso.
Fecho os olhos. Meu mundo está girando. June havia me alertado
sobre o Razor. Todo esse tempo tenho estado trabalhando para os senadores da
República. São eles que querem Anden morto. Não me surpreende que as
Colônias não tenham idéia do que os Patriotas estão tramando. Abro
os olhos.
- Mas eles fracassaram. Anden continua vivo.
- Anden está vivo - Kaede confirma. - Ainda bem.
Eu devia ter confiado na June o tempo todo. Minha raiva em relação
ao jovem Eleitor perde o sentido. Será que isso quer dizer... que ele realmente
soltou o Éden? Meu irmão está livre e a salvo? Olho desconfiado para
Kaede.
- Você veio até aqui só pra me dizer isso?
- É isso aí. Sabe por quê? - Ela se inclina mais para perto, até o
nariz estar quase tocando o meu. - Anden está quase perdendo o controle do
país. Falta muito, muito pouco para o povo se revoltar contra ele. - Ela junta
dois dedos para enfatizar o que disse. - Se ele perder o poder, a gente vai ter
um trabalhão para impedir Razor de assumir a República. Neste instante, Anden está
lutando para controlar os militares, enquanto Razor e a Comandante Jameson
estão tentando tirar dele esse controle. O governo está quase se dividindo em
dois.
- Espere aí! Você disse "Comandante Jameson"?
- Havia a transcrição de uma conversa gravada entre ela e Razor
naquele drive de computador. Lembra que nós demos de cara com ela a bordo do RS
Dynasty? - responde Kaede. - Razor fingiu não ter noção de que ela estaria lá, mas
acho que ela te reconheceu. Acho que ela queria ver você com os próprios
olhos, para confirmar que você fazia mesmo parte dos planos de Razor. - Kaede
faz uma careta e continua: - Eu devia ter desconfiado que tinha alguma coisa
errada com Razor. Eu também me enganei sobre Anden.
- Por que você se importa com o que acontecer à República? -
pergunto. O vento lança lufadas de neve da rua, ecoando a frieza das minhas
palavras. - E por que agora?
- Eu estava participando por causa do dinheiro, confesso - Kaede
sacode a cabeça; sua boca expressa uma linha tensa. - Mas, em primeiro lugar,
não recebi dinheiro algum, porque o plano furou. Depois, eu não me alistei para
destruir o país, para entregar todos os civis da República de volta a outro maldito
Eleitor. - Então seu tom de voz baixa, e seus olhos ficam embaçados. - Sei
lá... Talvez eu tivesse esperando que os Patriotas me oferecessem um objetivo
mais nobre do que simplesmente ganhar dinheiro. Ajudar a unir novamente essas
duas grandes nações rachadas. Isso teria sido irado.
O vento do inverno fustiga meu rosto. Kaede não precisa me dizer
por que percorreu esse longo caminho para chegar até mim. Depois de escutar o que
ela disse, eu sei por quê. Lembro o que a Tess me disse em Lamar: "Todo
mundo está de olho em você, Day. Estão esperando para ver o que você vai
fazer em seguida." Talvez seja a única pessoa capaz de salvar
Anden agora. Sou a única pessoa a quem o povo da República dará ouvidos.
Nós nos calamos e nos escondemos ainda mais nas sombras, quando alguns
policiais passam apressadamente. A neve se desprende das suas botas. Eu os
observo desaparecer no último beco do qual saímos. Aonde estarão indo?
Quando Kaede continua a andar com o cachecol cobrindo sua boca de novo,
pergunto:
- E as Colônias?
- Que é que tem? - ela resmunga, através do cachecol.
- Por que não deixar a República desmoronar e as Colônias
assumirem?
O que me diz dessa idéia?
- Nunca se tratou de deixar as Colônias vencerem. Os Patriotas
visam a recriar os Estados Unidos, da melhor maneira possível.
Kaede faz uma pausa, e gesticula para que caminhemos por outra
rua. Andamos mais dois quarteirões antes de ela nos parar em frente a uma enorme
fileira de edifícios arruinados.
