Capítulo 27 - June
Passaram-se dois dias. Ou, mais precisamente, cinqüenta e duas
horas e oito minutos desde que Day subiu ao topo da Capital Tower e anunciou seu
apoio ao Primeiro Eleitor. Sempre que fecho os olhos, ainda o vejo lá, com o
cabelo brilhando como um farol de luz na noite, suas palavras soando claras e
fortes pela cidade e pelo país. Sempre que sonho, sinto o ardor do seu último
beijo nos meus lábios, o fogo e o medo em seus olhos.
Todas as pessoas da República o ouviram naquela noite. Ele
conferiu poder a Anden, e Anden conquistou o país, tudo num só golpe. Este é
meu segundo dia num quarto de hospital nos arredores de Denver. A segunda tarde
sem Day ao meu lado. Num quarto vários andares abaixo, Day está sendo submetido
aos mesmos exames, não só para garantir sua saúde, como também para deixar
patente que as Colônias não implantaram nenhum dispositivo de controle na
cabeça dele. A qualquer minuto ele vai reencontrar o irmão. Meu médico chegou para
verificar minha recuperação, mas não vai fazer isso com privacidade.
De fato, quando observo o teto do meu quarto, vejo câmeras de
segurança em todos os cantos, transmitindo minha imagem ao vivo para o povo. A
República não quer dar a eles motivo para duvidar que Day e eu não estamos
sendo bem tratados.
Um monitor na parede me mostra o quarto de Day. E a única razão
pela qual concordei em ficar separada dele por tanto tempo. Eu gostaria de
poder falar com ele. Tão logo parem de tirar raios X e de colocarem sensores em
mim, vou pôr um microfone.
- Bom dia, Srta. Iparis - cumprimenta meu médico, quando as
enfermeiras espalham seis sensores na minha pele. Resmungo um agradecimento, mas
minha atenção permanece nas imagens de Day conversando com seu médico. Seus
braços estão cruzados numa postura desafiadora, e sua expressão é cética. De
vez em quando sua atenção se concentra num lugar na parede que não consigo ver.
Eu me pergunto se ele também está me observando através de uma câmera.
Meu médico repara no que me está distraindo, e enfastiado,
responde à minha pergunta antes que eu a faça:
- A senhorita vai vê-lo em breve, está bem? Prometo. Agora, vamos ao
exercício que a senhorita conhece: feche os olhos e respire fundo.
Engulo a frustração e faço o que ele manda. Luzes tremeluzem atrás
de minhas pálpebras, e depois uma sensação fria e formigante atravessa meu
cérebro e minha coluna. Põem uma máscara semelhante a gel sobre minha boca e
meu nariz. Eu sempre preciso me advertir para não entrar em pânico durante essa
seqüência, e para lutar contra a claustrofobia e a sensação de afogamento. Estão
apenas me testando, repito calmamente.
Estão verificando se há resquícios da lavagem cerebral das
Colônias, verificando minha estabilidade mental, para determinar se o Eleitor –
a República - pode ou não confiar plenamente em mim. Só isso.
Passam-se horas. Finalmente, os procedimentos terminam e o doutor me
diz que já posso abrir os olhos.
- Muito bem, Iparis - ele diz, ao digitar algo no seu notepad. –
Sua tosse pode ainda demorar um pouco a passar, mas acredito que a senhorita superou
a pior parte da sua doença. Pode ficar mais tempo aqui – ele sorri, ao ver o
franzir exasperado do meu rosto -, mas se preferir receber alta e ir para seu
novo apartamento, podemos providenciar para que isso aconteça ainda hoje. De
qualquer maneira, o glorioso Eleitor está ansioso para lhe falar, antes que a
senhorita saia daqui.
- Como está Day? - pergunto. É difícil eliminar a impaciência da minha
voz. - Quando posso vê-lo?
O doutor franze a testa.
- Não acabamos de discutir isso? Day será liberado logo depois da senhorita,
mas primeiro ele vai precisar se encontrar com o irmão.
Analiso cuidadosamente seu rosto. Há uma razão pela qual o médico hesitou
um pouco antes de responder. Deve ter alguma coisa a ver com a recuperação de
Day. Percebo uma contração sutil sob os músculos faciais do doutor. Ele sabe de
alguma coisa que desconheço.
O médico me traz abruptamente de volta à realidade. Ele põe o
notepad de lado, endireita a postura e exibe um sorriso artificial:
- Bem, por hoje é só. Amanhã vamos começar sua reintegração formal
à República, com sua nova atribuição de carreira. O Primeiro Eleitor deverá
chegar dentro de alguns minutos. A senhorita terá algum tempo para se
reorientar.
Depois dessas palavras, ele e as enfermeiras pegam seus sensores e
equipamentos e me deixam sozinha. Sento na cama e mantenho os olhos na porta.
Um manto vermelho- escuro está enrolado em meus ombros, mas mesmo assim não me sinto
inteiramente aquecida neste quarto. Quando Anden chega para falar comigo, estou
tremendo.
Ele entra com sua elegância característica, usando botas escuras silenciosas,
cachecol negro e uniforme. Os cachos de seu cabelo estão perfeitamente
penteados, e os óculos de aro fino se ajustam muito bem em seu rosto. Quando me
vê, sorri e faz continência. Esse gesto me lembra dolorosamente o Metias, e
tenho de me concentrar nos meus pés por alguns segundos, para me recompor.
Felizmente, ele pensa que lhe estou fazendo uma mesura.
- Primeiro Eleitor - eu o cumprimento.
Ele sorri; seus olhos verdes me examinam.
