Capítulo 3 - June
Não
confio em Razor.
Não
confio nele porque não compreendo como se pode dar ao luxo de se esconder em alojamentos tão requintados. São alojamentos de
oficiais, em Vegas! Cada um destes tapetes vale, pelo menos,
29.000 Notas, e todos são feitos de um tipo de pele sintética muito caro. Há
dez lâmpadas elétricas neste aposento, e todas estão ligadas. O uniforme dele é
impecável e novo. Ele tem até uma arma personalizada presa ao cinto. E de aço
inoxidável, provavelmente leve, e ornada à mão. Meu irmão usava armas assim.
Cada uma delas custa 18.000 Notas. Além do mais, a arma de Razor deve ser
adulterada, sua numeração deve ter sido raspada. Não há como a República
rastreá-la para a obtenção de impressões digitais ou locais. Onde os Patriotas
conseguiram o dinheiro e a técnica para adulterar equipamento tão avançado?
Tudo
isso me leva a duas teorias. Um: Razor deve ser uma espécie de comandante da
República, um oficial traidor. De que outra maneira ele pode permanecer neste alojamentos sem levantar suspeitas? Dois: os
Patriotas estão sendo financiados por alguém com amplos recursos. As Colônias?
Possivelmente.
Apesar
de todas as minhas desconfianças e suposições, a oferta de Razor é melhor do
que nada. Não temos dinheiro para comprar ajuda no mercado negro e, sem
ajuda, não temos como encontrar o Éden, muito menos chegar às Colônias. Além do
mais, não acredito que poderíamos ter rejeitado a proposta de Razor. E verdade
que ele não nos ameaçou de forma alguma, mas duvido muito que nos deixasse
voltar às ruas.
Pelo
canto do olho, vejo Day esperando minha resposta à declaração de Razor. Tudo
que preciso ver são a lividez dos seus lábios e a dor estampada no seu rosto,
que são apenas algumas das dezenas de sinais de que ele está ficando sem
forças. A esta altura, creio que a vida dele depende de nossa negociação com
Razor.
—
Assassinar o novo Eleitor — repito. — Tudo bem.
Minhas
palavras soam estranhas e distantes. Por um momento, relembro quando conheci
Anden e seu falecido pai no baile que celebrou a captura de Day. A idéia de
assassinar Anden faz meu estômago se revirar. Ele agora é o Eleitor da República. Depois de tudo que aconteceu à minha
família eu deveria ficar feliz pela oportunidade de matá-lo. Mas não estou, e
isso me confunde.
Se
Razor observou minha hesitação, ele disfarça.
—Vou
mandar chamar um médico urgente. E provável que ele não consiga chegar antes da
meia-noite, que é quando ocorre a troca de turno. É o mais cedo que
conseguiremos com tão pouca antecedência.
Nesse
meio tempo, vamos tirar vocês dois destes disfarces, e lhes dar algo mais
apresentável para vestir.
Razor
olha de relance para Kaede. Ela está reclinada no sofá, com ombros caídos e uma
carranca irritada, mastigando distraidamente um cacho do cabelo. Ele ordena:
—
Mostre-lhes onde fica o chuveiro, e lhes dê dois uniformes novos. Depois, vamos
cear, e conversar mais sobre nosso plano. — Ele abre os braços e diz: —
Bem-vindos aos Patriotas, meus jovens amigos. E um prazer ter vocês conosco.
E
assim, num piscar de olhos, estamos oficialmente vinculados a eles.Talvez isso
não seja tão ruim, talvez eu nunca devesse ter discutido com Day sobre o
assunto. Kaede gesticula para que a acompanhemos até o hall do apartamento e
nos leva até o banheiro, com piso de mármore e pias de porcelana, espelho e
instalações sanitárias, banheira e chuveiro com paredes de vidro fosco. Não
posso deixar de admirar tudo isso. A riqueza ultrapassa até mesmo a que eu
tinha no meu apartamento no setor Ruby.
—
Não fiquem a noite toda aí, não. Podem até tomar banho juntinhos, se for mais
rápido, mas estejam de volta em meia hora.