- Que é isto? - pergunto à Kaede; ela, porém, não responde.
Examino o prédio à minha frente. Tem cerca de trinta andares de altura, mas se
estende por várias quadras da cidade. A cada dez metros, entradas minúsculas e
escuras estão talhadas no andar debaixo do conjunto. Água goteja das laterais, das
janelas e das varandas deterioradas, esculpindo feias fileiras de fungos nas
paredes. A estrutura se estende ao longo da rua onde estamos. Vista do céu deve
parecer um gigantesco bloco negro de concreto.
Fico boquiaberto. Depois de ver as luzes dos arranha-céus das
Colônias, é chocante constatar que um edifício assim existe por aqui.
Já vi conjuntos de edifícios abandonados da República com
aparência melhor do que esta. As janelas e os corredores são pequenos e
grudados uns nos outros que nenhuma luz poderia alcançar muita coisa dentro
deles. Eu espreito para dentro de uma das entradas,negras.
Escuridão, um estranho vazio. O som de água gotejando e de débeis
pisadas ecoa. De vez em quando, vejo uma luz bruxuleante, como se alguém estivesse
lá com uma vela. Olho para os andares superiores. A maioria das janelas está
rachada e estilhaçada, ou simplesmente não existe mais. Algumas têm fitas de
plástico de um lado a outro. Vasos de planta antigos nas varandas são
posicionados debaixo de goteiras, e várias sacadas têm fileiras de roupas
esfarrapadas penduradas nos parapeitos. Deve ter gente morando lá. Esse
pensamento me faz estremecer. Olho uma vez para trás, vejo os arranha-céus
reluzentes no quarteirão logo atrás de nós, e depois volto a observar esta
estrutura de cimento apodrecendo.
Um tumulto no fina! da rua desperta nossa atenção. Desvio o olhar
do conjunto em ruínas. A um quarteirão de distância, uma senhora de meia-idade com
botas masculinas e um casaco surrado, faz um súplica a dois homens vestidos com
pesados vestuários plásticos. Ambos usam visores claros que lhes cobrem o rosto
e grandes chapéus de abas largas.
- Dá só uma olhada - Kaede sussurra, e nos arrasta para uma das
entradas escuras entre duas portas no nível térreo do conjunto. Inclinamos ligeiramente
a cabeça, para que possamos ouvir o que está acontecendo.
Embora estejam a urna boa distância, a voz da mulher se faz ouvir
nitidamente no ar silencioso e gelado.
- Eu só deixei de pagar uma parcela este ano. Posso correr para o
banco logo que abrir e lhes dar todas as Notas que eu tenho...
- E a política da DesCon, senhora - um dos homens a interrompe. –
Não podemos investigar crimes para clientes que vêm atrasando pagamentos à polícia
local.
A mulher está em lágrimas, e torce as mãos com tanta força, que
tenho a impressão de que vai ficar sem pele.
- Deve haver alguma coisa que vocês possam fazer! Alguma coisa que
eu possa dar a vocês ou a outro departamento policial. Eu...
- Todos os departamentos da polícia seguem a política da DesCon. Quem
é seu empregador? - é o outro homem quem fala agora.
- A Cloud Corp - responde a mulher, esperançosa. Como se essa
informação pudesse persuadi-los a mudar de idéia.
- A Cloud Corp desencoraja seus trabalhadores de saírem às ruas
depois das 11 da noite. - Ele aponta com a cabeça para o conjunto de edifícios
e diz:
- Se a senhora não voltar para casa, a DesCon vai reportá-la à
Cloud, e a senhora pode perder seu emprego.
- Mas roubaram tudo que eu tenho! - A pobre senhora começa a
soluçar alto. - Minha porta está completamente despedaçada, e todos os meus
alimentos e as minhas roupas sumiram. Os homens que fizeram isso moram no meu
andar; se vocês puderem vir comigo, podem prendê-los, eu sei onde eles moram.
