Capítulo 26 - Day
Quando chego à Capital Tower, estou encharcado de suor. Meu corpo arde
de dor. Caminho até a lateral do prédio que não dá de frente para a praça, depois
estudo a multidão, enquanto as pessoas me empurram para passar em ambas as
direções. Em toda a nossa volta há telões ofuscantes, e todos exibem exatamente
a mesma imagem: a do jovem Eleitor, que suplica em vão ao povo que volte para
casa, e fique a salvo, que se disperse antes que a situação fuja de controle.
Ele está tentando confortar as pessoas ao relacionar seus planos para reformar
a República, eliminar as Provas e mudar a maneira em que são determinadas as
atribuições de carreira. Mas dá pra dizer que esse papinho de cerca-lourenço
está longe de satisfazer a multidão. Embora Anden seja mais velho e sábio do
que June e eu, falta a ele algo essencial.
As pessoas não acreditam no que ele diz, elas não acreditam nele. Aposto
que o Congresso está se deliciando com tudo isso. Razor também. Será que Anden
sabe que Razor foi o mentor do assassinato? Estreito os olhos e salto para
agarrar a marquise inferior do segundo andar do edifício. Tento fingir que June
está atrás de mim, me incentivando.
Os alto-falantes parecem mesmo estar com a fiação trocada como
disse a Kaede, quando estávamos em Lamar. Eu me inclino na estreita marquise no
topo do andar, para analisar os fios. E, a fiação foi alterada da mesma forma que
fiz quando conheci June naquele beco à meia-noite, e lhe pedi remédios para
curar a praga através do sistema de alto-falantes. Exceto que, desta vez, não
vou falar para uma viela escura, mas para toda a capital da República. E para
todo o país.
O vento forte fustiga meu rosto e sibila nos meus ouvidos, me
obrigando a ajustar minha postura constantemente. Eu poderia morrer agora
mesmo. Não tenho como saber se os soldados no alto dos edifícios vão me
derrubar a tiros antes que eu possa me abrigar com segurança atrás da parede de
vidro blindado de uma varanda, a alguns metros acima do resto da multidão. Talvez
reconheçam quem sou e não atirem.
Escalo a lateral do prédio até alcançar o décimo andar, o mesmo em
que fica a varanda do Eleitor. Agacho-me um instante para olhar para baixo. No momento
em que eu virar a esquina deste edifício, todo mundo vai me ver. A multidão
está basicamente concentrada neste lado; os rostos focalizados no Primeiro
Eleitor; os punhos erguidos expressam a raiva dele. Mesmo daqui, consigo ver
que muitos deles têm uma mecha escarlate pintada no cabelo.
Aparentemente, as tentativas da República de declarar a atitude
ilegal não surtem efeito quando todo mundo resolve desrespeitá-la. Nas
extremidades da praça, a polícia municipal e os soldados lutam impiedosamente
com seus cassetetes, empurrando as pessoas para trás, com fileiras de escudos
transparentes. Fico surpreso por não haver tiroteio.
Minhas mãos começam a tremer de raiva. Existem poucas coisas tão
intimidadoras quanto centenas de soldados da República usando vestimentas antimotim
sem identidade, posicionados em filas soturnas e ameaçadoras contra uma
multidão de manifestantes desarmados. Achato o corpo contra a parede e inalo um
pouco o ar frio da noite, lutando para me acalmar.
Lutando para me lembrar de June, do irmão de June, do Primeiro
Eleitor, e também de que por trás de algumas dessas máscaras sem rosto da
República há pessoas boas que têm pais, irmãos e filhos. Espero que Anden seja
a razão pela qual nenhum tiro tenha sido disparado, que ele tenha ordenado a
seus soldados para não atirar na multidão. Preciso acreditar nisso. De
outra forma, jamais convencerei o povo do que vou dizer.
Não tenha medo, sussurro para mim mesmo, com os olhos
apertados quase fechando. Você não pode se da a esse luxo.