Kaede
me dá um largo sorriso (embora seus olhos não o expressem), depois faz um gesto
de aprovação para Day, que se apoia pesadamente no meu ombro. Ela vira as
costas e volta para a sala, antes que eu possa responder. Acho que ainda não me
perdoou totalmente por eu ter quebrado seu braço.
Day
relaxa a postura no instante em que Kaede se vai, e murmura:
—Você
pode me ajudar a sentar?
Abaixo
a tampa do vaso sanitário e o faço sentar bem devagarinho.
Ele
estica a perna boa, e enrijece o queixo ao endireitar a perna ferida. Um gemido
lhe escapa dos lábios, e ele resmunga:
—Tenho
que reconhecer que já tive melhores dias.
—
Pelo menos a Tess está a salvo.
Isso
alivia parte do sofrimento nos olhos dele, que repete o que eu disse,
suspirando profundamente:
—
É, pelo menos a Tess está a salvo.
Sinto
uma ponta inesperada de remorso. O rosto de Tess me pareceu tão doce, tão
integralmente puro, e eles dois se separaram por minha causa...
Será que sou uma boa
pessoa? Tenho minhas dúvidas.
O
ajudo a tirar a jaqueta e o boné. Seu cabelo comprido roça em meus braços.
—
Deixa eu ver sua perna.
Ajoelho
e tiro uma faca do cinto. Corto o tecido da perna da calça até o meio da sua
coxa. Os músculos da perna estão firmes e tensos, e minhas mãos tremem ao roçar
sua pele. Cuidadosamente, separo o tecido, para expor o ferimento coberto por
ataduras. Respiramos fundo ao mesmo tempo. O pano mostra um círculo maciço de
sangue escuro e molhado; debaixo dele, a ferida está vazando e inchando.
—
É melhor o médico chegar logo. Tem certeza de que pode tomar banho sozinho?
Day
desvia o olhar e suas bochechas enrubescem.
—
Claro que posso.
Ergo
uma sobrancelha.
—Você
mal consegue ficar de pé...
—
Tá bem — ele hesita e fica ruborizado acho que preciso mesmo de ajuda.
Engulo
em seco e digo:
—
Claro que precisa. É melhor você tomar banho de banheira. Vamos logo com isso.
Começo
a encher a banheira com água quente. Depois, pego a faca e lentamente corto as
ataduras encharcadas de sangue que cobrem o ferimento de Day. Ficamos sentados
em silêncio; nenhum dos dois encara o olhar do outro. A lesão é profunda, certa
massa volumosa de carne pastosa para a qual Day evita olhar.
—Você
não precisa fazer isto — resmunga ele, girando os ombros, numa tentativa de
relaxar.
—
Está bem — sorrio maliciosamente para ele. — Vou esperar do lado de fora do
banheiro. Quando você precisar de mim, você...
—
Não — ele interrompe. — Quero dizer, você não precisa se unir aos Patriotas.
Meu
sorriso desaparece.
—
Nós não temos muitas opções, não é mesmo? Precisamos ajudar Razor ou ele não
vai fazer nada pra nos ajudar.
A
mão de Day toca meu braço por um segundo, e me detém quando eu estava
desamarrando suas botas.
—
O que você acha do plano deles?
—
De matar o novo Eleitor? — Eu me viro, me concentrando em desamarrar as botas,
afrouxando cada uma delas com o maior cuidado possível. Ainda não refleti sobre
o tal plano, por isso desvio do assunto. — Qual é a sua opinião?
Você se esforça ao máximo para não machucar as pessoas. Esse assassinato deve
ser muito difícil para você.
Fico
atônita quando Day simplesmente dá de ombros e responde:
—
Existe uma hora e um lugar para tudo — sua voz é fria e mais ríspida do que o
normal. — Nunca entendi por que matar os soldados da República. Quer dizer, eu odeio todos
eles, mas eles não são a fonte, apenas obedecem ordens. O Eleitor, por
outro lado... Acabar com a pessoa encarregada de todo esse maldito sistema me
parece um preço pequeno a se pagar para começar uma revolução. Não acha?
