Capítulo 23 - June

Acordo bruscamente do meu sonho, ergo a cabeça e meus olhos vasculham a área. A ilusão de Metias desaparece. Estou num quarto de hospital e Day desapareceu. É o meio da noite. Será que já estivemos aqui antes? Tenho uma vaga lembrança de Day à minha cabeceira, e dele indo até a varanda para cumprimentar uma multidão que o ovacionava.
Agora, ele não está aqui. Aonde terá ido?
Levo um instante, zonza como estou, para perceber o que me acordou. Não estou sozinha no quarto. Há uns seis soldados da Colônia no recinto. Uma deles, alta e de cabelo comprido, aponta a arma para mim.
- É essa aí? - pergunta ela, mantendo-me na sua linha de fogo.
Um soldado mais velho concorda com a cabeça.
- E ela mesma. Não sabia que Day estava escondendo um soldado da República. Essa garota é simplesmente June Iparis, a mais célebre prodígio da República. A DesCon vai ficar contente. Essa prisioneira vai valer um bocado de grana - ele sorri friamente para mim. - Conta aqui pra gente, minha cara, onde está o Day?
Passaram-se dezesseis minutos. Os soldados prenderam minhas mãos nas costas com um par de algemas. Minha boca está amordaçada. Três deles ficam perto da porta aberta do quarto, enquanto os outros vigiam a sacada. Solto um gemido. Embora eu já esteja sem febre, e minhas articulações não doam, minha cabeça continua zonza. Onde está o Day?
Um dos soldados fala num fone de ouvido.
- Sim - ele faz uma pausa. - Nós vamos transferi-la para uma cela. A DesCon vai conseguir muita informação boa dessa garota. Vamos mandar Day pra ser interrogado logo que a gente conseguir botar as mãos nele.
Outro soldado está mantendo a porta aberta com a bota. Deduzo que estejam esperando por uma maca para me levarem daqui. Isso quer dizer que tenho menos de dois ou três minutos para me safar desta situação.
Tento me acostumar com a mordaça, contenho minha náusea e me obrigo a ficar calma. Meus pensamentos e lembranças estão se emaranhando.
Pisco, e me pergunto se estou tendo alucinações. Os Patriotas estão sendo financiados pela República. Por que não percebi isso antes?
Era muito óbvio, desde o princípio - móveis requintados no apartamento, a facilidade com que Razor nos levava de um lugar para outro sem ser apanhado...
Observo o soldado continuar a falar no fone de ouvido. Como vou poder alertar o Day? Ele deve ter saído pelas portas da varanda; quando voltar, eu já terei ido e os soldados estarão aqui, prontos para interrogá-lo.
Talvez até pensem que somos espiões da República. Passo várias vezes um dedo no meu anel de clipes de papel. O anel de clipes de papel.
Meu dedo para de se mover. Em seguida, eu o tiro pouco a pouco do dedo anular e tento desenrolar os fios do anel de metal. Um soldado me olha de relance, mas fecho os olhos e gemo baixinho de dor através da mordaça. Ele volta a conversar. Meus dedos percorrem os fios em espiral e os endireitam. Os clipes de papel foram torcidos seis vezes. Desdobro as primeiras duas pontas, depois endireito o resto do clipe de papel e o moldo no que espero que seja uma forma estendida de um Z. Esse movimento provoca uma cãibra dolorosa nos meus braços.
De repente, um dos soldados na sacada para de falar e examina as ruas lá embaixo. Permanece assim por algum tempo, com os olhos vasculhando tudo. Se ouviu Day, ele deve ter desaparecido de novo. O soldado esquadrinha os telhados, depois se desinteressa e volta à sua postura original. Ouço pessoas falando ao longe no corredor e o som inequívoco de rodinhas no chão azulejado. Estão trazendo a maca.
Preciso me apressar. Insiro um, depois dois clipes de papel dobrados no cadeado das minhas algemas. Meus braços estão me matando de dor, mas não posso parar agora. Cautelosamente, empurro um dos fios ao redor do cadeado, sinto-o raspar o interior dele até finalmente alcançar o tambor. Torço o clipe, e empurro o tambor para o lado.
- A DesCon está a caminho, com reforços - murmura um soldado. Quando ele fala, mexo no segundo clipe de papel e escuto o cadeado fazer um clique minúsculo e quase imperceptível. Dois soldados e uma enfermeira entram com a maca no meu quarto, param um momento no portal e rolam a maca na minha direção. O cadeado das minhas correntes se abre; sinto as algemas saindo das minhas mãos com um tinido baixinho. Um dos soldados concentra os olhos azuis-claros em mim e franze os lábios grossos. Ele repara na sutil mudança da minha expressão e ouviu o som do clique também. Seus olhos se fixam rapidamente nos meus braços.
