Capítulo 5 - June
05H45.
VENEZIA.
PRIMEIRO
DIA COMO MEMBRO OFICIAL DOS PATRIOTAS.
Preferi
não ficar na sala durante a cirurgia; Tess, evidentemente, permaneceu para
assistir à médica. A imagem de Day deitado inconsciente na maca, o rosto lívido
e inexpressivo, e a cabeça virada a noventa graus para o teto, seria uma
lembrança forte demais da noite em que me curvei sobre o corpo inanimado de
Metias no corredor do hospital.
Prefiro
que os Patriotas não conheçam meus pontos fracos, por isso me afasto, e fico
sentada sozinha num dos sofás da sala principal. Também permaneço distante para
realmente pensar sobre o plano de Razor para mim.
Vou
ser presa pelos soldados da República.
Vou
encontrar uma forma de conseguir uma audiência privada com o Eleitor, e então
fazer com que confie em mim.
Vou
contar a ele sobre uma trama falsa para assassiná-lo, o que levará a um perdão
total de todos os meus crimes contra a República.
E
depois devo atraí-lo para seu verdadeiro assassinato. Esse é meu papel. Pensar
sobre ele é uma coisa; concretizá-lo é outra. Examino minhas mãos e me pergunto
se estou pronta para manchá-las de sangue, se estou pronta para matar alguém.
Como era mesmo a frase que Metias sempre dizia?"Poucas pessoas matam
pelas razões certas, June." Mas aí
me lembro do que Day disse no banheiro:
"Acabar com a pessoa encarregada de todo
esse maldito sistema me parece um preço pequeno a se pagar para começar uma
revolução, não acha?"
A
República roubou Metias de mim. Penso na Prova, nas mentiras sobre a morte dos
meus pais. Nas pragas criadas em laboratório... Do alto desse edifício luxuoso,
posso ver o estádio das Provas de Vegas atrás dos arranha-céus reluzentes, à
distância.
Poucas
pessoas matam pelas razões certas, mas se tem alguma razão certa, essa é uma
delas. Não é? Minhas mãos tremem ligeiramente. Eu as estabilizo.
O
apartamento está silencioso. Razor saiu de novo, às 3h32, de uniforme de gala,
e Kaede está cochilando na outra extremidade do sofá. Se eu deixasse um
alfinete cair no chão de mármore, o som provavelmente incomodaria meus ouvidos.
Após algum tempo, concentro minha atenção na pequena tela na parede. Está sem
som, mas ainda assim assisto ao ciclo familiar de transmissão de notíciasas
contra inundações e tempestades, horários de chegadas e partidas de dirigíveis,
vitórias contra as Colônias na zona de combate. As vezes me pergunto se a
República também inventa essas vitórias, e se estamos realmente vencendo ou
perdendo a guerra. As manchetes continuam. Há até um comunicado público
advertindo que qualquer civil apanhado com uma mecha vermelha no cabelo será
preso no ato.
O
ciclo de notícias termina abruptamente. Eu me aprumo quando vejo a próxima
notícia: o novo Eleitor vai fazer seu primeiro pronunciamento público ao vivo.
Hesito,
depois olho furtivamente para Kaede. Ela está dormindo profundamente. Eu me
levanto, atravesso a sala em silêncio, e aumento o volume do monitor.
O
som está muito baixinho, mas é o suficiente para que eu possa ouvir. Vejo Anden
- ou, melhor dizendo, o Primeiro Eleitor — posicionar— se elegantemente no
pódio. Acena com a cabeça para o costumeiro grupo de repórteres indicados pelo
governo, postados à sua frente. Ele está igualzinho a como eu me lembrava dele:
uma versão mais jovem do pai, com óculos finos e uma inclinação régia do
queixo, trajando impecavelmente um uniforme formal negro com ornamentos
dourados e fileiras duplas de botões reluzentes.
—
Estamos numa época de grandes mudanças. Nossa determinação está sendo posta à
prova mais do que nunca, e a guerra contra nosso inimigo chegou a seu momento
crucial — diz ele, que fala como se o pai não tivesse morrido, como se ele
sempre tivesse sido nosso Primeiro Eleitor. — Vencemos nossas três últimas
batalhas e nos apoderamos de três das cidades das Colônias que ficam ao sul.
Estamos na iminência da vitória, e não vai demorar para a República se estender
até a beira do Oceano Atlântico. E nosso destino óbvio.
Ele
prossegue, reafirmando ao povo nossa força militar, e prometendo futuros
anúncios sobre as mudanças que quer implementar. Sabe-se lá o que é verdade
sobre isso tudo.Volto a analisar o rosto dele.
Sua
voz não é diferente da do pai, mas a sinceridade que ela transmite me cativa. O
rapaz tem vinte anos. Talvez realmente acredite em tudo que está dizendo, ou
talvez seja apenas um ótimo ator ao esconder suas dúvidas.