Não
posso deixar de sentir alguma admiração pela atitude de Day. O que ele diz faz
todo sentido. Mesmo assim, eu me pergunto se ele teria dito a mesma coisa
semanas atrás, antes de tudo que aconteceu à sua família. Não ouso me referir
ao dia em que fui apresentada a Anden no baile da comemoração. É mais difícil
se convencer a matar alguém que você chegou a conhecer — e admirar —
pessoalmente.
—
Bem, é como eu falei. Não temos alternativa.
Day
aperta os lábios. Ele sabe que não estou dizendo tudo que penso de verdade.
—
Deve ser difícil para você dar as costas ao seu Eleitor — as mãos dele
permanecem largadas ao lado do corpo.
Mantenho
a cabeça baixa, começo a tirar suas botas.
Enquanto
ponho suas botas de lado, Day se livra da jaqueta e começa a desabotoar o
colete. Isso me lembra de quando o conheci nas ruas de Lake. Naquela época, ele
tirava o colete todas as noites e o dava à Tess, para que ela o usasse como
travesseiro. Isso foi o máximo de roupa que já o vi tirar. Ele agora desabotoa
a camisa, expondo o resto da garganta e uma pequena parte do peito. Vejo o
medalhão em volta do seu pescoço, a moeda de vinte e cinco centavos de dólar
americano coberta de metal macio em ambos os lados. Na escuridão tranqüila do
vagão ferroviário, ele havia me contado que seu pai tinha trazido o medalhão da
frente de combate. Ele para quando termina de desabotoar o último botão, e
fecha os olhos.
Vejo
a dor estampada no seu rosto, e essa visão me dilacera.
O
criminoso mais procurado da República não passa de um menino, subitamente
vulnerável, que está expondo todas as, suas fraquezas na minha frente.
Eu
me aprumo e estendo os braços até sua camisa. Minhas mãos tocam a pele dos seus
ombros. Tento manter a respiração normal, a mente aguda e objetiva, mas à
medida que o ajudo a tirar a camisa e a revelar os braços e o peito nus, sinto
que minha mente está se embaralhando.
Day
é forte e esbelto sob as roupas, a pele é surpreendentemente macia, exceto por
uma ou outra cicatriz (ele tem quatro já meio esmaecidas no peito e na cintura,
outra que é uma fina linha diagonal e se estende da clavícula esquerda até o
osso do quadril direito, e uma crosta no braço de uma cicatriz já curada). Ele
me encara fixamente.
E
difícil descrever o Day para aqueles que nunca o viram: sua beleza exótica,
típica, avassaladora. Está muito perto agora, perto o bastante para que eu veja
a minúscula imperfeição ondulada no oceano do seu olho esquerdo. Sua respiração
é quente e fraca. Sinto minhas bochechas ficarem quentes, mas não quero virar o
rosto.
—
Nós estamos juntos nessa, não estamos? — ele sussurra. —Você e eu?
Você quer estar
aqui, não?
Suas
perguntas revelam remorso.
—
Quero. Eu escolhi isso.
Day
me puxa para tão perto dele que nossos narizes se tocam.
—
Eu amo você.
Meu
coração se acelera de excitação ao desejo evidente em sua voz, mas, ao mesmo
tempo, o lado prático do meu cérebro instantaneamente se intromete: essa história não tem a menor chance
de dar certo. Há um mês, ele sequer sabia da minha existência. Por
isso, deixo escapar:
—
Não, você não me ama. Ainda não.
Day
franze as sobrancelhas, como se eu o tivesse magoado:
—
Estou sendo sincero — ele diz, junto aos meus lábios.
Fico
impotente diante do sofrimento da sua voz, mas ainda assim... São apenas as palavras de um
menino no calor do momento. Tento
me obrigar a dizer a mesma coisa a ele, mas as palavras se congelam na minha
boca. Como ele pode ter tanta certeza disso? Eu certamente não compreendo tudo
que estou sentindo. Estou aqui porque o amo, ou porque tenho uma dívida com
ele?