Se quero tentar me escapar, agora é minha única chance. De repente, viro o corpo para o lado da cama e salto. As correntes caem na cama e meus pés alcançam o chão. Sinto tontura, como se uma cachoeira estivesse me atingindo, mas consigo me controlar.
O soldado com a arma apontada para mim grita um alerta, mas ele é lerdo demais. Chuto a maca o mais forte que posso, ela tomba, provocando a queda de um soldado. Outro soldado me agarra, mas eu me esquivo e ele não consegue me prender. Meus olhos focalizam a varanda.
Mas lá também ainda há três soldados, que correm para me atacar. Driblo dois deles, mas o terceiro me pega pelos ombros e me dá uma gravata. Ele me atira no chão e me deixa sem fôlego. Luto freneticamente para me soltar.
- Fique parada aí! - exclama um deles, enquanto outro tenta colocar um novo par de algemas nos meus pulsos. Ele solta um uivo quando giro o corpo e meto os dentes com vontade no seu braço.
Não adianta nada. Sou capturada, estou presa.
De súbito a porta de vidro da sacada se espatifa em um milhão de cacos. Os soldados, perplexos, giram o corpo para ver o que aconteceu. Tudo está rodando. No meio dos gritos e das pisadas, vejo duas pessoas invadindo o quarto, vindas da varanda. Uma delas é uma garota que reconheço: Kaede?, penso, incrédula.
A outra pessoa é Day.
Kaede chuta um soldado no pescoço; Day avança para o soldado que me segura e o derruba no chão. Antes que qualquer soldado possa reagir, Day ataca de novo. Ele agarra minhas mãos e me levanta.
Kaede já está no parapeito da sacada.
- Não atirem neles! - ouço um soldado gritar atrás de nós. – Eles valem uma nota preta!
Day nos leva rapidamente para a sacada e depois se joga para a beirada da grade com apenas um salto. Ele e Kaede tentam fazer com que eu fique ereta, quando dois outros guardas correm na nossa direção.
Mas meu corpo começa a desabar. Minha súbita explosão de energia não é páreo para minha doença. Estou muito debilitada. Day pula do peitoril e se ajoelha ao meu lado. Kaede solta um grito, ataca um dos soldados, que cai ao chão.
- Encontro vocês lá! - ela grita para nós e corre para dentro do quarto, se esquivando dos guardas. Ela não se deixa agarrar por eles, e desaparece pelo corredor.
Day pega meus braços e os põe ao redor do seu pescoço, dizendo:
- Segura firme.
Quando se apruma, aperto minhas pernas em volta dele e me agarro às suas costas o mais forte que posso. Ele sobe no peitoril da varanda; suas botas esmigalham os cacos dos vidros das portas, e ele salta para o patamar do segundo andar. Compreendo imediatamente aonde estamos indo. Para o telhado, onde aviões de caça se enfileiram. Kaede está subindo pela escada. Day e eu vamos pegar um atalho.
Seguimos até o parapeito do segundo andar. Os cabelos de Day roçam meu rosto quando ele consegue alcançar o patamar do terceiro andar. Sinto sua respiração acelerada, seus músculos rígidos na minha pele.
Faltam ainda dois andares. Um dos soldados tenta nos seguir, mas muda de idéia e corre de volta para dentro, para pegar a escada. Day luta para se equilibrar, quando salta para mais um degrau. Estamos quase no telhado. Os soldados começam a se espalhar no gramado abaixo. Posso vê-los apontando as armas para nós. Day trinca os dentes e me coloca no parapeito.
-Vá primeiro - diz, e me ajuda a me erguer.
Agarro o parapeito, reúno toda a minha força e puxo meu corpo para cima. Quando finalmente consigo alcançar o peitoril, dou meia-volta e agarro a mão de Day. Ele também salta para o telhado. Uma faixa vermelho- escuro mancha sua mão. Ele deve ter se machucado na subida.
Sinto vertigens.
- Sua mão... - começo a dizer, mas ele apenas balança a cabeça para mim, passa o braço pela minha cintura e nos leva para o avião de caça mais próximo no telhado. Soldados começam a surgir aos borbotões pela porta de entrada do telhado: vejo com clareza alguém que corre mais rapidamente em nossa direção: Kaede.

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