Eu
me pergunto como ele se sente sobre a morte do pai, e como consegue em
coletivas de imprensa como esta, compor-se o suficiente para desempenhar seu
papel. Não há dúvida de que o Congresso está ansioso para manipular um novo
Eleitor tão jovem, para tentar dirigir o espetáculo dos bastidores, e
manipulá-lo como se fosse uma marionete.
Com
base no que disse Razor, eles devem estar se estranhando diariamente. Anden
talvez seja tão sedento de poder quanto o pai era, se ele se recusar a se
submeter ao Senado.
Quais
exatamente são as diferenças entre Anden e seu pai? Como Anden acha que a
República deve ser - por falar nisso, como eu acho que ela deve ser?
Tiro
o som da tela e me afasto. Não gaste muito tempo refletindo sobre quem é Anden. Não
posso pensar nele como se ele fosse uma pessoa real, uma pessoa que tenho de
matar.
Finalmente,
quando os primeiros raios da alvorada começam a surgir na sala, Tess sai do
quarto com a notícia que Day está acordado e alerta, e diz a Kaede:
—
Ele está bem. Agora mesmo está sentado, e deve poder andar em algumas horas. —
Então ela me vê e seu sorriso esmaece. — Oi...Você pode ver o Day, se quiser.
Kaede
abre um olho, dá de ombros, e volta a dormir. Dou à Tess o sorriso mais
amigável que consigo, respiro fundo e me dirijo ao quarto. Day está sentado com
travesseiros nas costas, e coberto até o peito com um espesso cobertor. Deve
estar cansado, mas pisca para mim quando me vê entrar, gesto que faz meu
coração perder o compasso. O cabelo dele está despenteado, num círculo reluzente.
Alguns clipes de papel dobrados estão no seu colo (tirados das caixas de
suprimentos no canto; deduzo que ele já tenha se levantado). Aparentemente Day
estava fazendo alguma coisa com eles. Solto um suspiro de alívio quando vejo
que ele não está sentindo nenhuma dor.
—
Ei! Fico feliz em ver que você está vivo.
—
Eu também estou feliz em ver que estou vivo — ele responde. Seus olhos me
seguem quando me sento ao seu lado na cama. — Perdi alguma coisa enquanto
estava fora do ar?
—
Perdeu. Você não ouviu a sinfonia de roncos de Kaede no sofá. Para alguém que
vive driblando a lei, essa garota dorme feito uma pedra.
Day
sorri. Volto a me admirar com seu bom humor, coisa que não tenho presenciado
muito nas últimas semanas. Meu olhar se desloca para onde o cobertor cobre sua
perna em processo de cura, e pergunto:
—
Como é que ela está?
Day
afasta o cobertor. Vejo que há lâminas metálicas lisas, de aço e titânio, onde
ficava seu ferimento. A médica também substituiu o joelho com problemas por um
joelho artificial, e agora um terço de sua perna é metálico. Ele me lembra os
soldados que voltam da frente de combatei com suas mãos, braços e pernas
sintéticas de metal, onde antes havia pele. A médica deve conhecer bem os
ferimentos de guerra. Sem dúvida as ligações de Razor com oficiais a ajudaram a
obter as preciosas pomadas curativas que ela deve ter usado em Day. Estendo a
mão aberta, e ele põe sua mão na minha.
—
É desconfortável?
Day
balança a cabeça, incrédulo, e responde:
—
Acredita que não estou sentindo nada? Tudo está leve e indolor. - Um sorriso
maroto ilumina seu rosto e ele diz: — Agora você vai ver o que é escalar para
valer um prédio, querida. Não tenho mais um joelho podre para me atrapalhar.
Que belo presente de aniversário!
—
Aniversário? Eu não sabia. Feliz aniversário — digo, sorrindo. Meus olhos se
concentram nos clipes de papel espalhados no seu colo. — O que você está
fazendo?
—
Isso aqui? — Day apanha um dos objetos que está criando, que se assemelha a um
círculo de metal. — É só para matar o tempo. — Ele levanta o círculo até a
claridade, pega minha mão, onde põe o círculo. — É um presente para você.
Analiso
o objeto de perto. É feito de quatro clipes de papel abertos, cuidadosamente
entrelaçados em espiral, e com as extremidades juntas, de modo a formar um
minúsculo anel. Coisa simples e bem feita. Até artística, eu diria. Percebo
amor e cuidado nas dobras do metal, as pequenas curvaturas onde os dedos de Day
trabalharam o material repetidamente, até ele formar as curvas certas. Ele fez isso para mim. Ponho o
anel no dedo, e ele desliza facilmente para o lugar. É lindo! Fico tímida e
lisonjeada, e não consigo dizer nada. Nem me lembro da última vez em que alguém
de fato fezalguma coisa
para mim por conta própria.
Day
fica desapontado com minha reação, mas disfarça o que sente rindo indiferente.
—
Sei que vocês, cheios da nota, têm suas tradições refinadas, mas nos bairros
pobres, noivados e gestos de afeição costumam ser como isto aqui.
Noivados?
Meu coração se agita no peito. Não consigo esconder um sorriso.