Day
não espera pela minha resposta. Uma de suas mãos roça minha cintura e se achata
nas minhas costas, puxando-me de tal maneira que acabo sentada na sua perna
boa. Fico ofegante. Ele pressiona os lábios nos meus, e entreabro a boca. Sua
outra mão toca meu rosto e pescoço; seus dedos são, ao mesmo tempo, brutos e
delicados. Seus lábios lentamente procuram o canto da minha boca, ele beija
minha face, depois meu queixo. Meu peito agora está colado ao dele, e minha
coxa roça o macio cume do osso de seu quadril. Volto a fechar os olhos. Meus
pensamentos estão embaralhados e distantes, escondidos sob uma névoa
tremeluzente de calor. Uma série de detalhes práticos dentro da minha cabeça
luta para vir à superfície.
—
Kaede foi embora faz oito minutos — sussurro em meio aos beijos de Day. — Estão
nos esperando daqui a vinte e dois minutos.
Day
entrelaça a mão no meu cabelo e suavemente empurra minha cabeça para trás, expondo
meu pescoço.
—
Eles que esperem — murmura. Seus lábios beijam suavemente minha garganta; cada
beijo é mais impetuoso que o último, mais impaciente, mais urgente, mais
faminto.
Seus
lábios voltam a beijar minha boca, e posso sentir o pouco que lhe restava de
autocontrole esvaindo-se, sendo substituído por alguma coisa instintiva e
selvagem. Eu amo você é do
que seus lábios estão tentando me convencer. Eles estão me deixando tão frágil,
que estou quase desabando no chão. Já beijei alguns garotos antes... mas Day me
faz sentir como se nunca tivesse sido beijada, como se o mundo estivesse se
derretendo em algo sem nenhuma importância.
De
repente, ele me solta e geme baixinho de dor. Vejo-o apertar os olhos e
fechá-los, tremer e respirar fundo. Meu coração bate furiosamente contra minhas
costelas. O calor entre nós perde a intensidade, e meus pensamentos voltam para
o lugar, quando me lembro com uma sensação lenta e de prostração onde estamos e
o que ainda precisamos fazer. Esqueci que a água continuava a correr — a
banheira está quase cheia. Estendo o braço e fecho a torneira. Meus joelhos
estranham o frio do piso. Meu corpo inteiro está ardendo.
—
Pronto? — pergunto, tentando me firmar. Day assente silenciosamente.
O
momento passou; o brilho nos olhos dele diminuiu.
Derramo
um pouco de gel líquido de banho na banheira e o revolvo até ele formar uma
espuma. Depois apanho uma das toalhas penduradas no banheiro e a passo ao redor
da cintura de Day. Chegou a hora do constrangimento. Ele consegue manusear
desajeitadamente a calça debaixo da toalha e a solta. Eu o ajudo a tirá-la. A
toalha cobre tudo que precisa ser coberto, mas mesmo assim desvio o olhar.
Ajudo
Day, que só está usando a toalha e o medalhão, a ficar de pé e, após algum
esforço, conseguimos colocar sua perna boa na banheira, de modo a que eu possa
abaixá-lo lentamente para entrar na água. Tomo o cuidado de manter a perna
machucada no alto e seca. Day comprime o queixo, para não gritar de dor. Quando
ele se acomoda na banheira, seu rosto está úmido de lágrimas.
Levo
quinze minutos para esfregá-lo e para lavar todo o seu cabelo.
Quando
terminamos, eu o ajudo a se levantar, e fecho os olhos quando ele pega uma
toalha seca e a passa ao redor da cintura.
A
idéia de abrir os olhos agora e vê-lo nu faz com que meu sangue ferva
desordenadamente nas minhas veias. Quanta bobagem. Não tem nada de mais em ver um garoto
nu? Fico
irritada ao supor que meu vivido enrubescimento deve ser óbvio, mas aí o
momento passa, e levamos mais alguns minutos lutando para tirá-lo da banheira.
Quando
ele finalmente está sentado na tampa do vaso sanitário, vou até a porta do
banheiro. Não havia reparado antes, mas alguém tinha entreaberto a porta, e
deixado dois uniformes novos para nós. São uniformes de infantaria, com botões
do estado de Nevada. Vou me sentir esquisita ao voltar a ser um soldado da
República, mas, ainda assim, apanho os uniformes.