- Como se sente, June?
Retribuo o sorriso.
- Razoavelmente bem.
Anden dá uma risadinha e abaixa a cabeça. Ele se aproxima, mas não
tenta sentar-se perto de mim na cama. Ainda percebo a atração nos seus olhos, a
forma como saboreia cada palavra que digo e cada movimento que faço. Será que
já ouviu boatos sobre meu relacionamento com Day? Contudo, se ele está a par
disso, não o revela.
- A República - ele continua, constrangido porque reparei que me olhava
fixo -, isto é, o governo decidiu que a senhorita está pronta para retornar aos
quadros militares, com sua patente original. Será uma agente, aqui em Denver.
Quer dizer que não vou voltar para Los Angeles. Segundo a última notícia
que tive, a quarentena em LA havia sido suspensa depois que Anden começou a
investigar quem eram os traidores no Senado, e Razor e a Comandante Jameson
foram presos por traição. Só posso imaginar o quanto Jameson odeia o Day e a
mim... Só de imaginar a expressão de fúria no rosto dela sinto um arrepio na
espinha.
- Obrigada - digo, após um instante. - Sou muito grata ao senhor.
- Eu é que sou grato. Você e Day me prestaram um grande serviço. Bato
uma rápida e informal continência para ele. A influência de Day já está sendo
sentida. Depois do seu discurso de improviso, o Congresso e os militares
obedeceram a Anden e permitiram que os manifestantes voltassem para suas casas
sem punição, e libertaram os Patriotas que haviam sido presos durante a
tentativa de assassinato (sob condições supervisionadas). Se o Senado não temia
Day antes, agora o teme. Ele tem o poder, por enquanto, de provocar uma
revolução em grande escala, com apenas algumas palavras.
- Mas... - O volume da voz de Anden diminui, ele tira as
mãos dos bolsos e as cruza em frente ao peito -; tenho outra proposta a lhe
fazer. Acho que você merece um posto mais importante do que o de agente.
Vem à tona uma lembrança de quando eu estava naquele trem com ele,
da oferta pendente dos seus lábios.
- Que tipo de posto? - pergunto.
Pela primeira vez, ele resolve se sentar na beira da minha cama.
Está tão perto agora que consigo sentir o calor que emana de seu corpo e ver a
sombra de pelo que lhe cobre o queixo.
- June - ele começa -, a República nunca esteve tão instável
quanto agora. Day evitou a derrocada iminente, mas continuo a governar numa época
perigosa. Vários senadores estão lutando pelo controle entre eles próprios, e
muita gente no país espera ansiosamente que eu dê um passo em falso - Anden se
cala por um instante. - Um momento como aquele não será suficiente para me
manter nas graças do povo para sempre, e não posso controlar o país sozinho.
Sei que ele está dizendo a verdade. Dá pra perceber a exaustão na
sua voz e a frustração decorrente de ser responsável por seu país.
- Quando meu pai era um jovem Eleitor, ele e minha mãe governavam juntos.
Eram o Eleitor e sua Primeira Cidadã. Ele nunca foi mais poderoso do que
naquela época. Eu também quero uma aliada. Alguém inteligente e forte a quem eu
pudesse atribuir mais poder do que a qualquer membro do Congresso.
Mal posso respirar, ao perceber os rodeios que ele está fazendo
antes de expor a oferta.
- Quero uma parceira que saiba identificar as necessidades do
povo, alguém incrivelmente talentosa em tudo que faz, alguém que partilhe
minhas idéias sobre como criar uma nação... É claro que não seria possível uma
pessoa ir de agente a Primeira Cidadã num piscar de olhos. Seria preciso
treinamento intensivo, instrução e cultura. Uma oportunidade de alcançar essa
posição durante o período de muitos anos, de décadas, para que possa
primeiro aprender como senadora e depois como líder do Senado. Esse não é um
treinamento que se conceda a alguém sem uma análise profunda, especialmente a
alguém sem experiência no Senado. É claro que também haveria outros Primeiros
Cidadãos me apoiando também. – Ele faz uma pausa, mudando o tom de voz: - O que
você acha?
Balanço a cabeça, ainda indecisa sobre o que exatamente Anden está
propondo. Ser a Primeira Cidadã, posição abaixo apenas à do Primeiro Eleitor.
Eu passaria quase todos os momentos em que não estivesse dormindo na companhia
de Anden, sendo sua sombra por pelo menos dez anos. Nunca teria tempo para
estar com o Day. Essa oferta faz com que a vida que imaginei com ele oscile de
maneira instável. Estará Anden me oferecendo essa promoção baseado puramente no
que ele pensa sobre minhas habilidades, ou estará deixando que suas emoções o
influenciem, promovendo-me na esperança de poder passar mais tempo comigo? E como
poderei sequer concorrer com outros candidatos, provavelmente muitos anos mais
velhos do que eu, talvez até senadores? Respiro fundo, e depois tento falar com
ele da maneira mais diplomática possível.
- Primeiro Eleitor - começo -, acho que eu não...
- Não vou pressioná-la - ele interrompe, depois engole em seco e
sorri, hesitante. -Você tem total liberdade para recusar essa proposta. E você
pode ser uma Primeira Cidadã sem... - Andem está ficando vermelho ou é
impressão minha? -Você não precisaria. Eu... a República... Apenas ficaríamos muito
agradecidos se você aceitasse.
- Não sei se tenho vocação para isso. O senhor precisa de alguém muito
melhor do que eu jamais poderia ser.
Anden segura minhas mãos carinhosamente.
- Você
nasceu para mudar a República. June, não há ninguém melhor.
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