Capítulo 28 - Day

No início, os médicos não gostaram de mim. O sentimento foi recíproco, obviamente: nunca tive boas experiências em hospitais.
Há dois dias, quando finalmente conseguiram me tirar da varanda da Capital Tower de Denver, e acalmar a multidão que me aclamava, me amarraram com correias numa ambulância e me levaram diretamente ao hospital. Lá, espatifei os óculos de um médico e derrubei com um chute as bandejas de metal do meu quarto, quando tentaram examinar meus ferimentos.
- Se vocês puserem a mão em mim - gritei sem cerimônia -, quebro o maldito pescoço de vocês!
Os funcionários do hospital tiveram que me amarrar. Fiquei rouco de tanto gritar pelo Éden, exigindo vê-lo, e ameaçando incendiar o hospital todinho se eles não o trouxessem até mim. Gritei pela June. Berrei, querendo ver provas de que haviam soltado os Patriotas. Pedi para ver o corpo de Kaede, e implorei para que fosse enterrada dignamente.
Transmitiram minhas reações ao vivo para o público porque multidões haviam se reunido em frente ao hospital, exigindo saber se eu estava sendo tratado adequadamente. Eu me acalmei pouco a pouco e, quando viram que eu estava vivo, as multidões em Denver também começaram a se aquietar.
- Isto não quer dizer que você não será vigiado atentamente - diz meu médico, ao me entregarem um conjunto de camisas com golas e calças militares.
Ele resmunga de modo que as câmeras de segurança não consigam captar o que está dizendo. Ele está com tanta raiva de mim que mal consigo ver seus olhos sob os minúsculos óculos redondos. - Mas você foi perdoado pelo Eleitor e seu irmão Éden deve chegar logo ao hospital.
Fico em silêncio. Depois de tudo que aconteceu desde que Éden foi infectado pela praga, mal consigo acreditar que a República vai devolvê-lo para mim. Tudo que posso fazer é sorrir para o médico, com dentes cerrados.
Ele me retribui o sorriso com uma expressão de total desagrado, enquanto continua a falar sobre os resultados dos meus exames e sobre o local onde vou morar depois que tudo isso acabar.
Sei que ele não quer ficar aqui, mas não diz isso em voz alta por causa de todas as câmeras ligadas. Pelo canto do olho, posso ver o monitor na parede que mostra o que estão fazendo com June. Ela parece a salvo, submetendo- se às mesmas inspeções que eu, mas a ansiedade na minha garganta se recusa a desaparecer.
- Há mais uma última coisa que preciso lhe dizer em particular – prossegue o médico. Eu escuto com indiferença. - É muito importante. É algo que descobrimos nos seus raios X e do qual você deve tomar conhecimento.
Eu me inclino para a frente para ouvi-lo melhor, mas nesse instante o interfone do quarto nos interrompe.
- Éden Bataar Wing está aqui, doutor. Favor informar ao Day.
Éden. Éden está aqui!
De repente, não dou a mínima para os resultados dos meus malditos raios X. Éden está lá fora, a poucos metros de mim. O médico tenta me dizer alguma coisa, mas eu o afasto com um empurrão, abro a porta e entro no corredor aos tropeços.
A princípio, não o vejo. Há muitas enfermeiras perambulando nos corredores, mas em seguida reparo no pequeno vulto balançando as pernas num dos bancos do corredor. A pele está saudável, a cabeça cheia de cachos rebeldes e amarelos como trigo, e ele veste um uniforme escolar maior do que seu tamanho e botas. Parece maior, mas isso talvez seja porque ele agora consegue se sentar mais ereto. Quando se vira na minha direção, vejo que está usando um par de óculos fundo de garrafa de aro preto. Seus olhos estão enevoados e num tom violeta-claro, o que me faz lembrar do garotinho que vi no vagão ferroviário naquela noite fria em Lamar.
- Éden! - grito, com voz rouca.
Seus olhos continuam desfocados, mas um sorriso incrível ilumina seu rosto. Ele se levanta e tenta vir até onde estou, mas para porque não consegue ver exatamente onde me encontro.
- É você mesmo, Daniel? - pergunta, hesitante e trêmulo.
Corro até ele, pego-o nos meus braços e o abraço com força.
- Sou eu sim - sussurro. - É o Daniel.
Éden começa a chorar. Os soluços fazem tremer seu corpo franzino. Ele aperta os braços em volta do meu pescoço com tanta força que parece que nunca mais vai soltá-lo.