Day
me dá um sorriso brando e diz:
—
Obrigado. É muito bom me sentir limpo.
Sua
dor parece trazer de volta suas piores lembranças das últimas semanas, e agora
toda a sua emoção está nitidamente exposta no seu rosto. Seus sorrisos
melancólicos não chegam nem perto da alegria que expressavam. É como se a maior
parte da sua felicidade tivesse morrido na noite em que ele perdeu John, e que
apenas uma pequena porção tenha permanecido, o pouco que ele reserva para Éden
e Tess.
Secretamente
torço para que guarde para mim também uma partícula da alegria dele.
—Vire-se
e vista suas roupas. Espere por mim do lado de fora do banheiro. Não vou
demorar.
Chegamos
à sala de estar sete minutos atrasados. Razor e Kaede nos esperam. Tess está
sozinha, sentada em um canto do sofá abraçando as próprias pernas,
observando-nos com uma expressão vigilante.
Um
instante depois, sinto o cheiro de frango assado com batatas. Meu olhar se
lança rapidamente para a mesa da sala de jantar, onde quatro travessas cheias
de comida estão dispostas em ordem. Ela parecem chamar nosso nome. Faço força
para não reagir ao cheiro, mas meu estômago ronca.
—
Excelente! — exclama Razor, sorrindo para nós. Seus olhos se concentram em mim
durante um tempo. —Vocês dois estão com ótima aparência. — Então se vira para
Day e sacode a cabeça — Providenciamos comida, mas como você vai se submeter a
uma cirurgia daqui a algumas horas, vai precisar ficar de estômago vazio.
Lamento. Sei que você deve estar com fome. June, sirva—se, por favor.
Os
olhos de Day também focalizam a comida. Ele resmunga:
— Ah,
que ótimo...
Junto-me
aos outros em volta da mesa enquanto Day se estica no sofá e fica o mais à vontade
possível. Estou quase pegando meu prato para me sentar ao lado dele, mas Tess
chega primeiro e se senta na beira do sofá, de modo que suas costas tocam o
corpo de Day. Enquanto Razor, Kaede e eu comemos em silêncio à mesa, de vez em
quando lanço olhares furtivos para o sofá. Day e Tess conversam e riem, com a
desenvoltura de duas pessoas que se conhecem há anos. Eu me concentro na
comida; o ardor do nosso encontro no banheiro ainda queima em meus lábios.
Eu
havia contado cinco minutos mentalmente quando Razor finalmente dá um gole em
sua bebida e se recosta na cadeira. Eu o observo atentamente, ainda me
perguntando por que um dos líderes dos Patriotas — o chefe de um grupo que
sempre associei à selvageria — é tão educado.
—
Srta. Iparis, sabe muita coisa sobre nosso novo Eleitor?
Sacudo
a cabeça:
—
Infelizmente, não.
Ao
meu lado, Kaede ri com desdém e continua jantando.
—
Mas a senhorita já foi apresentada a ele, não? — insiste Razor, revelando o que
eu esperava esconder de Day. — Naquela noite no baile para celebrar a captura
do Day, lembra—se? Ele beijou sua mão. Correto?
Day
interrompe a conversa com Tess. Eu me retraio internamente.
Razor
não parece notar meu desconforto e continua a falar:
—
Anden Stavropoulos é um rapaz interessante. O finado Eleitor o amava muito.
Agora que o Eleitor é Anden, os senadores estão inquietos. O povo está zangado,
e nem se importa se Anden é diferente do último Eleitor. Indiferentes às
declarações que Anden fizer para agradar às pessoas, tudo que vão ver é um
garoto rico que não tem idéia de como curar o sofrimento delas. Estão furiosas
com Anden por permitir que Day fosse executado, por persegui-lo, por não dizer
nada contra as políticas do pai, por oferecer uma recompensa a quem encontrar
June... A lista não termina aqui. O falecido Eleitor controlava os militares
com pulso de ferro. Agora o povo só vê um rei menino que tem a oportunidade de
ascender e se tornar outra versão do pai. São esses pontos fracos que queremos
explorar, o que nos leva de volta a nosso plano.