Então saio das sombras e corro ao longo da marquise até virar a
quina do prédio e pulo para a primeira varanda que encontro. Estou de frente
para a praça central. O vidro protetor da sacada termina a cerca de trinta
centímetros da minha cabeça, mas ainda sinto o vento silvando lá de cima. Tiro
o boné e o jogo por cima do vidro. Ele flutua até o chão, sendo carregado de lado
pelo vento. Meu cabelo se desprende em ondas ao redor do meu rosto.
Dobro o corpo, torço um dos fios dos alto-falantes, e seguro o
alto-falante como se fosse um megafone. E espero. A princípio, ninguém repara
em mim, mas logo um rosto se vira na minha direção, provavelmente atraído pelo
brilho do meu cabelo, e depois alguns rostos, e mais outros se concentram em
mim. É um pequeno grupo. Esse grupo vai aumentando, e em breve soma várias
dúzias, todas apontando para mim. Os grunhidos e os cânticos raivosos vindos lá
debaixo começam a diminuir. Eu me pergunto se June estará me vendo. Os soldados
enfileirados em outros telhados miram suas armas em mim, mas não atiram. Não
sabem que atitude tomar a meu respeito, numa indefinição tensa e constrangida.
Quero fugir, fazer o que sempre faço e sempre fiz nos últimos
cinco anos da minha vida. Escapar, fugir nas sombras. Mas, desta vez, fico
firme. Estou cansado de fugir.
A multidão fica mais silenciosa à medida que cada vez mais rostos
se elevam para me olhar. A princípio, escuto uma tagarelice incrédula, e até algumas
risadas. Aquele lá não pode ser o Day, eu os imagino resmungando entre
si. Deve ser um impostor. Entretanto, quanto mais eu fico aqui, mais alto
chegam suas vozes. Neste instante, todos se viram para me ver. Meus olhos
vagueiam até onde Anden está na sua varanda; até ele está olhando para mim
agora. Prendo a respiração, esperando que ele não decida mandar atirarem em
mim. Será que ele está do meu lado?
A multidão começa a gritar meu nome. Day! Day! Day! Mal posso acreditar no que ouço. As pessoas
estão entoando o meu nome, e suas vozes ressoam em todos os quarteirões e em
todas as ruas. Permaneço imóvel onde estou, ainda agarrando meu megafone
improvisado, sem conseguir desviar os olhos da multidão. Levanto o megafone até
meus lábios e grito:
- Povo da República! Vocês estão me ouvindo?
Minhas palavras ecoam de todos os alto-falantes da praça e, pelo
que sei, de todos os alto-falantes do país. Isso me assusta. As pessoas lá em baixo
soltam hurras tão fortes que fazem o chão tremer. Os soldados devem ter
recebido uma ordem apressada de alguém do Congresso, porque vejo alguns deles
elevar suas armas. Uma bala zune no ar e atinge o vidro, faiscando. Fico
imóvel.
O Eleitor faz um rápido gesto para os guardas ao seu lado, e todos
pressionam uma das mãos nos ouvidos e falam nos seus microfones. Talvez ele
esteja ordenando aos soldados que não me machuquem. Quero acreditar que seja
isso.
- Eu não faria isso se eu fosse vocês, membros do Congresso -
grito, na direção de onde partiu a bala solitária. Fique firme, digo a
mim mesmo. Os hurras do povo se transformam em um rugido. - Vocês não querem
uma rebelião, querem?
Day! Day! Day!
- Hoje, autoridades do Congresso, eu dou um ultimato a vocês –
meus olhos se deslocam para os telões. - Vocês prenderam inúmeros Patriotas por
um crime pelo qual vocês próprios são responsáveis. Libertem
imediatamente todos eles. Cada um deles. Do contrário, vou convocar o
povo a entrar em ação, e vocês terão que lidar com uma revolução diferente da que
vocês esperavam.
Os civis gritam sua aprovação. Os hurras continuam em um volume
febril.