Os dois homens já começaram a se afastar. A mulher sai correndo
atrás deles, suplicando ajuda, embora ambos continuem a ignorá-la.
- Mas a minha casa... se vocês não fizerem alguma coisa, como é
que eu... - ela não para de dizer. Os homens repetem suas advertências de que
vão denunciá-la.
Quando foram embora, eu me viro para Kaede.
- O que foi isso?
- Não foi óbvio? - responde Kaede, sarcasticamente, quando saímos
da escuridão do prédio e chegamos à rua.
Ficamos calados. Finalmente, Kaede explica:
- A classe trabalhadora entra pelo cano em tudo que é lugar, não
é? Minha teoria é: as Colônias são melhores do que a República em alguns aspectos,
mas acredite se quiser, o inverso também é verdade. Não existe a tal utopia
burra que tu fantasia, Day. Simplesmente não existe. Eu não tinha por que dizer
isso antes; é uma coisa que você precisava ver com os próprios olhos.
Começamos a caminhar de volta para o hospital. Mais dois soldados
das Colônias passam por nós, sem qualquer interesse. Um milhão de pensamentos gira
na minha cabeça. Meu pai nunca deve ter posto os pés nas Colônias ou, se o fez,
apenas passou os olhos pela superfície, da mesma forma que June e eu fizemos
quando chegamos. Sinto um nó na garganta.
- Você confia em Anden? - pergunto após um momento. - Vale a pena salvá-lo?
Vale a pena salvar a República?
Kaede faz vários desvios. Finalmente, para perto de uma loja com
telas em miniatura na vitrine, cada uma das quais transmitindo programação
diferente sobre as Colônias. Kaede nos conduz para uma pequenina transversal da
loja, onde a escuridão da noite nos engole. Ela para e gesticula para as telas
dentro da loja. Lembro que passei por uma loja assim no nosso caminho para a
cidade.
- A s Colônias sempre exibem notícias surrupiadas das conexões sem
fio da República. Eles têm um canal todinho pra isso. Este resumo de notícias vem
se repetindo desde a tentativa fracassada de assassinato.
Meus olhos vagueiam pelas manchetes do monitor. A princípio eu
apenas olho fixamente e sem expressão, perdido em pensamentos agitados sobre os
Patriotas, mas, no momento seguinte, me dou conta de que a transmissão não é
sobre escaramuças na frente de batalha nem notícias sobre as Colônias, mas,
sim, é sobre o Primeiro Eleitor da República. Uma onda de desagrado me
percorre instintivamente ao ver Anden na tela. Eu me esforço para ouvir o
noticiário, e me pergunto de que modo as Colônias interpretariam os mesmos
fatos.
Uma legenda aparece sob o discurso gravado de Anden. Eu a leio sem
poder acreditar:
O ELEITOR LIBERTA IRMÃO CAÇULA
DE DAY, O NOTÓRIO REBELDE. FARÁ UM
PRONUNCIAMENTO PÚBLICO AMANHÃ,
NA CAPITAL TOWER.
- A partir de hoje - diz o Eleitor, num vídeo pré-gravado - Éden
Bataar Wing está oficialmente liberado do serviço militar e, como agradecimento
por sua colaboração, está igualmente isento das Provas. Todos os outros doentes
que eram transportados ao longo da frente de batalha já foram libertados e
enviados de volta para suas famílias.
Preciso esfregar os olhos e reler as legendas.
Elas continuam lá: o Eleitor libertou Éden.
De súbito, já não sinto o ar gelado. Não sinto nada. Minhas
pernas estão bambas. Minha respiração acompanha o ritmo rápido dos meus
batimentos cardíacos. Isso não pode estar certo. O Eleitor está provavelmente
anunciando o assunto em público para me atrair de volta à República. Ele está
tentando me comprar e ainda por cima bancar o bonzinho. Não é possível que ele tenha
libertado Éden e todos os demais, inclusive o menino que vi no trem, por livre
e espontânea vontade. De jeito nenhum!