—
O senhor parece saber muito sobre o jovem Eleitor. Também parece saber muito
sobre o que aconteceu no baile de comemoração — digo. Não consigo mais conter
minha desconfiança. — Suponho que isso seja porque também compareceu àquele
baile. O senhor deve ser um oficial da República, mas sem uma patente alta o
suficiente para conseguir uma audiência com o Eleitor — analiso os luxuosos
tapetes de veludo e os balcões de granito. — Estes são, na realidade, seus alojamentos,
não são?
Razor
fica meio desconcertado com minha crítica à sua patente (que, como sempre, é um
fato que eu não pretendia que fosse um insulto), mas rapidamente a ignora, com
uma risada:
—
Estou vendo que não haverá segredos para você. Menina especial. Bem, meu título
oficial é Comandante Andrew DeSoto, e dirijo três das patrulhas da capital na
cidade. Foram os Patriotas que deram meu nome de guerra. Há pouco mais de uma
década venho organizando a maioria das missões deles.
Day
e Tess escutam atentamente agora.
—
O senhor é um oficial da República — repete Day, de modo pouco firme, com os
olhos fixos em Razor. — Um comandante da capital. Hum... Por que o
senhor está ajudando os Patriotas?
Razor
inclina a cabeça, e apoia os cotovelos na mesa de jantar, apertando as mãos.
—
Suponho que devo começar lhes fornecendo os detalhes de como trabalhamos. Os
Patriotas existem há mais ou menos trinta anos. No começo, era apenas um grupo
desorganizado de rebeldes. Nos últimos quinze anos, eles se unificaram numa
tentativa de se organizar e de organizar também sua causa.
—
A entrada de Razor mudou tudo, é o que me dizem — Kaede fala com voz
esganiçada. — Era um entra e sai de líderes danado, e conseguir recursos
financeiros não era nada fácil. Os contatos de Razor nas Colônias tem trazido
mais dinheiro para as missões do que nunca.
Lembro
que, nos últimos anos, Metias havia mesmo se ocupado mais do que o normal com
os ataques dos Patriotas.
Razor
balança a cabeça, em concordância com as palavras de Kaede.
—
Estamos lutando para reunir as Colônias e a República, para fazer com que os
Estados Unidos retornem à antiga glória. — Seus olhos expressam um brilho
determinado. — E estamos dispostos a fazer o que for necessário para alcançar
nosso objetivo.
Os Estados Unidos, penso,
antes que Razor continue. Day havia mencionado os Estados Unidos durante nossa
fuga de Los Angeles, embora eu ainda estivesse cética. Até agora.
—
Como funciona a organização? — pergunto.
—
Estamos sempre atentos às pessoas que têm o talento e as habilidades de que
precisamos, e então tentamos recrutá-las — explica Razor. — Geralmente somos
bem-sucedidos em obter a adesão das pessoas, ainda que algumas demorem mais a
se aliar a nós — ele faz uma pausa para apontar o copo na direção de Day. — Sou
considerado um Líder dos Patriotas; há apenas alguns de nós, trabalhando
internamente e arquitetando as missões dos rebeldes.
—
Nossa Kaede aqui é piloto — Kaede faz uma reverência com a mão e continua a
jantar. — Ela entrou para nosso grupo depois que foi expulsa de uma Academia de
Dirigíveis nas Colônias.
"A
cirurgiã de Day também foi recrutada, e a jovem Tess está treinando conosco
para ser médica. Temos também lutadores, corredores, batedores, hackers,
escoltadores e pôr aí vai. June, eu a classificaria como lutadora, embora suas
habilidades se enquadrem em várias categorias. E Day é, evidentemente, o melhor
corredor que já vi."
Razor
termina o drinque e sorri como se estivesse se dado conta de algo muito
engraçado.
—Vocês
dois, tecnicamente, deveriam fazer parte de uma categoria inteiramente nova: a
de celebridades. E dessa maneira que serão mais úteis para nós. É por isso que
não atirei vocês dois de volta às ruas.
—
Foi muita gentil de sua parte — ironiza Day. — Qual é o plano?