—
Com anéis feitos de clipes?
Oh, não, falei demais! Minha pergunta foi uma demonstração sincera
de curiosidade, mas só me dou conta de que pareceu sarcasmo na hora em que as
palavras já saíram da minha boca.
Day
enrubesce um pouco, e fico imediatamente aborrecida comigo mesma por ter dado
outro fora.
—
Com alguma coisa feita à mão — ele me corrige após um instante. Olha para
baixo, claramente constrangido, e eu me sinto péssima por haver sido a
causadora disso. — Desculpe se a aparência é meio grosseira — ele diz baixinho.
— Eu queria poder fazer alguma coisa mais bonita para você.
—
Não, não — interrompo, tentando consertar o que tinha dito. — Gostei muito.
Passo os dedos no minúsculo anel, mantendo os olhos fixos nele, para não ter
que encarar os olhos de Day.
Será que ele pensa que eu não achei o anel bom
o bastante? Fale alguma coisa, June. Qualquer coisa.
Começo
a analisar o anel.
—Aço
galvanizado não revestido. É um material de ótima qualidade, sabia? Mais
resistente do que as alianças metálicas, é dobrável, e não enferruja. É...
Paro
quando vejo o olhar fixo e envergonhado de Day.
—
Gostei — repito. Comentário idiota, June. Aproveita e dá logo um soco na cara dele. Fico
ainda mais perturbada quando me lembro que eu já dei uma coronhada no rosto dele antes. Muito
romântico.
—
De nada — ele diz, enfiando alguns clipes inteiros nos bolsos.
Faz-se
uma demorada pausa. Não sei bem o que ele esperava de mim, mas provavelmente
não era uma relação das propriedades físicas dos clipes de papel. De repente,
insegura, eu me aproximo dele e apoio a cabeça no seu peito. Ele arfa, como se
eu o tivesse apanhado de surpresa, e abraça-me suavemente. Assim é bem melhor! Fecho
os olhos. Uma de suas mãos acaricia meu cabelo, e deixa meu corpo todo
arrepiado. Eu me deixo levar por um pequeno momento de fantasia e o imagino
segurando meu queixo delicadamente, aproximando o rosto do meu.
Day
se inclina perto do meu ouvido e murmura:
—
O que você está achando do plano deles?
Dou
de ombros, e afasto minha decepção. Que burra eu fui em ficar fantasiando que
ia ganhar um beijo dele numa hora dessas.
—
Alguém já disse o que eles querem que você faça?
—
Não, mas tenho certeza de que vai haver uma nota no noticiário nacional pela
televisão para informar ao país que continuo vivo. Eles não ficam dizendo que
eu incito as massas? Que levo as pessoas à loucura? — Day sorri ironicamente,
mas seu rosto não parece achar graça. — Faço o que for preciso para encontrar o
Éden.
—
Sei disso.
Ele
então me puxa para cima, para que eu o encare.
—
Não sei se vão deixar que a gente se fale. — Ele baixa tanto a voz que mal
consigo ouvi-la. — O plano parece bom, mas, se alguma coisa der errado...
—
Tenho certeza de que vão cuidar de mim — eu o interrompo. — Razor é oficial da
República. Ele pode encontrar um jeito de me salvar, se o plano começar a dar
errado. E sobre podermos nos comunicar... — mordo o lábio, raciocinando — vou
dar um jeito.
Day
toca meu queixo, aproximando-me tanto, que seu nariz roça o meu.
—
Se alguma coisa der errado, se você mudar de ideia, se precisar de ajuda, você
me manda um sinal, tá me ouvindo?
Suas
palavras fazem meu pescoço se arrepiar.
—
Combinado — sussurro.
Day
move a cabeça sutilmente para mim, então se afasta e se encosta aos
travesseiros. Respiro fundo.
—
Está preparada? — Sei bem que ele quer dizer mais do que isso, mas ele não diz.
Algo como Você está preparada para matar o Eleitor?
Dou
um sorrisinho forçado.
—
Mais do que isso impossível.
Permanecemos
assim por um longo tempo, até se firmar a luz que entra pelas janelas, e
ouvirmos o juramento matinal ecoar pela cidade.
Finalmente,
escuto a porta da frente se abrir e fechar, e a voz de Razor. Pisadas
aproximam-se do quarto, e Razor dá uma olhadela para dentro do cômodo no
momento em que me endireito e me sento reto.
—
Como vai sua perna? — ele pergunta a Day. Seu rosto está tão calmo como sempre,
e os olhos inexpressivos atrás dos óculos.
Day
faz um sinal positivo com a cabeça.
—
Bem.
—
Excelente — Razor sorri solidário. — Espero que já tenha passado tempo
suficiente com seu amigo, Srta. Iparis. Vamos embora daqui a uma hora.
—
Pensei que a médica quisesse que eu descansasse por... — Day começa a dizer.
—
Lamento — responde Razor ao virar as costas. — Temos que pegar um dirigível. Só
não force muito sua perna ainda.
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