Respiro fundo para conter minhas próprias lágrimas. A praga destruiu a maior parte de sua visão, mas ele está aqui, vivo e bem, forte o suficiente para andar e falar. Isso me basta.
- E bom te ver de novo, garoto - digo, engasgado pela emoção, acariciando- lhe a cabeça com uma das mãos. - Senti saudade de você.
Nem sei quanto tempo ficamos assim. Minutos? Horas? Não importa. Tenho a impressão de que cada segundo se repete três ou quatro vezes. Talvez seja minha vontade de prolongar este momento ao máximo. É como se eu estivesse aqui abraçando toda a minha família. Ele é tudo pra mim. Tudo o que me restou e nunca mais quero ficar longe dele.
Ouço uma tosse atrás de mim.
- Day - diz o doutor. Ele está encostado na porta aberta da minha cela, com o rosto sério e sombrio sob a luz fluorescente. Ponho Éden suavemente no chão, mantendo uma das mãos no seu ombro. - Por favor, ainda preciso conversar uma coisa com você. Prometo que vai ser rápido. Eu... - ele se detém ao ver Éden. - Recomendo que deixe seu irmão aqui, só um instante.
Garanto que você estará de volta em alguns minutos, e depois vocês serão levados de carro para seu novo apartamento.
Permaneço imóvel, desconfiando dele.
- Eu prometo - ele repete. - Se eu estiver mentindo, você tem poder suficiente para pedir ao Primeiro Eleitor que me prenda.
Bem, nisso ele está certo. Espero um pouco mais, mordendo minha bochecha por dentro, depois dou uma pancadinha na cabeça do Éden.
- Já volto, está bem? Fique sentadinho aqui no banco. Não vá a lugar nenhum, está me ouvindo? Se alguém tentar fazer você sair daqui, grite bem alto, combinado?
Éden limpa o rosto encharcado de lágrimas e concorda com a cabeça. Eu o levo de volta para o banco e sigo o doutor até minha cela. Ele fecha a porta com um suave clique.
- Qual é o problema? - pergunto, impaciente. Meus olhos não param de se fixar na porta, como se ela fosse desaparecer na parede se eu não ficasse vigilante. No canto da parede, o monitor mostra que June agora está sozinha no quarto.
Desta vez, o médico não parece aborrecido comigo. Ele clica um botão na parede e resmunga alguma coisa sobre desligar o áudio das câmeras.
- Como eu estava dizendo antes de você sair... Como parte de seus exames, escaneamos seu cérebro para verificar se tinha sido alterado pelas Colônias. Não encontramos nada nesse sentido, mas vimos outra coisa.
Ele se vira, clica um pequeno dispositivo e aponta para uma tela iluminada na parede, que mostra uma imagem do meu cérebro. Franzo a testa, sem entender o que estou vendo. O médico indica um borrão escuro perto da parte interior da imagem e diz:
- Vimos isto perto do seu hipocampo esquerdo. Achamos que é antigo, provavelmente está aí há anos, e com o tempo tem piorado paulatinamente.
Fico atordoado por instantes, e depois me viro para o doutor. A mancha me parece trivial, especialmente porque o Éden está me esperando no corredor. Especialmente porque vou poder rever a June.
- E daí? - pergunto.
- Você tem tido enxaquecas? Recentemente ou nos últimos anos?
Sim, claro que tenho tido enxaquecas. Desde a noite em que o Hospital Central de Los Angeles me submeteu a uma série de exames, a noite em que eu devia ter morrido, a noite em que fugi. Faço um sinal afirmativo com a cabeça.
Ele cruza os braços e diz:
- Nossos registros mostram que... fizeram experiências com você, depois que fracassou na Prova. Fizeram alguns testes com o seu cérebro. Esperavam que você... bem... - ele tosse, e tenta encontrar as palavras certas – sucumbisse muito rapidamente, mas você sobreviveu. Mas agora parece que o problema atingiu um estado crítico. - Ele baixa a voz e sussurra: - Ninguém sabe disso ainda, nem o Primeiro Eleitor. Não queremos que o país seja atirado novamente num estado revolucionário. Inicialmente, pensamos que poderíamos sanar o caso combinando cirurgia e remédios, mas, quando estudamos mais detidamente as áreas problemáticas, compreendemos que tudo está tão entrelaçado com a matéria saudável no seu hipocampo que seria impossível estabilizar a situação sem prejudicar severamente sua capacidade cognitiva.
Engulo em seco, e pergunto:
- E isso quer dizer o quê?
O médico tira os óculos e suspira:
- Isso quer dizer, Day, que você está morrendo.

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