Razor
aponta para mim e diz:
—
Antes, eu lhe perguntei quanto sabia a respeito do nosso Eleitor. Andei ouvindo
uns boatos hoje. Dizem que Anden ficou encantado com você no baile. Alguém o
ouviu perguntar se você poderia ser transferida para uma patrulha da capital.
Corre até o boato de que ele quer que você seja treinada para se tornar a
próxima Primeira Cidadã do Senado.
—
A próxima Primeira Cidadã? — Sacudo automaticamente a cabeça, sufocada pela
idéia. — Provavelmente isso não passa de boato. Nem dez anos de treinamento seriam
suficientes para que eu pudesse ser preparada para um papel desses.
Razor
apenas ri da minha declaração.
—
O que é uma Primeira Cidadã? — pergunta Day. Ele parece aborrecido. — Nem todos
conhecem a hierarquia da República.
—
A líder do Senado — responde Razor de maneira indiferente, sem se virar na
direção dele. — A sombra do Eleitor. Seu parceiro ou sua parceira no comando.
As vezes, algo mais do que isso. Geralmente costuma acontecer
assim, depois da indispensável década de treinamento. Afinal de contas, a mãe
de Anden foi a última Primeira Cidadã.
Olho
instintivamente para Day. Seu queixo está cerrado e ele está imóvel, indícios
de que ele preferiria não saber o que o Eleitor pensa de mim. Muito menos que
ele me possa querer como uma futura parceira.
—
Esses boatos são exagerados — insisto mais uma vez, tão constrangida quanto Day
com essa conversa. — Mesmo que isso fosse verdade, eu seria apenas uma entre vários
candidatos em treinamento para o cargo. E posso garantir a vocês que as outras
escolhas seriam senadores experientes. Mas como vocês planejam usar essa
informação no assassinato? Vocês acham que posso...
Kaede
interrompe minhas palavras com uma grande risada.
—Tá
com a bochechinha vermelha, Iparis. Já vi que tu gostou de saber que Anden tem
uma paixonite por você!
—
Não! — respondo, um pouco rápido demais. Sinto o rubor no meu rosto aumentar,
embora eu tenha certeza de que isso é porque a Kaede está me irritando.
—
Deixa de ser besta — ela diz. — Anden é um gato, e tem muito poder e muitas opções.
Qual o problema de se sentir lisonjeada? Tenho certeza de que Day entende.
Razor
me salva de responder ao franzir a testa, desaprovando o comentário.
—
Kaede, já chega.
Ela
olha para ele mal-humorada e volta a comer. Olho de relance para o sofá. Day
está com os olhos fixos no teto. Depois de curta pausa, Razor prossegue.
—
Mesmo agora, Anden pode não acreditar que você fez tudo contra a Repúblicadeliberadamente. Segundo o que ele sabe, você pode ter sido
levada como refém quando Day fugiu. Ou ter sido obrigada a se unir a Day contra
a sua vontade. Existem incertezas suficientes para ele insistir que o governo a
declare desaparecida, ao invés de traidora procurada. Meu argumento é o
seguinte: Anden está interessado em você. E isso quer dizer que ele pode ser
influenciado pelo que você lhe disser.
—
Então o senhor quer que eu volte para a República? — indago. Minhas palavras
parecem incomodar. Pelo canto do olho, vejo Tess se mexer, insatisfeita, no
sofá. Sua boca treme com uma frase não pronunciada.
Razor
aquiesce com a cabeça.
—
Isso mesmo. Originalmente, eu ia usar espiões das minhas próprias patrulhas da
República, para me aproximar de Anden, mas agora temos uma alternativa melhor: você. Você vai
revelar ao Eleitor que os Patriotas vão tentar matá-lo, mas o plano que você
vai contar a ele será falso. Enquanto todos estiverem distraídos com seu plano
maluco, nós vamos atacar com o plano verdadeiro. Nosso objetivo não é apenas
matar Anden, mas fazer com que o país se vire completamente contra ele, de modo
que seu governo fique condenado ao fracasso, mesmo que nosso plano falhe. É
isso que vocês dois podem fazer por nós. Temos informações de que o novo
Eleitor vai à frente de combate nas próximas duas semanas, para receber
relatórios de seus coronéis sobre atualizações e o andamento da situação. O
dirigível RS Dynasty vai rumar para frente de batalha amanhã à tarde, e todos
os meus esquadrões estarão indo nele. Day vai se reunir a mim, Kaede e Tess
nessa viagem. Vamos organizar o verdadeiro assassinato, e você, June, vai guiar
Anden direto para dentro dele — Razor cruza os braços e analisa nossos rostos,
esperando nossas reações.