De jeito nenhum? Mesmo depois de tudo que June me disse, mesmo
depois do que Kaede acabou de dizer? Mesmo agora, não confio em Anden? Qual é o
meu problema?
Então, à medida que continuo assistindo, o discurso gravado do
Eleitor dá lugar a um vídeo que mostra Éden sendo escoltado para fora de um
tribunal, sem algemas e vestindo roupas que geralmente são apropriadas a um filho
de uma família abastada.
Seus cachos louros estão bem penteados. Ele examina as ruas com olhos
incrédulos, mas está sorrindo. Enterro a mão na neve, numa tentativa de
me equilibrar. Éden está com aparência saudável, bem cuidada. Quando filmaram
isso?
O noticiário com Anden finalmente acaba, e agora o vídeo mostra
imagens da tentativa fracassada de assassinato, seguidas por cenas de batalhas
no fronte. As legendas são completamente diferentes das que eu havia visto na República:
FRACASSA TENTATIVA DE ASSASSINATO
DO NOVO PRIMEIRO ELEITOR DA REPÚBLICA,
O SINAL MAIS RECENTE DE PERTURBAÇÃO
NA REPÚBLICA
A legenda é divulgada por uma linha menor no canto da tela, e que diz:
ESTA TRANSMISSÃO É PATROCINADA PELA EVERCREEN ENT. O símbolo circular já
conhecido figura ao lado.
- Decida por si só o que pensa de Anden - Kaede resmunga. Ela para
e tira flocos de neve das pestanas.
Eu estava errado. A certeza disso me assenta no estômago
como um peso morto, uma rocha de remorso por ter antagonizado June tão
violentamente quando ela tentou me explicar tudo isso no abrigo subterrâneo.
Como eu pude dizer todas aquelas coisas horríveis para ela? Penso
nos anúncios esquisitos e perturbadores que vi aqui, nas habitações em ruínas dos
pobres, no desapontamento que sinto ao saber que as Colônias não são o farol
brilhante idealizado por meu pai. Seu sonho de arranha-céus reluzentes e uma
vida melhor era apenas isso.
Então me lembro do sonho sobre o que eu faria depois que toda esta
história terminasse: eu correria para as Colônias com June, Tess, Éden, começaria
uma vida nova e deixaria a República para trás. Talvez eu venha tentando fugir
para o lugar errado e escapar das coisas erradas. Penso em todas as vezes em
que entrei em conflito com soldados. No ódio que eu sentia por Anden e por
todos que cresciam ricos. Depois visualizo as favelas onde cresci. Desprezo a
República. Quero que ela desmorone, certo?
Mas só agora faço a distinção: desprezo as leis da República, mas
amo a República. Amo o povo. Não estou fazendo o que estou fazendo pelo
Primeiro Eleitor; estou fazendo isso por eles.
- Os alto-falantes da Capitol Tower ainda estão conectados aos
telões? - pergunto à Kaede.
- Até onde eu sei, estão - ela responde. - Com toda a agitação das
últimas quarenta e oito horas, ninguém reparou que a fiação foi modificada.
Meus olhos visam os telhados, onde aviões de caça se enfileiram à
espera de novos vôos.
- Você é mesmo uma piloto tão boa quanto diz?
Kaede encolhe os ombros e sorri.
- Sou melhor ainda.
Lentamente, começo a conceber um plano.
Mais dois soldados das Colônias passam correndo. Desta vez, uma
sensação de angústia me percorre o pescoço. Esses soldados, como os mais recentes
que vimos, também entram no beco que atravessamos. Certifico-me de que não há
mais nenhum deles vindo e corro até a escuridão da rua.
Não, não, agora não.
Kaede me segue de perto.
- O que foi? Tu ficou branco feito uma folha de papel.
Eu a havia deixado sozinha e vulnerável num lugar que julguei ser
nosso paraíso de salvação. Eu a abandonei no covil dos lobos. E se alguma coisa
acontecer a ela por minha causa... Começo a correr desesperadamente.
- Acho que
eles estão indo ao hospital para prender June.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)