- Povo da República! - Eles continuam a me saudar com vivas. –
Ouçam o que vou dizer. Hoje, dou a todos vocês um ultimato.
Seus hurras prosseguem até se darem conta de que me calei, e então
eles também se aquietam. Aproximo o megafone da boca ainda mais.
- Meu nome é Day - minha voz enche o ar. - Lutei contra as mesmas
injustiças contras as quais vocês estão protestando hoje aqui. Sofri as mesmas coisas
que vocês. Como vocês, vi meus amigos e minha família morrerem nas mãos dos
soldados da República.
Rejeito as lembranças que ameaçam tomar conta de mim. Preciso
continuar firme.
- Passei fome, fui espancado e humilhado. Fui torturado, insultado
e reprimido. Vivi nas favelas com vocês. Arrisquei a vida por vocês. E vocês
arriscaram suas vidas por mim. Arriscamos nossas vidas por nosso país,
não pelo país em que vivemos agora, mas pelo país que esperamos ter. Vocês são todos,
cada um de vocês, heróis.
Vivas eufóricos reagem às minhas palavras, mesmo quando os guardas
lá embaixo tentam em vão derrubar e prender os que se dispersavam, enquanto outros
soldados tentam inutilmente desativar o sistema de alto-falantes cuja fiação
foi trocada. Consigo perceber que o Congresso está temeroso. Eles têm medo de
mim, como sempre tiveram. Então, continuo com firmeza: conto ao povo o que
aconteceu à minha mãe, aos meus irmãos e à June. Conto a eles sobre os
Patriotas e sobre a tentativa do Senado de assassinar Anden.
Espero que Razor esteja escutando isso tudo, furioso. Em todo esse
período, a atenção das pessoas jamais diminui.
- Vocês confiam em mim? - grito. A multidão responde em uníssono. O
mar de gente e seus rugidos ensurdecedores são impressionantes. Se minha mãe
ainda estivesse viva, se papai e John estivessem aqui, não estariam sorrindo
para mim agora? Respiro fundo e estremeço. Termine o que você veio fazer,
cara! Focalizo as pessoas, e o jovem Eleitor. Reúno minhas forças e em seguida
digo as palavras que nunca pensei que diria: - Povo da República, conheçam
seu inimigo. Seu inimigo é o estilo de vida que a República nos impõe, as
leis e tradições que nos emperram, o governo que nos trouxe aqui. O falecido
Primeiro Eleitor. O Congresso.
Levanto o braço e aponto para Anden:
- Mas o novo Primeiro Eleitor NÃO... É... SEU... INIMIGO!
O povo fica em silêncio. Seus olhos estão fixos em mim.
- Vocês acham que o seu Congresso quer terminar com as Provas, ou ajudar
suas famílias? Isso é mentira!
Aponto para Anden ao dizer isso, dispondo-me a, pela primeira vez,
acreditar nele.
- O Primeiro Eleitor é jovem e ambicioso, e NÃO É como o pai
dele. Ele quer lutar por vocês, da mesma forma que eu luto por
vocês, mas primeiro precisa que vocês lhe deem essa oportunidade. E se vocês o
apoiarem com seu poder, e o ajudarem a se levantar, ele vai nos levantar a
todos. Vai mudar as coisas para todos nós, um passo de cada vez. Ele pode
construir o país que todos nós esperamos ter. Vim aqui esta noite por todos
vocês; e por ele! Vocês confiam em mim? - Levanto a voz e repito: - Povo
da República: vocês confiam em mim?
Silêncio. Depois, alguns vivas. Em seguida, mais vozes repetem a
exclamação.
As pessoas erguem os olhos e punhos para mim, sem parar de gritar,
numa impressionante mudança.
- Então levantem suas vozes por seu Eleitor, como eu fiz, e ele
vai levantar a voz dele por vocês!
Os hurras são ensurdecedores e abafam todo o resto. O jovem
Eleitor mantém os olhos em mim e eu, afinal, compreendo que June tem razão. Não
quero ver a República sucumbir: quero vê-la mudar.
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