—
Isso vai ser incrivelmente perigoso para June — argumenta Day, se endireitando
no sofá. — Como o senhor pode ter certeza de que ela sequer vai chegar ao
Anden, depois que os militares a receberem de volta? Como o senhor pode saber
que eles não vão querer torturá-la para extrair informações dela?
—
Confie em mim, sei como impedir isso — Razor responde. — E também não me
esqueci do seu irmão. Se June conseguir se aproximar o bastante do Eleitor, ela
pode descobrir sozinha onde está o Éden.
Ao
ouvir isso, os olhos de Day brilham, e Tess aperta o ombro dele.
—
Quanto a você, Day nunca vi o povo saudar alguém com a intensidade
que fez com você. Sabia que tingir uma listra vermelha no cabelo se tornou moda
da noite para o dia? — Razor dá uma risada e aponta para a cabeça de Day com
uma das mãos. — Isso, garoto, é poder. Neste momento, é provável que você tenha
tanta influência quanto o Eleitor, talvez até mais. Se conseguirmos encontrar
uma forma de utilizar sua fama para levar o povo à loucura, quando realmente
acontecer o assassinato, o Congresso estará impotente para deter uma revolução.
—
E o que o senhor pretende fazer com essa revolução? — Day pergunta.
Razor
se inclina para frente; seu rosto mostra determinação, até mesmo esperança.
—Você
quer saber por que eu me uni aos Patriotas? Pelas mesmas razões por que você tem
agido contra a República. Os Patriotas sabem que você já sofreu muito; vimos
todos os sacrifícios que fez por sua família, a dor que a República lhe tem
causado.
—
June — continua, apontando com a cabeça para mim. Eu me encolho toda; não quero
que me lembrem do que aconteceu com Metias, — também testemunhei seu
sofrimento, com toda a sua família destruída pela nação que você amava. Perdi a
conta do número de Patriotas que têm passados semelhantes.
À
menção de sua família, Day volta a olhar fixo para o teto. Seus olhos
permanecem secos, mas, quando Tess estende o braço e segura sua mão, ele
entrelaça os dedos com os dela.
Razor
continua seu discurso:
—
O mundo do lado de fora da República não é perfeito, mas nele existem liberdade
e oportunidades, e tudo que precisamos fazer é deixar que essa luz brilhe
dentro da própria República. Nosso país está por um triz; tudo de que necessita
agora é de um empurrãozinho para ser totalmente transformado. — Ele se levanta
parcialmente e aponta para o peito: — Nós podemos dar esse empurrãozinho. Com uma
revolução, a República se espatifa, e junto com as Colônias podemos assumi-la e
reconstruí-la para que volte a ser algo maravilhoso. Ela voltará a ser os
Estados Unidos de antes. O povo viverá livremente. Day, seu irmãozinho crescerá
num lugar melhor. Isso é algo pelo qual vale a pena morrer. Não concorda?
Dá
para notar que as palavras de Razor estão mexendo com Day, vejo um brilho nos
olhos dele que me surpreende com sua intensidade.
—
Isso é algo pelo qual vale a pena morrer — Day repete.
Eu
também deveria estar empolgada, mas, de alguma forma, mesmo assim a ideia de
ver a República desmoronar me deixa nauseada. Não sei se é lavagem cerebral, se
isso é reflexo dos anos de doutrinas da República inseridas no meu cérebro.
Entretanto, essa sensação persiste, juntamente com um fluxo de vergonha e ódio
por mim mesma.
Tudo
que me era familiar não existe mais.
Vixeee. Pensei que ia rolar cena quente ! :/ Day pega logo ela de jeitooooo *-*
ResponderExcluirCalma! kk' Ainda tem muita coisa pra acontecer ainda!
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